segunda-feira, 5 de junho de 2006

Juraci, a "Raínha do Real".

Encontrei-a a semana passada, mas, por força das circunstâncias, só hoje pude escrever sobre esta criatura. Chama-se Juraci, se denomina “Rainha do Real”, e já foi apelidada de “Jura é um real”, porque atende, faz curas, reza, lê cartas, tudo por um real.

“Se quiser dar dois reais, eu aceito”, diz ela, ao lado de uma enorme quantidade de bugingangas, na Praça Maciel Pinheiro, ali no centro do Recife. Apesar de estar entre a rua do Hospício e a Imperatriz, ela briga com quem a chama de doida, e pende mais para o lado da majestade mesmo.

Nosso encontro começou de mal jeito. Eu estava com uma câmera, tirando fotos do povo nas calçadas, e esbarrei na criatura, que já conhecia de ouvido. De longe, tirei uma foto, e ela pegou um guarda-chuva do arco da velha, escondeu-se debaixo de uma barraquinha improvisada. Parecia que estava levando uma saraivada de tiros. Ficou mesmo assustada. Guardei a máquina, me aproximei. Ela estava agoniada mesmo.

“É que fotografia altera minhas energias, meus os raios ultra-violeta são afetados”, disse, olhando para minhas mãos, à procura da máquina.

“Tirei uma foto da praça, de longe, e já guardei a máquina”, disse. Só depois de uns cinco minutos de aproximação e conversa mole, ela baixou a guarda. Melhor: baixou o guarda-chuva.

"Jura é um real" tem os dedos cheios de anéis feitos dos materiais mais diversos, como pedaços de plástico bem grossos, ferros de origem imprecisa, badulaques, usa roupa em cima de roupa, tem uma espécie de cocar inusitado na cabeça, carrega óculos escuros na ponta do nariz, que deve ter custado R$ 0,99 ali por perto, já com a lente, de cor incerta, caindo. Diz que mora num apartamento ali perto, mas durante o dia, toma conta daquele pedaço.

“Sou a responsável pelas pequenas causas daqui”, explica sorrindo, e aproveito para me sentar no banco, ao lado de sua tenda.

Conversa vai, conversa vem, Jura me mostra as cartas, uma mistura de cartões telefônicos velhos, imagens de políticos, santos e santas, cartas de baralho, o escambau. Peço para ela ler minhas cartas, ela vai passando tudo, sem embaralhar, diz que vou ganhar muito dinheiro, diz que sou deveras inteligente, comenta certas coisas da minha vida sentimental que não vem ao caso, penso em perguntar se o Santa Cruz vai permanecer na Primeira Divisão, mas os assuntos vão aparecendo, aos borbotões, e acho que não cai bem misturar futebol com espiritualidade. Coisas que se encaixam se misturam às irrealidades de Jura. Resumindo, eu acredito no que quero, no que é bom, e descarto as viagens transcedentais.

Jura me conta que sou filho de Iemanjá, que terei que fazer oferendas ao mar, na forma de peixe assado. “Sempre peixe, suas oferendas têm que ser peixe”, diz, muito séria. Só nessa hora entendi porque gosto tanto de sardinha. Depois me explica que tem poderes de cura, porque é uma das poucas pessoas no planeta que têm a possibilidade de falar diretamente com Jesus Cristo, uma linha direta mesmo, sem pontes. Jura é tão poderosa, que descobriu um problema sério nas mulheres do Recife, um problema de saúde que me pareceu grave (sem entrar em mais detalhes, por questões éticas, creio), mas antecipou que está curando todas, absolutamente todas, sem que elas saibam. Falou também que está protegendo Lula, e por isso ele vai ficar mais quatro anos.

“Jura é muito poderosa”, me informa, com um sorriso.

