segunda-feira, 29 de agosto de 2005

"Tchau, guaranau"

Recife, 29 de agosto de 2005.


Foi Sidclay quem disse uma vez, aqui mesmo, na esquina da Vital, e nunca mais esqueci:

“Tchau, guaranau”.

É a forma que ele encontrou para dizer que alguma coisa tinha acabado, ou dado errado, ou sei lá, que algo tinha ido para o brejo. E sempre lembro da frase quando algo está mesmo terminando comigo, seja de trabalho, de sentimentos, afetos, projetos. Ruim mesmo é quando algo está acabando ou já acabou e não sabemos.

Um dos textos mais belos do Paulo Mendes Campos intitula-se “O amor acaba” e é de uma franqueza dolorosa, mas necessária. “O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite voltada à alegria póstuma, que não veio”.

O texto é lindo, dá vontade de copiá-lo inteiro, mas também preciso terminar de escrever minha cronicazinha, antes de mais uma viagem pelo Unicef. Aliás, já posso até ser pai, porque o que estou entendendo de criança e adolescente, não está no gibi.

Pois bem. Onde estávamos? Ah, no “Tchau, guaranau” que Sidclay me disse, uma vez, e que nunca mais esqueci. E andei pensando justamente nisso, no raro momento em que algo quebra, ou erra, ou termina. É de forma silenciosa que as coisas vão mais fundo, seja o amor, a mágoa, a tristeza.

Talvez esteja escrevendo isso porque na tarde do sábado magoei um grande amigo, em meio a uma conversa desajeitada sobre uma empreitada que estamos levando adiante. A conversa estava ruim, é certo, mas a certo momento eu me levantei e fui embora. Assim, no meio do turbilhão de coisas que precisávamos discutir e resolver, eu saí, num rompante. Não, eu não saí num rompante, saí num galope, porque foi uma cavalice, o que fiz. Lembram da expressão “Esse é um cavalo batizado”? Era eu, este cavalo, na tarde de sábado.

Ontem, fui à sua casa com uma cesta de humildades polidas durante a noite, mas ele não estava. Hoje, viajarei e ficarei fora dois dias. Lá para quarta-feira poderei tentar consertar o erro, minimizar o estrago. Não, de forma alguma eu quero receber um “tchau, guaranau” deste grande amigo, e acho que nem é o caso, mas compartilho essa tristeza com meus singelos leitores, que é para doer menos.

Porque não é só o amor que acaba depois duma noite voltada à alegria póstuma que não veio. A amizade acaba no meio de uma discussão desajeitada, no início de uma tarde de sábado. Desconfio que as coisas mais importantes acabem sem a gente nem perceber.

A gente nunca sabe exatamente quando um governo acaba, mas acaba. Algum de vocês lembra o dia em que a juventude acabou? Não, a juventude acaba a e gente não sabe direito quando foi, nem como, nem onde. Quem conseguiu registrar o dia em que envelheceu? A pessoa se olha no espelho, mexe os cabelos, faz umas caretas e diz para si mesma: “envelheci”. Esse dia nunca é um dia exato, ele vai chegando de mansinho, desde o nascimento, creio. Alguém sabe quando se decepcionou de fato com alguém? Não parece que a decepção é uma soma de pequenas decepções?

Já ganhei muitos “Tchau, guaranau” na vida. Doem como o quê. Mas até a dor tem isso – a gente nunca sabe exatamente quando algo parou de doer. Tive uma separação muito dolorosa, de uma pessoa que amava profundamente, e a dor era tanta, que eu tinha certeza absoluta que nunca iria parar de doer. Não era uma certezazinha qualquer, era certeza absoluta, imensa, irrevogável, dilacerante. Um dia parou de doer, não lembro quando foi, nem como foi, nem onde eu estava. Apenas parou de doer.

Hoje, quando algo dói intensamente, lembro dos muitos “tchaus” que recebi, e inda estou aqui, inteiro, seguindo, me encantando com as pessoas, com as coisas, me recompondo, mesmo sabendo que algumas vezes tudo fica turvo, feio, pesado. Tenho a tendência a levar as coisas numa boa, mas às vezes o bicho pega, e me lasco mesmo, fico gravemente ferido mas escapo vivo.

