sexta-feira, 14 de abril de 2006

Anotações aleatórias numa sexta-feira santa

Constatações:

Agora ninguém mais chama a empregada doméstica de empregada doméstica. É a "minha secretária" pra cá, "minha secretária" pra lá e por ai vai. Agora, se o sujeito tem uma empresa com 150 pessoas trabalhando, ele diz que tem 150 empregados. Deve ser a história do politicamente correto, mas eu confesso que ainda estranho.

Acho a frase "Minha empregada está de folga hoje" muito mais bonita do que "Minha secretária está de folga hoje". É besteira minha, eu sei, mas o que seria de mim sem minhas besteiras?
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Nós brasileiros somos um povo esquisito. Temos negro pra caralho em tudo que é canto, salvo alguns estados que são mais branquinhos, lá pelas bandas do sul, mas temos também uma dificuldade imensa, filosófica, existencial, de chamar um sujeito de "negro", isso do topo ao pé da famosa pirâmide social. Você pergunta como era o sujeito que acabou de passar, pode ser um negão mesmo, e o sujeito ao lado diz:

"Ah, era um bem moreno..."

Todo negro é moreno e em todo documento, o brasileiro é um "pardo". Fiz centenas de reportagens em delegacias, e todo criminoso, seja meio branco, amarelo, negão meso, era registrado como pardo. Fui olhar no pai dos burros, o velho Aurélio, e encontrei:

"Pardo: 1. De cor entre o branco e o preto; quase escuro. 2. De um branco sujo, duvidoso. 3. De cor pouco brilhante, entre o amarelo e o castanho. 5. Mulato".

Sinceramente, acho muito mais bonito o sujeito ser chamado de "mulato" do que "pardo".

O professor Davi mesmo, um grande amigo meu, um sujeito formidável, negão dos pés ao cocoruto, muitíssimo admirado pela ternura e capacidade boêmia. Numa conversa com um amigo, aqui no Poço, ele me diz que o professor Davi é um sujeito gente boa demais. Bebe um copo e solta a frase:

"O Moreno se garante".

Então eu não entendo nada.
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Vi ontem que já somos o oitavo país do mundo em quantidade de velhos. Querem que a gente use esse negócio de "terceira idade", mas acho que um sujeito, quando envelhece, fica é velho mesmo. Se eu chegar lá, quero ser chamado de velho, nem venham com esse papo de "Samarone Lima, o cronista da terceira idade". Melhor mesmo "Samarone, o cara que escreve sobre velhos".

Inventaram de criar um espaço na parte dianteira dos ônibus, só para os velhinhos. Ali eles não pagam. Eles ficam lá se espremendo, em poucas cadeiras, todo mundo vai entrando e olhando, às vezes reclamando, eu acho isso uma safadeza bem brasileira. O velho deveria ter uma carteira e passar pela roleta, sentar onde quiser, como todo mundo.
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Aqui onde eu moro, no Poço da Panela, é impossivel alguém citar uma pessoa já morta sem dizer "o falecido Marco", "o finado Barrabás", e por aí vai. É como se a conversa tivesse que separar o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Dizem que o nome disso é cultura. Não sei se na Inglaterra é assim, a Fabiana bem que poderia explicar. Ou seja: será que os ingleses são capazes de fazer a crueldade de falar de uma pessoa, sem informar que ela já morreu? Creio que sim.
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Estou curiosíssimo para ler "Sempre aos domingos", livro de crônicas de Renato Carneiro Campos, que morreu aos 44 anos, em 1977. O lançamento foi na quinta-feira, na editora Bagaço, da saudosa Elita, mas o liseu particular não permitiu ir ao evento - apesar de ser a 500 metros da minha casa. Vou chegar no lançamento e ficar de fulozôsô, comendo os petiscos e bebericando o vinho? Não, lançamento de livro, o camarada tem que sair com um exemplar debaixo do sovaco. É uma desvantagem esse troço de estar muito liso.

O livro é uma coletânea das crônicas que ele escreveu no Diário de Pernambuco, entre 1969 e 1977. Dizem que tem coisas lindas, e pelos trechos publicados na matéria do José Teles (Jornal do Commercio, 12 de abril de 2006), o Campos se garantia no ofício.

"Há pessoas que trabalham como se fizessem strip-tease. É uma exibição. Carrascos de horas, carcereiros de qualquer tempo livre", diz ele, em uma de suas crônicas.

O melhor é saber que ele escreveu sobre um período glorioso do Recife, quando o Savoy era o ponto de encontro da boemia, quando a Livro 7 era "a" livraria do Recife, quando o Mustang agregava a galera da esquerda e todo mundo sonhava em tirar os milicos do poder. Hoje, o Savoy é uma melancólica lembrança, a Livro 7 acabou, o Mustang não tem o velho charme, mas pelo menos os milicos voltaram para os quartéis, pela graça de Deus.
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Tudo bem, eu confesso: se alguém quiser me dar o livro de presente, eu aceito na hora, e pago duas cervejas em Seu Vital!
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Informo que ganhei a primeira rifa na minha vida, feita pela comunidade aqui do Poço. Comprei duas cartelas (R$ 1,00 cada) e ganhei uma toalha grande, outra pequena. Ontem, Marquinho veio me trazer o pacote, embrulhado em papel de presente. Tinha um agradecimento, numa letra bem bonita:

"Obrigado por você ter colaborado para a nossa festinha ficar mais alegre. As crianças do reforço".

Claro que vou dar as toalhas de presente a Dona Da Luz.

Haverá algum país em que uma senhora velha, muito linda, se chame "Dona Da Luz"?
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"Celebrar lo que no existe
?hay otro camino para celebrar lo que existe?
Celebrar lo imposible.
?Hay otro modo de celebrar lo posible?"
(Roberto Juarroz, poeta argentino)

3 comentários:

Anônimo disse...

Sama, pode organizar a fila das pessoas que vão até aí te levar o livro de presente, mas acho que você vai gastar mais com as cervejas que vai ter que pagar... (ainda bem que seu vital te faz fiado...), mas o que eu gostaria mesmo era de saber se você já comprou (ou ganhou) O Livro do desassossego de Fernando Pessoa que o ladrão te "ganhou" no carnaval, pois eu como possuidora de um sei o quanto é difícil viver, sem ler coisas tais como:

"De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E, em torno de mim, todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei."

me responda gostaria de te dar um de páscoa caso vc. continue orfão dele...(o livro). beijos

Anônimo disse...

Informo que não comprei ainda o Livro do Desassosego por falta generalizada de dinheiro, e que ficarei muitissimo feliz em recebê-lo.
Espero que o presente de páscoa chegue logo, porque o Fernando Pessoa, como diz a velha Poly, "é tudo na vida de uma pessoa".
Um abraço afectuoso,
samarone

Anônimo disse...

vixe, Saminha, agora vai ter briga...
lembra que eu ia te dar quando eu chegasse ai!?
mas, pelo jeito nao da para esperar.
tem nada nao, te levo um pacote de cafe, uma lata de azeite e um Antonio Maria, pode ser?