quarta-feira, 24 de agosto de 2005

Relatos sobre a vida e a morte no Mercado de Casa Amarela

Recife, 24 de agosto de 2005.

Tive o prazer de conhecê-lo há cerca de 15 dias, ali no Mercado de Casa Amarela, aquela cidade de gente, barracas e produtos, onde costumo ir, especialmente aos sábados, dia recomendado por todos os terapeutas do Recife para um divertimento sadio, que é tomar umas cervejinhas e contemplar o povo se bulindo.

O Mercado (perdão, mas é com maiúscula mesmo, em sinal de respeito) é reduto de inúmeros “boêmios do dia”, como é o caso do professor Davi, que pode ser encontrado na barraca de Mary, com a singela e esfarrapadíssima desculpa de que vai “almoçar”. Ora bolas, nunca vi almoço demorar três, quatro horas, nem o sujeito ter o telefone da proprietária do estabelecimento, para reservar a mesa e encomendar suas Brahmas. Mas isso são outros 500, voltemos ao assunto.

Estava eu quietinho, bebericando de leve, mansamente, qual um bem-te-vi em seu galho, quando ele sentou ao lado, pediu um quartinho e dois pedaços de passarinha. Para quem não sabe, quartinho é um copo americano repleto de aguardente. Não sei de onde, nem como, nem onde, nem por qual o motivo, mas a conversa nasceu, cresceu e vicejou, até que ele me falou do Cemitério de Casa Amarela, que fica por detrás do Mercado, cemitério este que só tive oportunidade de entrar duas vezes – uma no enterro do amigo Barrabás, e outra para colocar uma florzinha em seu túmulo, tudo no ano passado, que Deus o tenha.

“O cemitério fechou de novo”, lamentou meu amigo. Depois de um silêncio pesaroso, completou. “Tá foda, visse? O que está morrendo de gente, não está no gibi”. Na seqüência, deu uma bicada de com força naquela garapa que passarinho não bebe, e mordiscou a passarinha, oleosa como o quê. É assim: quando o cemitério enche, fecha para evitar transtornos. Ah, sei lá, não pedi muitos detalhes.

Meu amigo se chamava Adão Pinheiro de Carvalho, (pelo menos foi o que me disse) e trabalhava num escritório de contabilidade, além de ganhar um extra fazendo as declarações de renda dos amigos. “Sei como funciona isso tudo. De leão eu entendo melhor que domador de circo”, completou, com um sorriso de convencimento.

Mas qual foi a minha surpresa, quando Adão Pinheiro me confessou que tinha como principal atividade, aos sábados, acompanhar os enterros no cemitério de Casa Amarela. Achei esquisito, mas da espécie humana espero tudo.

“Não é nenhuma obsessão, eu sou normal”, contou ele, com uma cara meio triste e aquele bigode a la Cantinflas, mal pintado e mal aparado. Eu realmente nasci para escutar essas histórias malucas, foi o que pensei. “Mas é que eu gosto de ver o último capítulo da vida. Ao final do dia, volta para casa muito mais humilde”, completou.

Ele me olhou nos olhos, acendeu seu Oscar, um cigarro que, segundo Vital, é falsificado no próprio Paraguai, e me disse assim em segredo:

“Professor, a vida é por um triz”.

Ele sabia os detalhes do funcionamento do cemitério, conhecia os coveiros pelo nome e apelido, explicou os setores, informou sobre as mulheres que cuidavam dos túmulos muitos anos após a morte dos respectivos maridos, enfim. Sabia de muitas histórias.

“Um dia, cinco coveiros botaram uma farinha no almoço e estava envenenada. Os cinco morreram horas depois, inclusive um que estava no primeiro dia de trabalho. Desse foi que eu tive pena. A imprensa não publicou uma linha, eu não entendo esses jornalistas”, disse.

Ele sabia também os preços das coroas de flores, o tempo que a família tem para desocupar uma gaveta, as taxas do cemitério. Depois de muitos anos de convivência com o mundo dos mortos, disse que o enterro mais triste de sua vida aconteceu há coisa de cinco anos, num sábado de chuva forte. Até desabamento de casa teve. O que chamou a atenção do meu amigo, naquele dia, foi que o carro da funerária levou o caixão e o deixou em cima da pedra. Nenhum parente ou amigo fora ao velório.

“A gente acha tanta coisa ruim na vida, mas ruim é morrer só, professor”.

Fiquei paradinho. Ele bebeu mais um gole, pediu outro quartinho e afastou a passarinha. “Perco até a fome quando lembro disso”.

Ele percebeu meu interesse e se aproximou.

“Fiquei ao lado, para dar uma força, esperando chegar alguém. Mais de uma em pé, ao lado do morto, e ninguém”.

“E ai?”, perguntei.

“E aí, professor, o senhor deixaria uma pessoa ser enterrada sozinha?”

Bem, ele tinha razão. Ligou para a irmã, Jésssica, que morava por perto, ali na avenida Norte. Explicou a situação, pediu que ela também acompanhasse o enterro, era um ato de compaixão.

“Estás ficando é doido”, respondeu a irmã, antes de desligar o telefone.

Quando o coveiro chegou, perguntou se meu amigo era o irmão do morto. Adão não soube me explicar o motivo, mas, num impulso, respondeu que sim. O coveiro, de nome Venceslau, também chamado de Lalau, disse que iria terminar logo, porque estava chovendo muito e teria tempo de jogar um dominó ali perto. Adão pediu cinco minutos e comprou uma coroa de flores, dessas de vinte e cinco reais. Acompanhou em silêncio o cortejo solitário até a gaveta (2234, jogou no bicho, mas não deu).

