terça-feira, 30 de outubro de 2007

Viagem solidária

São 6h22, estou no terminal do Centro do Cabo, para viajar ao Recife. O "semi-expresso", que é mais rápido, porque vai pela BR, nem deu sinal de vida. Pego o ônibus comum mesmo, fico rezando para o sujeito que está passando a roleta não pegar a janela, na cadeira que fica logo depois do cobrador, o melhor lugar do ônibus para ler e esticar as pernonas que tenho. "Sai, sai", fico repetindo baixinho, mas o cara se aboleta no meu lugar. Ressentido, fico do lado oposto, com minha mochila e outros apetrechos das andanças.

O ônibus sai cheio, pego meu livro do momento e começo a ler. Sei que vou cochilar, porque estou cansado, dormi pouco, estou com uma mania feia de acordar no meio da noite e ficar direto, lendo e escrevendo. Então acontece o fenômeno que muita gente de classe média não conhece - o ônibus lotado, parando rigorosamente em toda parada.

Começo a cochilar, acordo, cochilo de novo, como faz minha mãe, em tudo que é viagem. Herança de família é coisa que o sujeito carrega até cochilando.

Então acontece o fato da viagem: a chegada da grande família. Uma senhora negra, certamente a mãe de duas outras senhoras negras, cada uma com três filhos, todos também negros, um deles visivelmente irritado com algo, deve ter uns 11 anos, está com uma cara péssima. Não contei direito, mas eles juntos somam nove pessoas. Uma das mulheres leva uma criancinha nos braços e fica de pé, na minha frente. Dou uma enrolada, quero ler somente mais uma página, mas estou com o coração mole, olho para ela, pergunto se quer sentar. A mulher, claro, quer sentar.

Não estamos nem na metade do caminho, faltam uns vinte minutos para as sete da manhã, o ônibus está entupido, perdi a cadeira, é a vida.

O menino de 11 anos começa a passar mal, está meio pálido, a avó manda ele sentar. Todos fastam, ele vai para um canto, está irritado, não quer sentar, a avó é linha dura, fica repetindo "senta, menino, senta ai", me olha assim e diz:

"Ele está com dor de cabeça direto".

São todos bonitos, fortes, simpáticos, só o menino está assim, mas com dor de cabeça o cara não fica nada legal.

Uma moça do lado dele puxa a mão.

"Tira a mão de fora da janela, que é perigoso".

O menino tira, então senta, a viagem se acalma. Olho para as cadeiras, tem passageiro dormindo com o filho no colo, gente escutando fone de ouvido, muitos ainda cochilam, há um rapaz ao meu lado com uma pastinha transparente, cheia de documentos, uma Carteira de Trabalho, creio que ele descolou um trabalho novo, está com uma cara boa. Ao lado do cobrador, de pé, um rapaz cochila. Sim, uma cochilada em pé mesmo, que é como a vida permite, certas vezes.

Olho para o lado. A menina que ajudou o negrinho está com a cabeça baixa, rezando um terço, com a ajuda de um terço miúdo, que a gente coloca no dedo, uma vez ganhei um desses de uma aluna.

Quase não tem conversa, é um ônibus silencioso e cansado, feito de trabalhadores brasileiros, que moram a 45 quilômetros do Recife. Surge mais uma vaga ao meu lado, a outra mulher negra, possivelmente a mãe do menino que passa mal, senta, com uma menina no colo. Vamos caminhando para sete horas, falta a Imbiribeira inteira, mais meia hora, pelos meus cálculos.

Olho para o lado. Dezenas de carros ciscam impacientes, rumo a algum lugar, desta cidade interminável, que é o Recife. Não consigo entender o motivo de haver tanta impaciência entre as pessoas que têm um carro só para elas, com ar-condicionado e som ambiente. A essa altura, esqueci da importância da minha leitura, o livro fica para depois. Em seu lugar, ficou a imagem da avó, dura e carinhosa, mandando o menino sentar, no chão do ônibus, o menino resistindo, a voz amorosa de uma passageira que não sei o nome, que usava um broche falando algo de Deus ou Jesus, não lembro, sei que era um dos dois.

Desço no Cais de Santa Rita, são 7h25, deu exatamente uma hora de viagem, pareceu mais. Vou caminhando para a escola, olhando a beleza das pontes, uns barquinhos que chegam com peixes magros. Lá na frente, encontro Pedro, meu aluno, que é sempre o primeiro a chegar. Me conta do último fim de semana em Tejipió, o bairro onde mora. Tiroteio, briga de gangues, violência policial, essa epidemia de violência que tomou conta de nossa cidade. É de doer.

