quinta-feira, 15 de março de 2007

Pequenas metáforas

Essa é uma crônica antiga, de 13 de maio de 2005, quando eu escrevia para o JC On Line. Foi incluída no livro "Estuário", que ando vendendo a conta-gotas. Acho que serve para o momento, enquanto arrumo as malas para ir a Brasília.
***

Aprendi a andar de bicicleta numa Monareta roxa, quando morávamos em Imperatriz, no Maranhão. Lembro com uma riqueza de detalhes o dia da compra da bicicleta, e até hoje o nome “Monareta”, significa algo que transita entre o presente e o aprendizado. Porque bicicleta, para criança, é festa, mas é lição. Tem que aprender a se equilibrar, começar a seguir devagar e depois pedalar. Num instante, aquelas mãos importantes que davam segurança, ajudavam a sustentar, já não estão. É a hora de pedalar sozinho, cabelo ao vento, sentindo a liberdade da viagem solitária. Minha filosofia de sandália havaiana e bermudão informa – bicicleta foi a primeira metáfora que aprendi na vida. Não conheço ninguém saudável que não tenha levado suas quedas, antes de seguir sozinho.

Nesta mesma época, fomos informados (eu e os dois irmãos mais velhos), que faríamos uma viagem para um lugar muito longe e bonito. Passamos uma madrugada inteira surtados, separando brinquedos, objetos, separando roupas, não lembro se discutimos ou se brigamos, e amanhecemos exaustos mas eufóricos. As nossas bagagens estavam prontinhas. Parecia que estávamos a caminho do Everest, dado o volume de roupas e brinquedos. Estávamos tomando nosso cafezinho básico, quando fomos informados que a viagem fora cancelada por algum motivo que também não lembro. Depois disso, eu só acredito numa coisa quando ela acontece. Não sei se isso tem alguma metáfora, pode ser só trauma mesmo.

Lá pelos 11 anos, já morando em Fortaleza, tinha uma viagem de trem rumo ao Crato, meu torrão natal. O trem era azul, e por isso, foi batizado popularmente de “Sonho azul”. Caramba, quando eu recebia a informação que viajaríamos no “Sonho Azul”, a vida ficava imediatamente azul. Eu ficava um menino azul. Acho que não tem metáfora nenhuma aí, só beleza e saudade.

Não lembro bem a idade, mas a cena me deixou paralisado. Era uma guerra na Nicarágua, creio, e um repórter vem se arrastando pela rua. Ele está com uma bandeirinha branca na mão, uma frágil bandeirinha branca, que significa paz, vem se arrastando e está desarmado. Estou vendo a cena, tenho uns 12 anos, talvez, sei lá. Vem um soldado, se aproxima e dá um tiro à queima-roupa na cabeça do jornalista. Fiquei muito chocado com a cena. Não entendia como o soldado podia fazer aquilo com alguém indefeso. Metáfora da maldade humana, talvez, mas acho também que não era o momento de ver aquilo. Eu também era muito indefeso.

Isso foi aos 18, quando tinha acabado de chegar ao Recife. O dono da empresa onde eu trabalhava sabia que eu gostava de escrever poesias nas horas vagas. Certo dia, terminando de montar umas prateleiras numa farmácia, todo sujo, fodido, cansado, fedido, vi o camarada chegar com sua maleta de couro. Ele se aproximou, deu um sorriso e falou, olhando de cima pra baixo:

“Tás vendo o que é poesia?”

Foi só sacanagem mesmo, acho que não tem metáfora. Mas informo que ainda escrevo poesia sim.

Estava com 24 anos, feliz da vida no meu primeiro jornal, quando meu chefe resolveu botar pra quebrar em mim. A solada foi tão grande, que só me restava pedir demissão ou aceitar que uns fodem e outros serão sempre fodidos, como bezerrinhos, ou como as focas, que batem palma por tudo. No dia em que fui saindo de casa, quando morava com minha tia-avó, Flocely, ela me sorriu e disse:

“Quem se abaixa muito, as calças aparecem”.