Então, Davi, você me desculpe pelo sábado, e não venha me dar um “Tchau guaranau”, porque ainda temos muito chão pela frente, eu só estava num dia ruim e obrigado pelo vinho que ganhei antes do rompante, aliás, da cavalice, eu já bebi o vinho todo para tentar me consolar mas não teve jeito, então seguem estas singelas palavras, que é para você não me achar tão feio assim.

10 comentários:

Anônimo disse...

Meu filho, quando a amizade é verdadeira meia-palavra basta para se recompor o que o desastre destruiu. Meia-palavra do "cavalo-batizado" com meia-palavra do amigo ofendido e tudo se resolve. Quando você voltar, procure novamente Davi e juntem as meias-palavras porque a amizade não acabou. Com tamanha sinceridade, não há como não ser perdoado. Torço por você. Beijinho de mãe.

Anônimo disse...

Sama,
Os melhores relacionamentos são construídos por rompantes, assim, é possível conhecer melhor o outro. A amizade verdadeira não acaba, tenha certeza, pelo contrário, ela amadurece e se equilibra. Você falou muita coisa importante nessa crônica, muitas reflexões para um início de semana. Obrigada pelas belas palavras. Tenho certeza que Davi entendeu seu momento, no qual você se achou "cavalo-batizado". Isso é coisa de ser humano. Vai com DEUS! boa viagem... Fique bem. Beijo, Andreia Santos

Anônimo disse...

Sama,todos nós somos "cavalos-batizados" uma vez na vida e nem por isso os vínculos são quebrados, quando o afeto é verdadeiro.Quem errou pouco interessa, quando se tem a consciência do erro e o pedido de desculpas regenerador. Segue em paz, meu querido, certo de que tua amizade possivelmente, depois dessa, ficará mais forte, pois precisamos muitas vezes experimentar os extremos para encontrar o caminho do meio. Posso te dizer isso de carteirinha.Beijão! Magna.

Anônimo disse...

Erros vêm sempre na hora certa. Na hora em que devemos aprender, seja o que for. E estamos aprendendo sempre, certo?! Reconhecer o erro e ser perdoado deveriam ser sempre conseqüência.

Adaptação - o ser humano sempre consegue voltar a si, mesmo que tenha sentido a pior das dores; até essa que citou: imensa, irrevogável, dilacerante. Adaptação. Não fosse isso, nada nos faria seguir em frente.

Anônimo disse...

É importante não deixar esfriar... Não desperdice a oportunidade de esclarecer tudo logo que puder, pois a mente humana acaba "viajando" demais no silêncio e pode aportar em algum cais suspeito, na falta de um horizonte límpido. Eu sei a falta que faz um bom amigo e não desejo esse sentimento a ninguém, portanto... boa jornada!

Anônimo disse...

Já passou
Chico Buarque/1980

Já passou, já passou
Se você quer saber
Eu já sarei, já curou
Me pegou de mal jeito
Mas não foi nada, estancou

Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou

[...]

Mas já passou, já passou
Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou

Anônimo disse...

De que vale uma amizade sem desavenças? São estas que nos fortalecem para a vida e transpiram o amor que vai crescendo e amadurecendo! Assim como você e Davi!!! Beijos,Carolina.

Anônimo disse...

Olá Samarone. Amei a crônica, linda, profunda! Realmente, às vezes temos a síndrome do alazão... Damos coice em todo o mundo, até sem perceber... Felizmente uma boa conversa e um pedido de desculpas sincero têm o poder de cura que todo o mundo precisa, principalmente, depois do golpe. O mais importante você já fez... Reconhecer. De qualquer forma, valeu a reflexão sobre as coisas que acabaram... Falou comigo. Um grande abraço, sucesso, alegrias e felicidade!

Anônimo disse...

Samarone, o melhor de tudo isso é saber reconhecer o erro e ter humildade para declarar e pedi perdão. Você é corajoso. Parabéns. Tenho certeza que serás perdoado.Adoro o que voc~e escreve, sua sensibilidade e leveza.

Anônimo disse...

Pedir desculpas pelo blog é coisa de tabacudo. Entregou a crônica ao Profi?

saudades