Fiquei sabendo que ela também desenvolveu um aparelho de raio laser, capaz de decifrar todos os males de qualquer pessoa. Com o aparelho, uma espécie de binóculo remendado com várias tiras de pano amarrando, Jura faz o diagnóstico e passa o remédio, que você pode comprar em farmácias, ou no Mercado de São José. Essa consulta, que envolve energias especiais, raios infra-vermelhos, matéria cósmica, Jura cobra mais caro, começando com R$ 20,00. É preciso pechinchar bastante, para chegar aos R$ 10,00.

A “consulta” no banco da praça só terminou porque eu tinha uma reunião às 18h, e já eram 17h15. Paguei com gosto os R$ 2,00 e saí pela rua da Imperatriz. Em todas as lojas, os vendedores estavam fantasiados de verde e amarelo, e criavam, às duras penas, uma alegria derradeira, para atrair os últimos clientes. Na frente da C&A, creio, os promotores de venda faziam uma batucada meia-boca, aos gritos “faça o seu cartão agora”. Os pedestres caminhavam apressados e não vi ninguém fazer cartão nenhum, mesmo com a batucada.

Passei na velha Cristal, ali na rua do Imperador, pedi um café e uma coxinha. A senhora que me atendeu perguntou:

“Ainda estás no Diário?”.

Caramba, a mulher do café lembrava de mim, quando eu tomava umas pela Cristal, com o velho Zé Maria e o pilantra do Otávio. Mas isso foi em 1994, há 12 anos...

“Não, saí faz tempo”, respondi.

Atravessei a última ponte num galope manso, pensando na vida e nas besteiras de sempre. Ventava pra dedéu. Fiquei pensando na conversa com Jura. Acho que ela acertou em várias coisas. Mas o que gostei mesmo foi dela, a criatura com seus badulaques, suas coisas, brincos, anéis. No íntimo, ela me pareceu uma figura feliz, com um sorriso aberto, franco. "Sou uma pessoa que cura", disse várias vezes.

Qualquer hora, voltarei lá, e pedirei a utilização dos raios infra-vermelhos, para um diagnóstico completo. Quem sabe me ajude a ver melhor as coisas e a me curar de outras. Eu gosto de gente assim.

Como sou meio pirangueiro, só pagarei R$ 10,00.

11 comentários:

Anônimo disse...

...a velha magia do cotidiano.

abs

na arquibancada
com radinho.

G.

Conrado Falbo disse...

já faz tempo que frenqüento este blog (acompanho as crônicas desde o tempo do JC online), mas nunca tinha comentado.

hoje resolvi deixar umas linhas aqui, só pra dizer que esses textos já fazem parte do corriqueiro miúdo do meu todo-dia.

agradeço por mais uma alegria insignificante que não há de ser imprensada pela importância de compromisso nem obrigação nenhuma: ela é leve demais pra ser afetada...

Anônimo disse...

cenas do cotidiano que não percebemos. O espaço público é isto ai. Rico. Autentico. Livre.

Anônimo disse...

cenas do cotidiano que não percebemos. O espaço público é isto ai. Rico. Autentico. Livre.

Anônimo disse...

cenas do cotidiano que não percebemos. O espaço público é isto ai. Rico. Autentico. Livre.

cometaurbano disse...

Sama,

a Jura atende pedidos de lugares distantes? Põe o nome "Paulinho BH" em um papelzinho e deixa com a Jura. Quem sabe dá certo? Abração do mano PH

Anônimo disse...

Samarone, tuas crônicas desenham a cara do Recife nessas figuras maravilhosas alçadas à condição de pequenos heróis, nesse mundão de miudezas que é esta cidade apaixonante e atormentada como nós mesmos.

Anônimo disse...

Esses tipos maravlhosos que você mostra pra nós... eita blog gostoso de ler.

Anônimo disse...

Como é bom ver beleza em coisas tão corriqueiras que sempre estiveram ali e muitas vezes não as notamos.

Anônimo disse...

Interesting website with a lot of resources and detailed explanations.
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Tiago Nobel disse...

Sama, tem uma capa de um disco solo de Herbert Vianna, "O som do sim" que a foto da capa é justamente Juraci com seu indefectível batom. Na contra capa Herbert "cópia" a pose da foto. Abração!