domingo, 14 de agosto de 2005

Um forró para Arraes

Recife, 14 de agosto de 2005.


Não sei quem me deu a notícia, ou se foi a própria notícia que se deu. Ontem, no final da manhã, Arraes morreu. Me perdoem, mas quando você diz “Arraes morreu”, todos sabem o que aconteceu. Mais que isso, o que significa, neste momento da política nacional em que tudo está perplexo e confuso.

Miguel Arraes de Alencar, 88 anos, ex-prefeito do Recife, três vezes governador de Pernambuco e no terceiro cargo de deputado federal, pelo PSB, sai da cena política e passa a habitar o nosso imaginário, na forma indelével da lembrança.

Não vou aqui fazer a louvação do que merece ser louvado. A história de Arraes foi sendo escrita com um cinzel, nas pedras da vida. Ele foi um homem, uma raça, do início ao fim. É difícil uma pessoa ser tão querida pelo povo, essa gente simples, os menos favorecidos, e ao mesmo tempo ser tão respeitada pelos adversários políticos.

Como sempre, prefiro buscar no cotidiano as marcas e os contornos da trajetória humana em tudo o que a vida leva e traz – alegrias e tristezas, dores e conquistas, vitórias, empates, derrotas.

Ontem à noite, estávamos aqui nesta esquina de seu Vital, no Poço da Panela, quando aconteceu, por obra de nossas vidas e memórias, uma singela homenagem ao velho Arraes.

Estávamos bebendo umas cervejas, logo após o jogo do Santinha, quando nosso Chiló decidiu buscar a sanfona. Começamos então a cantar e dançar várias músicas, até que surgiu das almas a canção que atravessou tantos corações:

“O povo quer/Aquele que fez mais
Arraes/Arraes/Arraes
Em 86 só vai dar Arraes”.

Cantamos vária vezes esta pequena e modestíssima canção, e sempre que escuto os relatos sobre aquele momento histórico de Pernambuco, tenho a sensação esquisita de ter chegado ao recife atrasado em um ano. Também sou do Crato, como Arraes, mas só cheguei aqui em 1987, vindo de Fortaleza.

Ao escutar a música, Emília chorou discretamente. Disse que só viu o pai chorar duas vezes – uma delas foi durante o guia eleitoral de Arraes, então candidato a governador, em 1986. Depois Emília parou de ser discreta e chorou mesmo pra valer, quando cantamos a música-tema daquela famosa campanha:

“Olha nos olhos do povo e vai notando
um brilho novo está voltando”.

Sim, certos momentos na vida de um povo são mesmo para arrancar lágrimas. Lá pelas tantas, embevecidos pelo clima e com a ajuda das muitas cervejas servidas por seu Vital, decidimos ir ao Palácio do Campo das Princesas, fazer uma homenagem musical. De repente, estávamos todos ali, defronte ao Palácio, com sanfona, zabumba e triângulo, dispostos a cantar "Arraes/Arraes/em 86 só vai dar Arraes”. Seria, creio, emocionante. Mas o clima estava muito sério, o povão, a massa, ainda não tinha chegado. Estavam somente políticos, jornalistas e familiares. E aos poucos, fomos minguando nossa homenagem. Não era o momento, pensamos.

Na verdade, a homenagem já tinha sido feita, aqui na esquina aqui de Vital. Enquanto cantávamos, passei pela minha memória este momento que não vivi, a campanha de 1986, como um estrangeiro que chega a uma cidade e a reconhece pelo coração, como se fosse uma cidade que já viveu, em algum tempo nunca explicável. Senti minha presença no Recife, com 17 anos, distribuindo panfletos e cantando com o povo nas ruas que eu ainda não ousara desvendar, numa cidade que eu ainda não tinha amado. Tive então uma memória retroativa de um passado que me dei de presente, apesar de não tê-lo vivido como queria.

Vi Emília dançando, cantando, se emocionando, e em todos os olhos de uma gente mais moça, havia uma espécie de agradecimento ao velho Arraes, por tudo o que foi, é, e será. Lembrei que Edinaldo Miranda, seu pai, também foi um exilado para sobreviver. À saída do nosso festivo grupo, seu Vital, que nunca fala de política, disse uma curta frase:

“Em todas as eleições que ele concorreu, votei nele”.

Entrei no salão, onde estava o corpo já sem vida, dei meu tímido adeus, o “segue em paz, meu velho”, e voltamos, em silêncio.

Estou aqui com os jornais de hoje, e não há como sentir uma certa emoção ao ler um trecho do seu discurso de posse, no segundo mandato como governador de Pernambuco, em março de 1987, publicado no suplemento do Diário de Pernambuco:

“Sou um homem marcado, mas esta marca temerária entre as cinzas das estrelas há de um dia se apagar”. É a citação de um poema de Joaquim Cardoso (Canto do Homem Marcado, de 1952).

Comentei a frase com minha tia Flocely, há pouco, ao telefone. Ela está com 78 anos, os cabelos branquinhos, e só não vai ao enterro por problemas de saúde.

“E se apagou... ou meu Deus”, disse ela, entre lágrimas.


Para Arraes, na memória do coração.

4 comentários:

Anônimo disse...

Deu um nó na garganta, por tudo aquilo que também não vivi... Obrigado por me fazer viver um pouco a história de nossa gente!

Anônimo disse...

São pessoas que não se apagam facilmente as protagonistas de momentos tão emocionantes como os vividos no Poço, sábado passado. Um instante do qual, por graça, presenciei. Uma emoção que os leitores deste blog passam a sentir. Um capítulo que por muito ficará vivo até ser imortalizado.

Anônimo disse...

Uma pena Arraes não ter feito o governo que o povo esperava. Lembro dele sendo carregado de volta ao Campo das Princesas quando ganhou as eleições de 86, quanta esperança o povo tinha, mas foi uma decepção, assim como Lula está sendo também. Porém, tenho que reconhecer que foi um grande político. Que siga em paz!!!

Anônimo disse...

Não se apagou... se depender de mim nunca vai se apagar!
Esperamos muito vocês, pra tocar esse forró, naquele dia...
Admito que não foi o que o povo esperava, mas cabe-nos lembrar que nenhum ser humano é um "messias" (e é isso o que um povo tão sofrido como o nosso sempre espera de seus ícones) e faz o que está dentro de suas possibilidades - inclusive era o que lula estava fazendo (antes de sabermos de toda essa crise e corrupção).
Muito bom seu texto!
abraço