Prefiro ficar com a imagem daquela família, numerosa e muito agarrada dentro de si, como se todos protegessem todos. Uma família silenciosa que foi protegida com poucos gestos, nessa silenciosa viagem matinal de todos os dias.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Relato sobre a vida e a morte no Mercado de Casa Amarela

Tive o prazer de conhecê-lo há cerca de 15 dias, ali no Mercado de Casa Amarela, aquela cidade de gente, barracas e produtos, onde costumo ir, especialmente aos sábados, dia recomendado por todos os terapeutas do Recife para um divertimento sadio, que é tomar umas cervejinhas e contemplar o povo se bulindo.

O Mercado (perdão, mas é com maiúscula mesmo, em sinal de respeito) é reduto de inúmeros “boêmios do dia”, como é o caso do professor Davi, que pode ser encontrado na barraca de Mary, com a singela e esfarrapadíssima desculpa de que vai “almoçar”. Ora bolas, nunca vi almoço demorar três, quatro horas, nem o sujeito ter o telefone da proprietária do estabelecimento, para reservar a mesa e encomendar suas Brahmas. Mas isso são outros 500, voltemos ao assunto.

Estava eu quietinho, bebericando de leve, mansamente, qual um bem-te-vi em seu galho, quando ele sentou ao lado, pediu um quartinho e dois pedaços de passarinha. Para quem não sabe, quartinho é um copo americano repleto de aguardente. Não sei de onde, nem como, nem onde, nem por qual o motivo, mas a conversa nasceu, cresceu e vicejou, até que ele me falou do Cemitério de Casa Amarela, que fica por detrás do Mercado, cemitério este que só tive oportunidade de entrar duas vezes – uma no enterro do amigo Barrabás, e outra para colocar uma florzinha em seu túmulo, tudo no ano passado, que Deus o tenha.

“O cemitério fechou de novo”, lamentou meu amigo. Depois de um silêncio pesaroso, completou. “Tá foda, visse? O que está morrendo de gente, não está no gibi”. Na seqüência, deu uma bicada de com força naquela garapa que passarinho não bebe, e mordiscou a passarinha, oleosa como o quê. É assim: quando o cemitério enche, fecha para evitar transtornos. Ah, sei lá, não pedi muitos detalhes.

Meu amigo se chamava Adão Pinheiro de Carvalho, (pelo menos foi o que me disse) e trabalhava num escritório de contabilidade, além de ganhar um extra fazendo as declarações de renda dos amigos. “Sei como funciona isso tudo. De leão eu entendo melhor que domador de circo”, completou, com um sorriso de convencimento.

Mas qual foi a minha surpresa, quando Adão Pinheiro me confessou que tinha como principal atividade, aos sábados, acompanhar os enterros no cemitério de Casa Amarela. Achei esquisito, mas da espécie humana espero tudo.

“Não é nenhuma obsessão, eu sou normal”, contou ele, com uma cara meio triste e aquele bigode a la Cantinflas, mal pintado e mal aparado. Eu realmente nasci para escutar essas histórias malucas, foi o que pensei. “Mas é que eu gosto de ver o último capítulo da vida. Ao final do dia, volta para casa muito mais humilde”, completou.

Ele me olhou nos olhos, acendeu seu Oscar, um cigarro que, segundo Vital, é falsificado no próprio Paraguai, e me disse assim em segredo:

“Professor, a vida é por um triz”.

Ele sabia os detalhes do funcionamento do cemitério, conhecia os coveiros pelo nome e apelido, explicou os setores, informou sobre as mulheres que cuidavam dos túmulos muitos anos após a morte dos respectivos maridos, enfim. Sabia de muitas histórias.

“Um dia, cinco coveiros botaram uma farinha no almoço e estava envenenada. Os cinco morreram horas depois, inclusive um que estava no primeiro dia de trabalho. Desse foi que eu tive pena. A imprensa não publicou uma linha, eu não entendo esses jornalistas”, disse.

Ele sabia também os preços das coroas de flores, o tempo que a família tem para desocupar uma gaveta, as taxas do cemitério. Depois de muitos anos de convivência com o mundo dos mortos, disse que o enterro mais triste de sua vida aconteceu há coisa de cinco anos, num sábado de chuva forte. Até desabamento de casa teve. O que chamou a atenção do meu amigo, naquele dia, foi que o carro da funerária levou o caixão e o deixou em cima da pedra. Nenhum parente ou amigo fora ao velório.