Ao invés de ir para a redação, fui direto ao departamento de pessoal e pedi demissão. No dia seguinte, chegou uma proposta para trabalhar em São Paulo. Tem metáfora ai? Tem sim. A palavra amorosa, dita no momento certo, fica grudada na alma.

Trabalhava num jornal em São Paulo, e uma amiga estava com o avô, muito querido, na UTI, ela sofrendo muito. Até que um dia, cheguei à redação e recebi a informação:

“O avô de Camila morreu”.

Nunca sei o que dizer na hora da morte. Geralmente fico mudo, dou um abraço, porque detesto dizer “meus pêsames”. No outro dia, encontrei Camila de repente, e falei, sem perceber:

“Deu zebra, né, Camis?”

Pensei logo “que merda eu falei”. Ela falou do avô, relembrou coisas dele, a conversa foi mansa e triste. Mais mansa que triste, penso. No dia seguinte, ela chegou à redação com uma camisa que tinha uma zebra. Disse que lembrou de mim, porque tinha tratado a morte do avô com leveza. A metáfora da morte como “zebra”, que parecia fora de propósito, acabou nos tornando mais próximos.

Então vou fazer o seguinte – vou aqui fechar os olhos, rever aquela monareta roxa, me ver dentro daquele “Sonho Azul”, seguindo para o Crato, e fazendo aquela viagem com os manos, para o lugar distante e bonito. Depois, vou rever Camila, tia Flocely, e colocar todas as pessoas queridas dentro do mesmo vagão. E quando algo der errado em minha vida, algo muito triste e doloroso, vou dizer:

“Deu zebra”.

Tentando ser mais manso que triste, mas lembrando do sonho, que é sempre azul.

12 comentários:

Anônimo disse...

Palmas, muitas palmas.............

Anônimo disse...

Samarone,
Estive recentemente no Recife e programei uma visita ao Poço da Panela (lugar encantado) e ao Armazém do Seu Vital.
Comprei o "Estuário" e li na semana em que fiquei no Recife.
Algumas crônicas eu já conhecia; estão no blog Estuário.
Parabéns.
Abraço,
Harif Miguel / SP

Magna Santos disse...

É sempre uma delícia os velhos textos! Bom relê-los. Bom pra memória, bom pra alma. Sou capaz de lembrar até alguns comentários maravilhosos da ocasião. Boa viagem e fique com Deus. Beijo em tia. Beijão. Magna.

Anônimo disse...

Só um lembrete mínimo(a reduncância é proposital):o nome desta crônica linda é: "o sonho azul".Beijos.Magna.

Anônimo disse...

Boa viagem, Sama!

Um beijo de uma das suas 57 leitoras, que de vez em quando se ausenta, mas que volta sempre...

Silvia Góes disse...

metáforas?
sei, sei...
un petit bisou pour toi

Anônimo disse...

Muito boa, Sama ! Engraçado é que em sala de aula ontem comentei com os alunos sobre viagens de trem (infelizmente, a maioria nunca fez). Nem o velho Recife-Cabo, que eu sempre pegava para acampar em Nazaré e Suape, existe mais. Também não era azul, mas era massa! Agora, por causa dessa tua crônica, tô aqui cantarolando na cachola "coisas que a gente se esquece de dizer / frases que o vento vem às vezes me lembrar [...] na canção do vento não se cansam de voar / você pega o trem azul / o sol na cabeça...", na voz de Lô Borges, o compositor, ou de Elis

Anônimo disse...

Sama,

Preciso do contado de Júlio Vila Nova, que conheci através de e-mails quando trabalhava no JC. Você pode me ajudar?

Zé Neves

Anônimo disse...

Zé Neves, entre em contato: juliovilanova@ig.com.br ou 9111 3623

Anônimo disse...

Linda essa crônica!
Li no livro há poucos dias...

Anônimo disse...

Sonho, azul, brumas, sereno, assovio, sertão, passarinho.A palavra amorosa, dita no momento certo, orienta os caminhos. Orienta os caminhos.
Adri

Anônimo disse...

Alguns, além de ver a beleza, dela tornam-se espelhos. Aí a gente olha e se vê bonita também. E o azul tomou conta de tudo... Adorei a tua pintura!