sexta-feira, 7 de março de 2008

Dois vagabundos na estrada (Volume I)

Lá vamos, eu e Iramarai, para mais uma jornada a pé. Queremos simplesmente andar. Sair da correnteza, da cidade grande, dos carros. Longas jornadas, com os pés no chão, nossas mochilas, pouca coisa, nossos cantis, nossos olhos.

É nossa quinta expedição. Relembramos isso no meio da viagem, enquanto ele descansava em cima de uma Quixabeira, que se tornou a árvore-símbolo da viagem. Fomos informados de seus poderes medicinais, então arrancamos lascas e colocamos em nossos cantis. Durante toda a viagem, bebemos água com gosto de barro, e nos sentimos estranhamente forte, como se fosse nossa kriptonita.


Como sempre, escolhemos na base da intuição. Terminamos nossas atividades pela Secretaria Estadual de Saúde, quatro dias de muito trabalho no sertão, e voltamos com o motorista Belém. Num determinado ponto, resolvemos ficar. Belém toda vez fica desesperado. Diz que vai estar com o celular ligado, para o caso de acontecer alguma coisa, se a gente precisar. Pergunta mil vezes o que vamos fazer, a pé, naquele meio de mundo, tão longe do Recife. Vamos andar. Simplesmente andar. Vamos ao vento, ao sabor do destino, colhendo o que chega, compartilhando o que podemos, contando e escutando histórias, vendo o povo.

Levo um pequeno bloco no bolso, onde anoto religiosamente os horários de partida e chegada, nome dos lugares, vilarejos e pessoas que conhecemos. Saímos de Tacaratu, perto de Jatobá, à 16h24 da sexta-feira. O primeiro objetivo é chegar a Caraibeiras, mas nunca sabemos se vamos conseguir. Precisamos de um mapa que tenha indicações de estradas, veredas, sempre dizemos isso, e toda viagem usamos meu surrado mapa, que vai caindo aos pedaços, a cada viagem que faço.

Iniciamos nosso jejum, que vai durar 24 horas, e será concluído no dia seguinte, com uma farta e deliciosa salada de verduras, no quarto de um hotel, em outra cidade.


São duas horas e meia de jornada, amparados por uma luminosa lua cheia. Acertamos em cheio no horário, porque o clima está ameno, não pegamos o sol no lombo, como em viagens anteriores. Aos poucos, a cada caminhada, vamos descobrindo as manhas. Não exagerar com o corpo, ter alguns cuidados. Nos identificamos muito com os vagabundos, mas às vezes, somos mais desleixados que eles.

Chegamos em Caraibeiras exaustos, porque tomamos o café da manhã em Ouricuri, e rodamos 619 quilômetros, até seguirmos a pé. Buscamos algum lugar para dormir. Maraí queria o de sempre: encontrar uma árvore boa, limpar o chão, fazer um foguinho e dormir. Sim, mas trabalhamos a semana inteira, estamos exaustos, é o primeiro dia da caminhada, e não temos sequer um colchonete, apenas um lençol para os dois. Além disso, acabamos de caminhar nove quilômetros. Vence, por empate técnico, a proposta de dormirmos em uma pousadinha simples, para recuperar as energias. No sábado, teremos muito chão pela frente.

Procuramos um lugar. Somos informados por um gordinho simpático que Dona Lourdes tem lugar para dormir, fica ao lado da igreja, pegando à esquerda. Encontramos a igreja, pegamos à esquerda, mas dona Lourdes não está. Sua funcionária, Dina, informa que a diária custa R$ 7,00 e dá direito a café da manhã. O quarto é limpo, miúdo, tem três camas e um ventilador. Ao lado, um banheiro decente, com água corrente, porque quando falta na cidade, dona Lourdes manda encher uma cisterna. Paga R$60,00 ao caminhão-pipa.

O silêncio é formidável, e o calor começa a nos assombrar. Dina, uma negra simpática e jovem, diz que seu irmão vai chegar mais tarde da escola, e vai dormir na rede, que está pendurada no pátio. O cachorro, simpaticíssimo e velho, se chama “Amiguinho”, e fazemos amizade rápido.