“A gente acha tanta coisa ruim na vida, mas ruim é morrer só, professor”.

Fiquei paradinho. Ele bebeu mais um gole, pediu outro quartinho e afastou a passarinha. “Perco até a fome quando lembro disso”.

Ele percebeu meu interesse e se aproximou.

“Fiquei ao lado, para dar uma força, esperando chegar alguém. Mais de uma em pé, ao lado do morto, e ninguém”.

“E ai?”, perguntei.

“E aí, professor, o senhor deixaria uma pessoa ser enterrada sozinha?”

Bem, ele tinha razão. Ligou para a irmã, Jésssica, que morava por perto, ali na avenida Norte. Explicou a situação, pediu que ela também acompanhasse o enterro, era um ato de compaixão.

“Estás ficando é doido”, respondeu a irmã, antes de desligar o telefone.

Quando o coveiro chegou, perguntou se meu amigo era o irmão do morto. Adão não soube me explicar o motivo, mas, num impulso, respondeu que sim. O coveiro, de nome Venceslau, também chamado de Lalau, disse que iria terminar logo, porque estava chovendo muito e teria tempo de jogar um dominó ali perto. Adão pediu cinco minutos e comprou uma coroa de flores, dessas de vinte e cinco reais. Acompanhou em silêncio o cortejo solitário até a gaveta (2234, jogou no bicho, mas não deu).

Enquanto o coveiro fazia seu trabalho, olhou pela primeira vez o rosto do morto. O que teria feito para ser enterrado sozinho? Mesmo sem crenças, ele rezou duas ave-marias. Aprendeu que se reza aos mortos. Depois, sentiu uma tristeza imensa, como se tivesse de repente alguém da família morrendo, e comentou com o coveiro:

“Ninguém merece morrer sozinho”.

“Ruim mesmo é viver sozinho”, respondeu Lalau.

Adão voltou do enterro, encostou numa barraquinha e mandou ver na sua garapa. Me contou que na época do enterro do solitário, estava intrigado do irmão mais velho, por causa de uma confusão envolvendo um dinheiro emprestado. “Coisas de família”, disse.

Saiu do mercado e resolveu telefonar para o irmão.

“Eu tinha perdido alguém que nem conhecia, então achei que era justo reencontrar um irmão que estava perdendo”, contou. O irmão de Adão ficou surpreso com o telefonema, mas também disse que vinha pensando em fazer um contato. Dois dias depois, se encontraram e tudo ficou resolvido. O irmão morreu ano passado, mas sem intrigas, graças ao morto de ninguém.

Depois de me contar sua história, Adão fez um silêncio, acendeu outro cigarro e ficou olhando para o nada, longe, com aqueles olhos perdidos, talvez lembrando que a morte é mesmo por um triz.

“Sei que é ruim viver sozinho, mas ninguém merece morrer sozinho, professor. Escreva o que eu digo, ninguém merece morrer sozinho”.

Então, eu escrevi.

Recife, agosto de 2005.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Pequenos sonhos

Estou à procura de um helicóptero para um vôo de uma hora sobre o Recife. Quem souber o preço do aluguel, por favor, me informe.

É que estou começando a realizar os sonhos dos meus amigos. Belém, motorista da Secretaria de Saúde, sonha em dar um vôo de uma hora sobre nossa amada cidade, e isso não deve custar muito caro.

Isso de realizar sonhos é uma coisa sem fim. Minha sugestão é simples: começar pelos sonhos miúdos, depois passar para os médios, até chegar aos graúdos.

Sempre sonhei em passar defronte a um campo de várzea, e ver um jogador fazendo um gol. Outro dia aconteceu. Um cruzamento da lateral, o cara emendou na pequena área, a rede estufou. Quase desci do ônibus para comemorar.

Davi, meu dileto amigo, sonha em ganhar na Mega Sena apenas para realizar o sonho de tirar todos os amigos do trabalho, indenizá-los, alugar uma Van e levar todos para beber, de segunda a sábado. No domingo, ficar com a família, que ninguém é de ferro.

Minha mãe sonha em ter um abrigo para ajudar os portadores de HIV. Minha mãe, se fosse muito rica, se fosse da elite, iria ajudar muita gente. Eu tenho uma gastura imensa de quem tem dinheiro, muito dinheiro, e não ajuda a quem pode, do porteiro à vizinhança.

Naná tem o sonho de ver a filha formada. Enquanto isso não acontece, usa sua Kombi enferrujada para levar as crianças do Poço da Panela para a escola.

