sexta-feira, 2 de junho de 2006

Os rios da memória

Volto ao lugar onde morei, entre 1992 e 1994: a casa da tia-avó Flocely, numa rua sem saída, por detrás da igreja. Quando cheguei, vindo de quatro anos de Casa do Estudante Universitário, ela estava com 65 anos, e encerrava sua carreira como diretora de escola, uma mulher comprometida e engajada com o ensino de qualidade. Eu estava com reles 23, e começava minha vida de jornalista. Era um estagiário no caderno de Vida Urbana, do Diário de Pernambuco.


Foram dois anos de uma convivência amorosa. Tia, sem marido ou filhos, eu, sem mulher ou filhos, com a família distante, insistindo em tocar saxofone por várias horas, arruinando certamente seu ouvido e a tranquilidade da vizinhança. Mas um dia, o jornalismo falou mais alto e tive que ir para São Paulo. Nossa despedida, durante o almoço, foi silenciosa, lágrimas escorrendo pelo rosto, se misturando à comida que não tinha gosto.


Agora, tudo se modificou. Na segunda-feira, depois de uma grande chateação, tia sofreu um derrame. Foi atendida a tempo, e não afetou o corpo. Mas o cérebro, sempre tão lúcido, a cabeça sempre antenada com a realidade do país, o humor, as respostas rápidas, foi atingido. Desde a segunda-feira, os tempos e lembranças se misturaram. Presente, passado e talvez até o futuro, dialogam por entre as frases e devaneios.


É como se o rio da memória não fizesse um percurso claro. É como se a cada curva, surgisse outro rio, braços de bar, estuários dentro de estuários, água doce e salgada se misturando. É como se a ampulheta estivesse de pé, depois virada ao avesso, e por momentos permanecesse deitada, com a areia do tempo sem dizer nada, enquanto respiramos o hoje.


Desde a segunda, tia às vezes chama Renato, filho da valorosa Rosa, seu braço direito, de “Zelito”, que é o nome do irmão, morto há alguns anos. Há momentos em que surgem pessoas e se instalam na conversa, enquanto tomamos café e falamos sobre coisas imprecisas, no aprendizado das imperfeições, que espero levar para a vida inteira.


Sim, a memória se tornou um rio. Minto: há vários rios que se misturam, num encontro de vidas. E ontem, enquanto me preparava para dormir, no primeiro andar, descobri que eu também estava dando voltas no tempo, e nadava nas mesmas águas da memória, da saudade, do amor. Vi claramente aquele ano de 1992, quando eu caminhava para o fim do curso de Jornalismo, fazia estágio, chegava no Cabo já bem tarde, cansado e cheio de sonhos, e ainda encontrava uma janta morna, que ela aquecia antes de dormir.


Estou triste, me recompondo, mas sinto que há um certo egoísmo nisso, em querer tudo intacto, como se viver não fosse também deixar uns pedaços pelo caminho. Decido apenas estar mais perto, fazer junto este percurso entre a névoa, a neblina, a penumbra. Quero estar junto, ao lado, rindo com a mistura dos nomes dos parentes, dos fatos, ajudando a relembrar certas coisas da família, permitindo também o esquecimento, quando a saudade não chegar a tempo.


No fundo, talvez seja uma penumbra compartilhada, atravessada pelos rios da memória, o que pode ser traduzido também como amor, esse eterno encontro entre o lembrar e o esquecer.

Nota: Obrigado aos leitores pelos comentários tão cheios de beleza e força. Informo que nos últimos dias, a tia teve uma recuperação fantástica, algo mesmo surpreendente, mas revelador de sua força e amor à vida, aos 79 anos.

Logo mais, coloco outra crônica no ar.

Samarone, 5 de junho de 2006.

16 comentários:

Anônimo disse...

Querido Samarone,

o rio da memória da minha avó por muitos anos não fez um percurso claro. Ríamos com a mistura dos nomes, dos fatos. Lembro que era extremamente compensador o abraço que nos dava, dizendo que éramos alguém da família mesmo sem saber quem era. Ao ler a crônica senti saudade do abraço e do sorriso. É verdade, sempre queremos manter tudo intacto.

Se cuida!

Um abraço na alma.

Anônimo disse...

"Penumbra compartida"

Sei o que queres dizer, velho amigo.

Sama, hoje, estudos clínicos mostram que a memória pode ser reestimulada, nesses casos, pela lembrança da poesia. Pergunte à Flocely, sua tia, se ela lembra das poesia da infância. E peça para ela recitar.

Este é um efeito que a ciência ainda não sabe explicar: porque as pessoas atingidas com lesões cerebrais, ou com Parksinon, lembram das poesias.

seu gustavo.

Anônimo disse...

