Acabo de chegar de viagem, uma maratona Recife-Brasília, que durou 39h17 minutos, com a chegada do ônibus à rodo-feroviária da Capital Federal, no final desta manhã de sábado. Não foi por diletantismo que fiz esta maratona, foi grana mesmo, nesta brincadeirinha, consegui economizar R$ 750,00 e confesso que é uma grana que vai ajudar a seguir viagem, porque ainda vou bater pernas nos próximos dias, com a graça divina.
Dei a velha sorte de sempre, porque fiquei no fundão do dito coletivo, e sempre gostei de ficar no fundão da sala de aula, tem sempre gente mais divertida por ali, meu negócio é com a periferia mesmo. O primeiro amigo foi um vôvô de uns 60 anos, marrudo, baixinho, de Mossoró, que soltava piada a três por quatro, e resolveu ser o diretor do banheiro. Aos poucos, ele se tornou indispensável para a viagem, porque sempre dizia “tem gente”, “ tá livre”, “ tá ocupado”, “ tem café quentinho”, por ai vai. Como ele é de Mossoró, o apelidei de Potiguar, e como sou do Crato, ele disse que eu era dos índios Kariri, e ficamos assim, dois índios viajando pelo Brasil, um Potiguar e um Kariri.
Destaco aqui os motoristas da Viação Itapemirim, que a cada seis horas trocavam de turno, e sempre numa educação imensa. Diziam o nome, até onde iriam viajar, se precisasse de alguma coisa, era só avisar, vamos parar em tal e tal lugar, boa viagem a todos, eu inclusive achei os motoristas dez vezes mais educados que as aeromoças e comissários de vôo, em um povo cada vez mais chato, os tempos mudaram mesmo.
Em Aracaju, uma bela morena chorava copiosamente, porque seu homem embarcou. Era choro de soluço, então havia muito sentimento ali. Uma amiga tentava em vão consolar, mas essas coisas não são consoláveis, há que se deixar chorar até secar.
“Esse café fica quente direto, ele é aquecido pela turbina do motor do avião”, disse o índio Potiguar.
Começaram as reclamações porque tinha TV a bordo, mas não passava nada. O motorista mais educado, o senhor Rildo, que disse estar “descansado e preparado para conduzir os passageiros”, veio timidamente e falou que tinha um DVD, mas faltava o controle, então assistimos Dirty Dancing em inglês, com legenda em inglês, uma maravilha, eu só entendia quando eles dançavam, a sorte é que dançaram o filme quase inteiro. “ Tás pensando que isso aqui é avião, é”, perguntou o vovô, cada vez mais meu amigo.
Logo apelidamos um passageiro de “Pitu”. A cada parada, ele mandava ver no referido aperitivo, e em Feira de Santana já estava para lá de Bagdá, não sabia qual era o ônibus, a sorte é que o santo de bêbado é forte, ele chegou até o fim, mas o bafo, pela mãe do guarda...
Numa rodoviária, um sujeito vem com uma sacola me pedir uma ajuda. Diz que vem andando desde Aracajú, estamos na metade da Bahia, vai até Teófilo Otoni, em Minas, é muito chão, desconfio da história, ele confirma, sou meio ruim dessas coisas, vou saindo, mas resolvo dar R$ 1,00 e ele agradece com um sorriso tão simples e bom, que me comovo, dou mais R$ 1,00 e agora ele só precisa mais uns 60 contos, eu também não estou com essa grana toda, perdão.
Em algum muro, anoto:
“Prefeito, Zé Marcão
Vice: Zé Bodinho”.
Vi um homem só de calção, na pedra de um rio, tomando seu banho solitário; vi um bezerro sendo lambido pela vaca-mãe; vi uma velha muito negra se olhando num pedaço de espelho, numa calçada alta; vi o vovôzinho potiguar comer sua farofinha com galinha, igualzinho às farofas que minha avó fazia. Vi muitas coisas pela janela da poltrona 39, entre o Recife e Brasília.
Mas o que me encantou mesmo na viagem foram as rodoviárias. As rodoviárias do interior do Brasil, as rodoviárias semi-adormecidas de madrugada, com as mulheres segurando crianças no colo, homens exalando cansaço, vendedores com caras amarrotadas. De madrugada, e só de madrugada, nessas rodoviárias, se pode ver um Brasil em trânsito, sempre indo e voltando, o norte indo para o sul, o leste brincando com o oeste, a depender de um assento, de uma vaga, de um horário, de um trocado, empresas como “Transbrasiliana”, “ Princesa dos Campos”, “ Princesa do Agreste”, “Andorinha”, “ Pássaro Marrom”, “Guanabara”, enfim, cada guichê, um mundo, um sotaque, um rosto, um semblante, uma memória, cada café, uma história humana, uma herança cultural, uma trajetória, e os passageiros, essa gente sempre a caminhar, com suas mínimas sacolas, suas caixas, seus desejos, seus açoites, suas toalhas ao ombro, em banheiros vagabundos, têm somente um desejo, que é chegar, rever quem nunca mais viu, abraçar aquela criatura amada, os filhos, os pais, os parentes distantes, mas chegar, chegar, simplesmente chegar, e neste intervalo entre a saída e a chegada, é que se vê o tamanho deste país, não merecíamos ser tão pobres, mas vamos seguindo, sempre seguindo, vamos caminhando, até mais.
Da casa de Pedro e Liana, na Asa Norte.
6 comentários:
que maravilhosa dose pro meu vicio.
Ah! Sama eu tenho loucura pra morar em Brasília. Me conta como é a vida aí!
Já tinha um amor na terrinha, agora tenho dois.
Beijos
já estou esperando as boas novas através de suas lentes e seu vocabulário tão cheio de doçura e bom humor.
super beijo!
bonito
Velho Sama, fiz muitas vezes esse trajeto Recife-Brasília, no caminho para Anápolis-GO, de férias. As impressões sobre a gente e as rodoviárias são parecidas com as que sempre tive, de um retrato em movimento desse país, passando pela janela. Nessa nessa época não tinha cafezinho no ônibus, mas os motoristas já eram bastante educados. Bom texto, cara !
Samarone! Voltei a ativa e não podia deixar de dar uma olhada em teus belos textos... O das esquinas que li a pouco estava maravilhosos e os comentários me fizeram rir, juntamente com meu irmão que ouviu sua crônica junta comigo... Esta da viagem está fantástica! Só você para ver poesia em 37 horas... me lembrou minha viagem Curitiba-Salvador a uns bons anos atrás... Mas a minha teve um outro tipo de poesia... Bem, sucesso e que nesse ano você possa estar cada vez mais inspirado!
Grande abraço, Priscila
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