Estou no Bairro do Recife, perambulando. É noite, já fiz tudo que precisava fazer, procuro um boteco copo sujo, pé-de-escada, algo assim, sem gente da moda. Esbarro no fiteiro do Nelson. Encosto. Como sempre, aquela tuia de populares, espalhados, divididos entre a fome e a sede. Peço uma cerveja. Nelson me avisa que não está muito gelada. Quando o dono do bar diz isso, pode ter certeza que a cerveja está fervendo. Por precaução, pego na Nova Schin, quase tenho queimaduras de terceiro grau. Tem latinha? Tem, está geladinha. Vamos nessa.
Aparece um banco, desse altos, que dá para o sujeito se escorar no balcão. O negócio tem 2,5 de extensão e 93 centímetros de profundidade, pelos meus cálculos aproximados. Nelson não se mexe lá dentro, ele se esgueira. Pratos do dia: fígado de galinha, galinha (só a galinha), guisado e charque, fora o feijão preto com charque, que eu vou dizer.
Nelson é tamanho médio, cabelos lisos e esparramados, parece um advogado em fim de carreira, mesmo sem ter feito carreira. Fala pouco, dá respostas secas, mas é como Seu Vital – finge que é durão. No final, sempre entrega os pontos.
“Você pode dizer o que disser, seu miserável!”, diz um homem sem camisa, a voz pastosa de quem bebe e fuma desde o ventre da mãe.
Aqui vai dar samba, é o que penso, já puxando meu bloquinho.
Passa um gari, varrendo restos de copos. Não sabia que gari trabalhava até nove da noite.
“Nelson, me dá uma meia ai. Tira-gosto, o que é que tem?”
“Você escolhe”, responde Nelson, mais duro que um poste novo. “Pode sentar na mesa ali”.
Tem uma mesa solitária, boiando naquela rua lateral à Rio Branco, que não lembro o nome, sou péssimo com nomes de ruas. Mas é uma rua estreita, poética e desarrumada, como muitas do Bairro.
“Ôx, tu quer o quê? Galinha?”, pergunta uma mulher, com os trejeitos de quem vinha bebendo desde antes do dilúvio.
“Galinha não”, responde o camarada, com enfado.
“Tomei foi um tombo desgraçado nessa gota serena”, diz Voz Pastosa, que ia e voltava com freqüência.
“Bote a rapaziada ali, mas almoço é almoço, e tira-gosto é tira-gosto”, explica Nelson.
“O Satanás toma conta de mim”, diz Voz Pastosa, que está com um pequeno balde de plástico. Dentro, arroz e pedaços de carne, fornecidos por Nelson, obviamente.
“Se quiser comer, coma. Se não quiser, jogue fora”, diz Nelson, um verdadeiro sargento.
“O Santanás toma conta de mim. Ou Deus. Tanto faz, é a mesma coisa”, segue Voz Pastosa.
Chega um negro delgado, sem esperança nos olhos, um homem que perdeu algo na vida, e jamais reencontrou. Me olha e faz uma pergunta, em tom baixo.
“Tem um cigarro, amigo?”
Maldição. Dei todos os meus cigarros cubanos ao Iramarai.
“Tenho não, amigo”.
Ele sai, desolado. O cara que não fuma tem essa desvantagem - não compartilha cigarros com desconhecidos.
“Quer galinha ou charque?”, pergunta Nelson Sargento.
Um camarada barrigudo, com muita vontade de comer, sem camisa, responde.
“Bote ai, esses dois contos”.
“Dois contos não tem mais não. Tu sabe quanto está o quilo de feijão?”
“Ôx, bote menos feijão”, diz Vontade de Comer.
Silêncio. Os dois refletem. Há uma negociação no ar. Quem vencerá?
“Então bote dois e meio”, diz Vontade.
Voz Pastosa chega de novo. Todo boteco que se preze, o mais vagabundo, tem o bêbado carrapato. Nelson Sargento o recebe com o calor humano de sempre.
“Lá vem você de novo. Tá feito galinha choca”.
“Nelson, eu quero que você me dê uma colher ou um galfo”.
“Não tem nada”.
Outro freguês reclama.
“Nelson, cadê a charque?”
“É charque ou galinha? Tu é enrolado pra comer, visse?”
Vontade de comer segue.
“Nelson, cadê o tomate?”
Nelson corta um tomate num prato.
Chega outro freguês.
“Tem o que, Nelson?”
Todo mundo ali conhece o Nelson. Agora, eu também.
“Tem feijão, cuscuz, galinha e charque”.
“Bota uma galinha”.
Nelson agora corta uma cebola para Vontade de Comer. Depois, empurra um pote com sal e completa.
“Vinagre não tem não”.
Vontade de Comer dá três colheradas de verdade, mastiga com força usando os poucos dentes, e reclama de novo.
“Cadê a água, Nelson?”
Nelson bota uma garrafa d´água, o sujeito bebe meio copo. Mais três colheradas rápidas, e estende o prato para Nelson.
“Bota mais um arrozinho e um caldinho, Nelson. A outra deve estar ali, me esperando”.
Nelson bota. Na mesa que estava boiando na rua, me chegam fragmentos de uma conversa.
“A consciência é dele. Eu mesmo não fui trabalhar agora à noite”.
“Não se aperreie não, fique na sua, que é melhor”.
"E o filme?"
"Eu só gosto em DCD, e minha TV está ruim. Vou comprar outra pra semana".
Vontade de comer termina. O prato, aquela imensa montanha, está em sua barriga. Ele bebe o restante da água, paga 2,50 e comenta com Nelson:
“Agora é tomar um banho e partir para o abraço”.
Pedi um tira-gosto de fígado e preparei a caneta. A noite iria render, foi o que pensei.
Na segunda latinha, acompanhei a história do roubo de uma bicicleta, informações sobre o pé-de-valsa do Alto 13 de Maio e outras lorotas. Fica para a próxima postagem, creio, se não aparecer um assunto melhor.
Para o magro Valadares, malandro recifense.
10 comentários:
Voltou, meu querido?
Que bom!
Naire
"mais duro do que um poste novo" é ótimo.
justine
ôx!
Sama, que delícia de história!
Beijo
Gabi
Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.
Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.
¡Digo que el hombre debe serlo!
(Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.)
Juan Gelman
beijos. Yvette
Cerveja gelada no Antigo é a coisa mais rara...
Não sei como me dou ao luxo (?) de pagar três reais em cerveja-quase-quente.
da uma pena danada de 'vontade de cumer'..... mas eh o nosso brasil cheio de gente passando fome....
PÔ PROFESSOR TÁ BEM LEGAL, MAS A CERVEJA GELADA NO ANTIGO É CRUEL NÉ, NINGUÉM MERECE ...
ABRAÇOS FORTES
FILHO DO VENTO
Oi Samarone, sou um assíduo leitor do seu blog, suas estórias são ótimas. Sua simplicidade e sua capacidade de descrição nos levam pra dentro dos textos, até parece que somos personagens dele. Valeu, abraço.
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