Sama
Eu tento imaginar a tua dor, pois já passei por momento semelhante com a minha mãe, em 2004 que felizmente recuperou a memória (ela não falava coisa com coisa, nos 15 primeiros dias depois do AVC). Depois, graças a Deus, ela se recuperou e não ficou com nenhuma sequela. Penso que é importante a tua tia sentir o amor dos que ela ama, independentemente de saber quem são.
Uma boa saúde para a tua tia e muita paz no teu coração.

Anônimo disse...

Belissima crônica, me emocionou muito! Forte abraço!

Ass: Anônimo

Anônimo disse...

Sama,
Sua alma de escritor lhe dá a capacidade de explorar a beleza até da dor.
Ao ler suas palavras você nos conduz por uma dimensão mágica, um caminho exclusivo que nos faz ver para além delas, nos faz sentir com todas as cores os sentimentos que você expressa.
Obrigada por suas crônicas!
beijo grande

Anônimo disse...

oi, Samarone!
Muito obrigada sempre por compartilhar conosco teu belíssimo olhar sobre a vida!!!
um belíssimo sábado!
um abraco,
Claudia

Anônimo disse...

Samarone Lima...
:*

Anônimo disse...

Sama querido,
Estamos aqui, para o que precisar...
Beijo

cometaurbano disse...

Sama,

paciência e ternura. Qualidades que vc já tem de sobra ajudam neste momento delicado. Saudades. PH

Anônimo disse...

Sama, meu querido,
"Conheço" tia Flocely de outras crônicas suas e senti sua dor hoje. Estava escutando o Adagio de Albinoni e seu relato me trouxe lágrimas aos olhos. Você, do mesmo modo que minha irmã Beth Salgueiro que perdeu o grande amor depois de um transplante, fala de forma poética da dor profunda que sente. E, como no filme Unconditional Love, a vida em seu compromisso clichê de ser o que é, nos ensina que é no inusitado que tudo, enfim, se faz óbvio e que o amor incondicional é amar sem precisar ser amado de volta. Sorte sua que esse amor incondicional é recíproco entre você e tia Flocely. Mas, aceite a sugestão de Gustavo e lembre a ela as poesias que deve ter declamado com seus alunos. Já se sabe que a arte em qualquer de suas formas é capaz de reativar neurônios adormecidos por problemas diversos. Declame com elas os poemas que ela lembrar, cante com ela as músicas que ela gosta e você vai sentir que, de mansinho, cada rio estará seguindo seu leito e as águas doces não estarão mais se misturando com as salgadas. Eu, aqui, vou ficar mentalmente conversando com ela sobre nossa maravilhosa profissão de desbravadora de idéias. No mais, não se preocupe por estar sendo egoista. Você é humano e tem esse direito. Fique aí, participe, compartilhe lembranças e esquecimentos. Até chore, se sentir vontade. Só não perca essa doçura de ver o íntimo de cada coisa, de cada cena da vida.
Pra você, o meu carinho e um cheiro de mãe.

Anônimo disse...

Samarone
já passei por coisa parecida e, no meu caso, falar sobre o que estava sentindo, como você está fazendo, foi um dos mecanismos para ajudar a aliviar a dor.
Comungo com o que Anna disse

Anônimo disse...

Palavras lindas.
Lindas e vivas, como tudo que permanece gravado em nossa alma.

Beijo grande.

Anônimo disse...

Samarone querido, leio sempre as suas palavras e sempre quero te dizer como elas mexem comigo, com meus sentimentos. Começo a escrever um comentário e acabo apagando porque acho que me considero mais íntima do que realmente sou e me sinto boba de te achar tão próximo a mim. Tem ainda a insegurança de escrever bobagens...ultimamente, tenho a nítida sensação de ler suas palavras pra saber de mim! Tão doi do isso, né? Mas eu tenho a sensação que você fala do jeitinho que eu gostaria de conseguir falar, com a fidelidade e a beleza que você fala. E agora vem você, nesse momento com sua tia que eu tb tô passando com meu avô por outro problema. Enfim, criei coragem de escrever, mas nem sei o que te dizer. Queria escrever o silêncio gostoso e a felicidade depois de ler suas crônicas; Queria escrever a minha solidariedade de saber exatamente o que você sente, mas que eu não tenho o que falar. Um beijo muito grande, maior do que vc!

Anônimo disse...

Esqueci de falar uma coisa muito importante: uma das coisas que me mantém em pé é saber que na doença da minha irmã eu dei tudo de mim, estive perto em todas as horas. Isso com certeza, vai te deixar bem também. Um beijo

Anônimo disse...

Que texto lindo, Samarone. A cada crônica, me encanto mais pelo grande escritor que você é.
Que Deus te mantenha sempre assim, um homem simples de lindas palavras e percepções fantásticas.
Rejane.

Anônimo disse...

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