sexta-feira, 9 de junho de 2006

A doce vingança*

Finalmente chegou a Copa do Mundo. Nós, os amantes do futebol, que nos desesperamos o ano inteiro, nos campeonatos estaduais, nas batalhas para subir à Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro (e por lá ficar uns bons anos); nós que arrancamos os cabelos em um jogo contra o Centro Limoeirense, na reta final do primeiro turno (em Limoeiro); nós, que saímos caçando um boteco que transmita um jogo do nosso time numa quarta-feira chuvosa, um tal de Malutron, pela Copa do Brasil; nós, que somos acusados de loucos, obcecados, alienados, dependentes, viciados em futebol; enfim, nós que escutamos comentários do tipo "não sei pra que sofrer tanto por causa de um time" ou "não sei qual a graça que vocês vêem no futebol", e coisas do tipo, ou piores.

Aqui vai uma confissão: para nós, amantes do futebol de janeiro a dezembro, nós que passamos pelo céu e inferno com nosso clube de coração, a Copa do Mundo é a nossa redenção.

Ah, que maravilha ver aquela tia ranzinza, que não vê graça nenhuma em "ver um bocado de homens correndo atrás de uma bola", vestida de Brasil, dos pés à cabeça, segurando a mão da filha, com o coração na boca.

Ah, que felicidade do sujeito casado, que escuta gracinhas do tipo "parece que morreu um parente teu", quando o time perde um campeonato, ver a esposa ajoelhada, na hora da cobrança dos pênaltis, fazendo promessas a São Expedito, São Apolinário, São Tomé, e outros santos que desconheço a origem e identidade, pedindo que pelo amor de Deus "essa bola tem que entrar, que o Brasil precisa muito deste título", mooc se nunca tivéssemos ganho uma reles tacinha...

Ah, que gozo supremo, ver aquele Phd em Sociologia e Antropologia, que já ponderou diversas vezes sobre a alienação e mercantilização do futebol, fumando um cigarro atrás do outro, já na hora em que os jogadores ainda estão cantando o hino nacional, fazendo mandingas as mais diversas, acendendo velas e incensos, alertando para começarmos "dando uma pressão total".

Ah, que alegria, amigos, que alegria vê-los inebriados, absortos, obcecados por cada jogo da Seleção Brasileira.

E nesta hora, surge do fundo da alma, de nós apaixonados por futebol, de nós, estádio-dependentes, uma espécie de benevolência. Nossa vingança é quase um ato de emancipação afetiva. Devolvemos com alegria o que nos foi dado em forma de frases contundentes, comentários ácidos, afirmativas dolorosas, quando mais precisávamos de apoio. A cada quatro anos, na Copa do Mundo, nós caneleiros, nós, da segunda divisão da vida, que comemos espetinho à beira dos estádios, que sofremos com os cambistas, que viramos dependentes de uma transmissão pelo rádio de pilha, devolvemos aos nossos detratores uma espécie de cordialidade mística.

Durante os jogos, explicamos vagarosamente o que é um volante. Fazemos verdadeiros tratados filosóficos, com exemplos desenhados na lousa, sobre o impedimento; dissertamos exaustivamente sobre a primeira fase da Copa, avisando que depois vai começar o mata-mata; tentamos, em vão, fundamentar sobre a importância histórica e mística do Zagalo no banco de reservas, ao lado do Parreira; explicamos, com uma ponta de rancor, por que o nosso zagueiro não subiu no cruzamento; relatamos, didaticamente, que Mineiro não é um jogador que veio de Minas...

A Copa do Mundo dá aos amantes cotidianos do futebol, como eu, um raro e estranho sabor de vingança. Diria que se trata de uma doce vingança.

Durante um mês, nos sentimos os mais normais dos seres. Estranhamos aquela prima caladona, quase uma santa, soltar uma coleção de palavrões, numa falta perigosa contra o Brasil. Descobrimos, neste momento, que ela sabe mais palavrões que a torcida inteira do nosso time. Ficamos meio sem jeito quando o moralista da família toma todas e começa a sambar, defronte à TV, ao som de "Voa, canarinho voa", uma música que é da Copa de 82...

Sentimos um orgasmo espiritual quando aquele vizinho rabugento, incapaz de um "bom dia", entra correndo pelo nosso portão, e pula em cima da nossa família, que se abraça entre lágrimas, e começa a gritar "É campeão, porra!"

Ou seja: tudo o que fazemos, durante quatro anos, eles, os normais, fazem em um mês. Então, perdoemos os exageros e admitamos, bem secretamente: a Copa do Mundo é a nossa doce vingança.

* Texto publicado em 5 de junho na coluna "Folha Seca", que mantenho com o amigo Inácio França, no site www.pernambuco.com.

5 comentários:

Anônimo disse...