Os sonhos miúdos são os que mais me encantam. Gustavo sonha apenas em ser poeta e viver com o pouco. Valdemir Leite sonha em aprender inglês e andar de bicicleta.

Sonho com uma cidade cheia de livros, biblioteca lindas e imensa.
Sonho com uma cidade inundada de leitores compulsivos, especialmente os jovens dos bairros mais pobres. Mais romances, menos repressão. Mais crônicas, menos violência. Mais poesia, menos mortes. É um sonho imenso. Por via das dúvidas, comecei com meus 80 alunos.

E sonho outras coisas também, miudinhas da silva, um dia conto.

Ah, sonho em dar uma festa bem bacana e chamar todos os meus leitores, só para ver a cara e o sorriso deles.

Dançaríamos todos de sapatos, até amanhecer o dia.

Depois, como diz o poeta, dançaríamos descalços o resto da vida.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Anotações sobre o Menino Ailton



Ailton, numa foto recente

Conheci Ailton Guerra em 2000, quando ensinava “Técnicas de Reportagem”, na Universidade Católica, e subimos o Alto José do Pinho, para desvendar os rostos do morro. Aquele camarada muito negro, estatura mediana, cabeça raspada, chamava a atenção pelo, carinho, o largo sorriso, um jeitão de criança. Era estranho o apelido de “Peste”, nascido da infância. O camarada parece que atormentou mesmo sua escola.

Foi ele, o “Menino Peste” a ponte entre os sedentos alunos de Jornalismo e a comunidade. Dali saíram várias belas reportagens e alguns bons jornalistas. A experiência humana da troca, tomando umas cervejas no Caldinho do Biu, gerou ótimas amizades. Desta época, lembro apenas que Peste era o baterista do grupo de punk rock “Matalanamão”. Depois dei uma oficina de Comunicação, e ele participou, com olhos atentos, tomando nota de tudo. Depois, passou em minha casa e pegou livros a título de empréstimo. E seguiu.

Ficamos algum tempo sem contato, depois nos vimos quando ele era educador do projeto Olinda Jovem, na periferia de Olinda. Matamos saudades, trocamos idéias, vi que o camarada estava tocando em frente. O velho e bom amigo caminhava pelos rumos da comunicação, dando oficinas para jovens.

O derradeiro encontro aconteceu há um ano, quando o convidei para trabalhar comigo na Oficina da Palavra, na escola em que ensino. Cheguei em sua casa e começava a tocar “O bêbado e o equilibrista”, com Elis Regina. Até hoje, não sei quem é o bêbado ou o equilibrista. Depende do dia, creio.

Por artimanhas do destino, estamos juntos até hoje. Toda terça e quinta, nos encontramos logo no começo da manhã. Ficamos juntos a manhã inteira, percorrendo os labirintos da Literatura, produção de textos, buscando poetas, romancistas, cronistas que consigam bater à porta dos jovens, para lhes mostrar novos mundos. Às terças, depois das nossas aulas, vamos juntos assistir as maravilhas da Flávia Suassuna, que é um presente de Deus. Na quinta-feira almoçamos num boteco roufento, ali por perto da Rua da Moeda, num calor de rachar , em meio ao populacho mais comum.

É mais que isso. Tomamos nossas cervejas, alguns aperitivos, avaliamos nossas vidas, projetamos primaveras, inventamos novos sistemas decimais, criamos tempestades em copos de geléia de mocotó Colombo, renovamos esperanças. Desabafamos passados alheios, rimos cósmicos, lembramos do que não aconteceu, descobrimos novos paradigmas filosóficos e amadurecemos a natureza das pétalas. A conta nunca passa de R$ 14,00. Somos boêmios e sonhadores modestos.

Nos últimos dias, resolvemos cair na estrada. Ele queria ir para Nazaré da Mata, sentir o cheiro dos ancestrais. O pai era um negro de olhos azuis, caboclo de lança do Maracatu. Fomos para Carpina, depois seguimos caminhando para Tracunhaém, olhamos toda aquela beleza da arte em barro, depois singramos para Nazaré. Antes de chegar à casa de sua tia Maria, saímos em busca do Engenho Cumbe, local onde seu pai tocava. É preciso mesmo ir em busca do cheiro dos antepassados, sentir a atmosfera dos mais velhos, botar os pés onde já viveram os nossos.