O banho nos renova, mas estamos quebrados. Descobrimos que a semana foi mais cansativa que pensávamos, ou já não temos mais o mesmo pique de outras caminhadas. Contra nós, pesa o efeito do “Fator Gildázio”. Ficamos hospedados a semana inteira no mesmo quarto com Gildázio, com seu ronco capaz de acordar uma cidade inteira. Foram alguns dias dormindo mal e trabalhando muito. Meu amigo deita, cai exausto e dorme. Vou para a mesa, anotar minhas coisas, ler. Dina providenciou uma garrafa de café, que vou consumindo devagar.

As muriçocas não demoram a atacar. Pouco depois, Marai levanta. O ventilador não segura o calor, nem as muriçocas. Saímos para uma caminhada na cidade, mas não avançamos muito. Meu amigo sente uma fisgada em sua famosa “verruga plantada”. Descobrimos que estamos ao lado na funerária São Francisco, que tem o “Plano São Francisco”, e atende 24 horas. O responsável é Chico, mas não estamos precisando de seus serviços, pelo menos por enquanto.

Sentamos no banco da praça, ele faz dois cigarros de palha, e fumamos, muito quietos. Ah, esses instantes fundamentais de nossas viagens, quando estamos exaustos e algo de júbilo nos envolve. Estamos longe de tudo, sem internet, celular, e não sabemos para onde vamos, nem o que fazer. Olhamos o céu, ele fala de umas constelações, mas sou cego de nascença. Ele vê desenhos no céu, só vejo estrelas mesmo. São as burrices de cada um. Às vezes, acho que ele inventa constelação. Vou criar as minhas também. Aquela ali é a Elegíaca, veja ali a Polinésia, ao lado da Arcaica. Sim, sim, vou reagir.

Damos as primeiras tragadas, e passa o gordinho informante. Pergunta se encontramos Dona Lourdes, respondemos que sim, agradecemos, ele segue.


Voltamos para Dona Lourdes. Maraí vai tentar dormir. Pergunto a Dina se posso assistir a minisérie “Queridos amigos”, ela diz que sim, pego uma cadeira de balanço, fico reparando os últimos instantes do Big Brother. Ela e o marido sabem o nome de todos os personagens, as tramóias, quem vai sair, quem vai ficar, enfim.

Maraí chega. Acordou, com as muriçocas. Ficamos os quatro na sala, e começa o seriado.

“O que é que a gente faz com as muriçocas?”, pergunta Marai.

“É só não ligar para elas”, responde ela, sem desgrudar da TV.

Termina o episódio do dia, voltamos para o quarto. Ele deita, volto para a mesa, vou ler e escrever até cansar. Daqui a pouco, chega o irmão de Dina, que não sei o nome. É um sujeito calado, com gestos precisos e econômicos. Toma um banho, janta, volta, deita na rede e dorme. Lá pelas tantas, solta uns bons peidos, e segue firme.

Já é madrugada, quando resolvo dormir. Olho as estrelas, estão lá: Elegíaca, Polinésia, Arcaica. Sim, minhas constelações. Maraí se mexe de um lado para o outro. Não consegue dormir direito.

Nosso plano era acordar às cinco horas do sábado, para às seis estar na estrada.

A muito custo, saímos de Caraibeiras às 7h55. Vamos olhando as empresas da cidade, e um modelo próprio de divulgação.

“Sorveteria Sabores. Organização: Negão”.

“Funilaria Futura. Organização: Chico”.

“Auto escola Regismar. Organização: Chico”.

“Trevo Madeiras”.

Essa empresa não botou a organização.

À saída, descobrimos que estamos na “Cidade das redes”. Há pequenas e médias fábricas em toda a cidade. A rede mais em conta, custa R$ 12,00. O som dos teares industriais se espalham por várias ruas. Paramos defronte à casa de dona Carminha, que usa um tear manual, para fazer o “cadi”, uma parte que sustenta a rede. É um trabalho complicado, o troço exige uma mão de obra danada. Ela ganha R$ 0,40 por peça. Tiramos foto dela, os três filhos são bonitos como o quê.

A população de Caraibeiras: 4.328 almas.

