segunda-feira, 26 de junho de 2006

Um olhar perdido numa tarde chuvosa

Foi semana passada, em meio às muitas viagens que estou fazendo para o Cabo de Santo Agostinho, para a casa de uma tia-avó, que já vai na casa dos 79, bem recuperada de um infortúnio, o tal do derrame.

Estava chovendo, e a avenida Dantas Barreto estava gelada, acreditem. Era tardinha, e um vento forte soprava, a gente tentava se proteger, e o diabo do ônibus Centro do Cabo não chegava nunca. Todos os guarda-chuvas se revelavam inúteis, e os abrigos dos pontos de ônibus do Recife são feitos especialmente para molhar os passageiros.

No meio daquela correria toda, olhei para um senhor, que vendia milho. Um senhor negro, na faixa dos 50 anos, um sujeito bem gasto pelo tempo, com uma barba desgrenhada, meio rala, com fios brancos e duros. Estava escorado na parada do ônibus, o fogo aceso, as brasas sem queimar nada, um vento gelado molhando a gente. Muitos vendedores faziam graça, especialmente quando as saias das mulheres levantavam, eu não sabia nem que as moças do Recife gostavam tanto de saia.

O homem estava quieto, ensimesmado, para dentro. E os olhos dele me doeram. Eram olhos muito tristes. Carregavam uma tristeza profunda, algo que parecia sintetizar a dor e o sofrimento de milhões de outros, como ele, que rangem para garantir esse tão difícil pão de cada dia. Olhei várias vezes para ele, mas aos poucos, fui ficando envergonhado. Quem era eu, diante daquele homem? O que terá passado, para chegar a ter esse olhar? Com que direito eu o olhava insistentemente? Senti o que a Clarice Lispector revelou, em suas crônicas: uma espécie de descompasso com o mundo. Depois o ônibus chegou, entrei, e fui embora. Dificilmente o verei novamente. Posso até ver, mas não sei se haverá o reconhecimento, este fenômeno tão singular, que define tantos caminhos.

Mas isso não vem ao caso. Na verdade, nada vem ao caso. Eu apenas queria falar desse homem, e dessa gente que às vezes vaga pelas ruas, tentando vender um milho, uma pipoca, uma tapioca, um pedaço de qualquer coisa, que possa se transformar em outra coisa, essa outra coisa que chamam, por aí, de esperança.

5 comentários:

Anônimo disse...

E essas pessoas, muitas das quais não existem nas estatísticas do IBGE, também sonham com outras realidades. E te parafraseando, acredito que para enfrentar o hoje tão dolorido, se dão de presente um passado que não existiu e um futuro que não virá jamais.
Bj, Ane.

Anônimo disse...

muitos são os homens de olhos tristes
muitos trazem a tristeza estampada no coração
mas a maioria, creio eu,
são tristes por inteiro.

G.

Anônimo disse...

Dessa gente que vemos na rua a que nunca hei de esquecer foi uma mendiga na praça. Eu passeava com o Ralf, meu saudoso pastor alemão. A mendiga olhou e disse: Que cachorro bonito, benza-o Deus. Puxei o Ralf pela guia e voltei pra casa correndo, segurando as lágrimas. O Ralf tinha tudo que ela não tinha: casa, comida e muito amor. E eu me senti culpada. Só depois me dei conta que errado não era o Ralf ter tudo isso, era a mendiga não ter o mesmo.

Naeno disse...

o amor só serve para deixar saudades1!

Naeno disse...

ALÔ

Alô poeta,
se é que me ouves...
alô, sou eu!
Se sentes fundo
a dor do mundo,
alô, sou eu!
Se o desespero
cai sobre mim -
quem veio ao mundo
sofrer assim -
Alô, quem fala,
no outro rumo,
assim tão alto.
É interurbana,
é suburbana,
a poesia.
E a alegria?
a minha fala,
ouves também?
Alô poeta,
eu ouço bem.
A poesia é este embaraço
Alô! Bateu,
bateu no coração,
o amor e a emoçãoi.
Alô poeta, me ouves bem?
a minha voz,
ouves também?