Enquanto o coveiro fazia seu trabalho, olhou pela primeira vez o rosto do morto. O que teria feito para ser enterrado sozinho? Mesmo sem crenças, ele rezou duas ave-marias. Aprendeu que se reza aos mortos. Depois, sentiu uma tristeza imensa, como se tivesse de repente alguém da família morrendo, e comentou com o coveiro:

“Ninguém merece morrer sozinho”.

“Ruim mesmo é viver sozinho”, respondeu Lalau.

Adão voltou do enterro, encostou numa barraquinha e mandou ver na sua garapa. Me contou que na época do enterro do solitário, estava intrigado do irmão mais velho, por causa de uma confusão envolvendo um dinheiro emprestado. “Coisas de família”, disse.

Saiu do mercado e resolveu telefonar para o irmão.

“Eu tinha perdido alguém que nem conhecia, então achei que era justo reencontrar um irmão que estava perdendo”, contou. O irmão de Adão ficou surpreso com o telefonema, mas também disse que vinha pensando em fazer um contato. Dois dias depois, se encontraram e tudo ficou resolvido. O irmão morreu ano passado, mas sem intrigas, graças ao morto de ninguém.

Depois de me contar sua história, Adão fez um silêncio, acendeu outro cigarro e ficou olhando para o nada, longe, com aqueles olhos perdidos, talvez lembrando que a morte é mesmo por um triz.

“Sei que é ruim viver sozinho, mas ninguém merece morrer sozinho, professor. Escreva o que eu digo, ninguém merece morrer sozinho”.

Então, eu escrevi.

17 comentários:

Anônimo disse...

"Vocês dirão que é pura estupidez a minha,que é um desatino lamentar-se da sorte,inda mais desta terra pasma onde nos esqueceu o destino.

A verdade é que dá muito trabalho se aclimatar à fome.

e ainda que digam que a fome
repartida entre muitos
vira menos fome, a única coisa certa é que todos aqui
estamos meio a morrer e não temos nem mesmo onde cair mortos.

Ao que parece a perversa vem direto para nós.
Nada de dar nó cego a esse assunto.
Nada disso.
Desde que o mundo é mundo
desandamos a andar com o umbigo grudado no espinhaço e nos agarrando ao vento com as unhas.

Nos regateiam até a sombra,
e apesar de tudo continuamos assim:
meio atordoados pelo sol maldito
que nos afunda dia a dia aos pedaços, sempre com a mesma seringa, como se o rescaldo quisesse reviver mais.
Embora a gente saiba muito bem
que nem ardendo em brasas
acenderá a nossa sorte.

Mas somos teimosos.
Talvez isto tenha conserto.

O mundo está inundado de gente feito a gente, de muita gente feito a gente.
E alguém tem que nos ouvir,
alguém e mais alguns, embora arrebentem ou devolvam nossos gritos.

Não é que sejamos rebeldes, nem que estejamos pedindo esmola à lua.
Nem está em nosso caminho buscar depressa a pocilga, ou arrancar para a montanha cada vez que os cães nos esfaqueiem.

Alguém terá que nos ouvir.

Quando deixarmos de roncar feito vespas em enxame, ou nos volvermos cauda de redemoinho, ou quando terminarmos por escorrer sobre a terra como um relâmpago de mortos,
então talvez chegue a todos o remédio.

Juan Julfo

um beijo carinhoso pela linda crônica

Anônimo disse...

O que é pior: viver ou morrer na solidão?

Tanto faz.

O homem nunca encontrará mesmo a outra metade do seu coração.

G.

Anônimo disse...

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Samarone

Sempre se revelando... Linda história.

Aquele abraço, Priscila

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Anônimo disse...

otima cronica Sama!
agora imagina se Adao Pinheiro se encontrar com Epifanio Rodrigues...
beijos.

Mariana Mesquita disse...

Linda. Parece Rubem Braga. Merecia ser publicada - aliás, tá sendo... Grande descrição, amei seu estilo.

Anônimo disse...

Sama,
Mais uma vez obrigado por nos mostrar as pequenas-coisas-urgentes-da-vida.

Aquele abraço

Anônimo disse...

Sama, cada dia as suas crônicas ficam melhores. Saudades do mano de BH. PH

Anônimo disse...

Belíssima reflexão sobre a vida. Ou será sobre a solidão, sobre a morte??? Seja pelo que for, vale a pena ler e refletir. Sama, mais uma vez parabéns... suas palavras são maravilhosas.
Beijos

Anônimo disse...

Sama,

Você deveria se candidatar a Vereador!! Militantes não iriam faltar.
Você poderia começar a dar os primeiros passos, para tentarmos juntos, mudar alguma coisa!

Abraços!

Rafael

Aqui vai:

Grande Samarone Lima
Homem lutador
Cheio de garra
Que sempre dá a volta por cima

Nova esperança
Brilhando pro nosso futuro
Para começar algo novo
E acabar essa lambança

Vamos gritar com ardor
Durante as próximas eleições
Todos os militantes juntos
Sama para Vereador!

Anônimo disse...

Sama para vereador. Este já tem o meu voto. Slogan da campanha: Em vez do mensalão, o homem da emoção! Rafael, o que vc acha? Abraços do PH

Anônimo disse...

PH, e quanto a: "Em vez do mensalão, o homem da caneta na mão! Samarone!"?....Tem meu voto.

Anônimo disse...

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Samarone Lima disse...

Amigos, obrigado pela indicação ao cargo de vereador, mas estou cada vez mais querendo ficar quieto no meu canto, escrevendo minhas besteirinhas. E pelo amor de Deus, alguém me ajude! Não sei o que fazer com essa tuia de email em inglês que tem chegado ao coitado do estuário. Desconfio que é infiltração da oposição, ou algum vacilo do meu blog.
abraço a todos.