Caminhamos por uma estrada de terra, com pouquíssimos carros. Alguns quilômetros depois, paramos numa sombra, porque o calo de Maraí está fazendo estragos. Ficamos debaixo de uma quixabeira, bebemos água, nos recuperamos. O sol está rasgando tudo.

Faltam nove quilômetros para chegarmos ao rio Moxotó, que separa Pernambuco de Alagoas.

Daqui a pouco, passa um vaqueiro, num jumento. Conversamos um pouco. Não sei de onde saiu esse assunto, mas ele disse que o jumento é como o papagaio, “vive até caducar”.

Se o distinto leitor não sabe, vai uma informação essencial, que nem o Google deve ter. Um jumento chega a viver 32 anos, e trabalhando duro, que não conheço jumento que viva no bem bom.


Maraí fuma um cachimbo, equilibrado num tronco de quixabeira. O vaqueiro diz que a casca da quixabeira é boa para o estômagos, rim e pancadas. Botamos pedaços em nossos cantis. Maraí resolve tirar os tênis e usar as havaianas. Voltamos à estrada. Resolvemos seguir num galope firme, até o rio Moxotó. Descansaremos em outra pátria: Alagoas.

10 comentários:

Anônimo disse...

Sama,

O Google é mais inteligente que você imagina:

"Um jumento vive em média 25 anos, há casos raros de 40 anos. Se você cria caprinos ou ovinos, os jumentos são excelentes guardas de rebanho contra ataques de cães, mas tenha cuidado, pois, o jumento só guardará o rebanho se estiver sozinho. Não ponha dois jumentos juntos guardando o rebanho, porque um jumento fará companhia ao outro e esquecerá do rebanho. Os jumentos possuem uma grande variedade de cores, sendo a mais comum a marrom claro, apresentam outras cores podem ser marrom escuro, prêto, as vezes ocorre o bicolor (pampa) e muito raramente aparece em tres cores. Há um tipo de jumento que tem cor marrom escura e as quatro patas brancas. Outro fato interessante sobre jumentos é a variedade de tamanhos, que variam desde miniatura(90cm) a 1 metro e meio de altura. Os jumentos americanos da raça Jack Mammouth são os gigantes entre os jumentos do mundo. O tamanho miniatura é muito usado em parques de diversões, pois, o temperamento temperamento dócil deste animal se adapta bem com crianças. Há divergências sobre o número total de jumentos existentes no mundo, e no caso específico da China estima-se 11 milhões de jumentos."

Anônimo disse...

E eu li uma frase de um cabra chamado Percy Shelley na (ótima) revista Bravo! e me lembrei de você:

"Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo"

Boa viagem.

Anônimo disse...

bela caminhada. sempre olhei para os meus pés como se fossem asas e acredito nos vôos sobre os chãos tão ricos do mundo todo.
bom, fiquei feliz em saber que exatamente agora devo descobrir se sou gente ou jumento. como estou com 32 anos, se sobreviver, acreditarei na minha humanidade. ou será que me tornarei uma jumenta magicamente velha no meio dos pastos da vida?
bem, vou caminhando. pocotó, pocotó, pocotó...
justine

Mariana Paixão disse...

Estava lendo aquele único dia único em que nos conhecemos, Samarone. (Será que você ainda se lembra?)

Espero que nos encontremos novamente :)

Anônimo disse...

tem um erro nessa cronica. Kriptonita enfraquece o super homem. Entao sua metafora esta errada.

Anônimo disse...

“É só não ligar para elas” kkkkk foi muito boa

Anônimo disse...

“É só não ligar para elas” kkkkk foi muito boa

Samarone Lima disse...

Vi agora a questão da Kriptonita, que enfraquece o Superman, mas deixa assim mesmo, porque esses enganos fazem parte da minha formação cultural.
Sama

k2, tu é mesmo foda.

naire valadares disse...

Antes que chegue o volume II, só para dizer que você é um "cabra" de coragem. Deus me livre e guarde de tanto chão! Se eu pudesse ia dentro da tua mochila, só conversando.Como diz João, você é um "miserave".
Viva Sama e a sua sensibilidade!
Beijo
Naire

naire valadares disse...

...lindas fotos, parabéns.
Beijo de novo
Naire