Não gosto de futebol e durante a copa este sentimento cresce: vira desprezo. Detesto ver tanta gente mobilizada, numa falsa integração nacional, por uma coisa tão vazia e mercantilista quanto futebol, pois o capitalismo conseguiu destruir também a ingenuidade do futebol (que morreu junto com Garincha). Quando vejo tanta gente junta mum estádio, torcendo e adorando jogadores milionários e alienados, só consigo ficar triste, só consigo pensar: porque o povo não se mobiliza assim para acabar a fome do mundo, para acabar o analfabetismo, para acabar a violência que é fruto disto tudo? Só consigo ficar triste e nunca - jamais - me vesti ou vestiria de verde e amarelo, nessas data prefiro o preto, pois minha alma chora, fica de luto. Sei que neste dias sou a chata da festa, mas o que seriam das festas sem os chatos, os que criticam, os que vêem o outro lado?... Sou estrangeira neste mundo e este sentimento é permanente, talvez isso seja uma condenação talvez seja uma redenção, não sei...

Anônimo disse...

Sama, querido,
Como sempre, você escolhe os assuntos mais inusitados para suas crônicas. Nunca pensei nesses torcedores de Copa do Mundo com tanta benevolência. Eu fico é furiosa de ver gente que critica a mim e minha filha porque vamos ao Arruda torcer pelo Santinha, com radinho de pilha, um documento e alguns trocados para comprar espetinhos de "salsão e queijo!" como grita o menino-vendedor. Esses que nos criticam, vestem a farda verde-amarela, colocam um arsenal de comidas e bebidas na mesinha e se sentem os grandes entendidos daquilo que estão vendo. Mesmo conhecendo apenas Ronaldinho, embora sem saber sua posição no time e nem seu número na camisa. Só em close o identificam. E o que é pior: passam todo o jogo comentando novelas, fofocas, receitas ou qualquer coisa, menos futebol. Na hora do gol gritam para fazer coro, apenas. Pra mim futebol é coisa séria e é para ser acompanhado como uma bela peça teatral, uma ópera ou um grande musical. Não dá para perder um só drible.
Boa Copa pra você. Sucesso e vitória para nós todos, mesmo aqueles que não sabem o que vêm.
Um cheiro, de mãe.

Anônimo disse...

Infelizmente tenho que concordar, porém em parte, com a leitora Renilde. Realmente temos nessa época do ano todos os focos voltados para a copa e para os jogadores milionários. Estamos numa época em que corrupção, violencia, desigualdade social, desemprego, analfabetismo são temas que nos atingem de maneira frequente e crescente. Ontem mesmo fui pra uma solenidade onde foi entoado o Hino Nacional... Tive oportunidade de discutir com alguns amigos sobre a falta até de motivação até para entoar tão lindo Hino... E chegamos a uma conclusão: o brasileiro ainda possui um motivo pra se orgulhar de seu País, o esporte. Não digo a copa do mundo apenas mas todos os esportes/atletas que têm lutado pra conseguir representar bem seu pais em olimpíadas diversas.
Então, minha cara leitora, não use o luto pelo esporte porque acredito eu que este ainda seja um dos maiores, se não o único motivo que ainda nos permite entoar o Hino Nacional de cabeça erguida.

Anônimo disse...

É, no meio de tudo isso eu só queria lembrar que o esporte, sobretudo o futebol, também é capaz de tirar muitas crianças da marginalidade. Isso, claro, falando meramente na prática esportiva.
O lastro disso se chama "sonho". Sim, sonho de fazer um gol, de ser escalado para a pelada do time do bairro, de jogar num clube, de ser craque da seleção brasileira ... e posso ser ingênua nesse sentido, MAS acredito DE VERDADE que o que rege uma profissão dessa é mesmo o amor, eu pelo menos nunca ouvi falar que fulaninho é jogador de futebol porque o salário é bom, mas entra numa repartição pública pra ver quantas e quantas pessoas não são concursadas apenas pra garantir a tal estabilidade financeira.

Como sou da área de comunicação entendo um bocadinho de marketing esportivo, mas olha, marketing por marketing que tal lembrar das outras vertentes disso tb? Ou não há mesmo uma coisa consumista em boa parte de nós?

O futebol, a música, os filmes e tantas outras coisas são fortes quando tocam nossa alma, quando dão recheio a uma vida cercada das injustiças sociais citadas. E digo mais, com ou sem futebol essas injustiças existiriam, mas ao menos ele nos faz lembrar de sentimentos como a esperança, o amor, a vontade e a determinação e isso por si só já faz todo grito de gol valer a pena.

Anônimo disse...

Do livro FUTEBOL AO SOL E À SOMBRA, do uruguaio Eduardo Galeano:
"Uma jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Sölle:
' - Como a senhora explicaria a um menino o que é a felicidade ?'
' - Não explicaria - respondeu - Daria uma bola para que jogasse.'
"O futebol profissional faz todo o possível para castrar essa energia de felicidade, mas ela sobrevive apesar de todos os pesares. É talvez por isso que o futebol não pode deixar de ser assombroso.(...) Por mais que os tecnocratas o programem até o mínimo detalhe, por muito que os poderosos o manipulem, o futebol continua querendo ser a arte do imprevisto. Onde menos se espera salta o impossível, o anão dá uma lição ao gigante, e o negro mirrado e cambaio faz de bobo o atleta esculpido na Grécia." (p.204)