No caminho, o longo caminho, tivemos nossas conversas em quase-silêncio, ao som das sandálias arrastando pelo chão. Ele me falou das muitas perdas, num prazo de quatro anos. Pai, mãe, irmão, numa seqüência de despedidas. “O próximo serei eu”, disse ao telefone para a namorada, após mais um adeus. São essas coisas que a gente pensa quando tudo está tão triste e ruim, que a esperança vai saindo pela tangente. E ele está ai, vivo, cheio de planos, se preparando para enfrentar o Vestibular para Comunicação.

“Era para eu ser o policial da família, mas acabei virando educador”, lembra.

Sim, meu amigo tinha como destino a farda e as armas, mas preferiu outras armas. Primeiro, sua banda de rock, o som radical da banda. Depois, os livros, as palavras, a poesia, a beleza.

Não sei que tipo de policial ele seria, sei que é um maravilhoso professor. Mesmo sem a formação pedagógica formal, tem uma intuição afinadíssima, um raro senso de percepção de como trabalhar com os jovens.

Em nossa jornada, chegamos à casa da tia. Conheci dona Maria, sua tia amorosíssima, mãe de Joseíldo, mãe de Josemar, o “Mamá” (cabeleireiro que não aceita cortar o pelo de ninguém fiado), mãe de Jaílson, que é policial militar, e Jacilene, que vai tentar o 3º concurso seguido para a PM. Conheci, convivi, tomei sopa e suco de acerola e café com manteiga com todos eles, com as duas Karlas, filhas de Jaílson, uma de 11, outra de 14 anos.

Karla Mais Nova não gosta muito de estudar, mas bate um dominó de primeira, tanto é que Ailton levou duas buchudas, enquanto eu anotava minhas besteiras de viagem. Karla Mais Velha é uma leitora voraz, e por conta própria sabe tudo sobre “regimes totalitários”. Conversamos muito, ela foi lá dentro, pegou seus livros, suas redações, me mostrou. Ela quer cursar Psicologia e acho que vai longe.

E todas essas pessoas com uma amorosidade imensa, intensa, radiante. Uma educação rara, passando por uma mansidão de espírito, gentilezas da alma. Vi ali a matriz genética e espiritual do meu amigo, que é um desses mansos que fazem o mundo mais bonito.

A cada senhor que passava, com seu chapéu e seu cigarrinho de palha, Ailton dizia:

“Isso é a cara do meu pai”.

Voltamos da jornada num galope silencioso, vi que estava mais próximo do meu amigo.

Mas o melhor de toda viagem é mesmo essa troca de entrelinhas no silêncio dos passos.

Ao meu amigo Ailton, por supuesto.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Coisas miúdas

Não sei o que há, o mundo anda meio estranho, apressado, as pessoas andam se destratando e destratando o mundo. Há milhões de pessoas remexendo o Orkut, neste momento, milhares de mensagens estão indo e vindo, mas poucas vezes tenho escutado aquela pergunta sincera: "Você está bem?", feita pelo Siba, num dia em que eu corria para resolver algo que não lembro.

Tenho criado meus pequenos refúgios, abrigos, acalantos. Uma vez por semana, chova ou faça sol, vou ter com a minha amiga Flávia Suassuna, com suas aulas de Literatura. Ao lado do meu inseparável amigo Ailton, escutamos coisas que entram no coração, acalmam os tumultos. Como o Drummond, que diz que "cego é talvez quem esconde os olhos debaixo do catre". Lá, descubro com certa tristeza que a marca do Século XIX foi a palavra, e que a do século XX é a imagem. Mas a Flávia diz que um poema do Drummmond mudou a vida de sua irmã, então comenta:

"Se o Drummond mudou uma pessoa, mudou o mundo".

Duas vezes por semana, o encontro com a turma de professores da Kabum!, onde ensino. Então chega a Ana Luiza, com seu abraço verdadeiro, a troca de olhares e esperanças, o que vamos fazer a cada manhã. Vejo os jovens lendo cada vez mais, e fico feliz porque algo que faço neste mundo vale a pena. Cada vez vai ficando mais claro para mim. De tudo o que fiz, dos livros, das viagens, dos projetos que participei, o que mais me comove, me realiza, me faz ser gente, é ver jovens se apaixonando pela leitura, pelos livros, pelo mundo sem volta que é o da Literatura.

Chega Beth, a doce Beth da Mata, com seu sorriso, seu olhar precioso para o mundo da arte, sua generosidade, então o dia fica mais calmo e bom. Chega Syrlei, que faz um lindo trabalho de teatro com os jovens, chega Walquiria, então o dia, às terças e quintas, começa bem, precioso..

Volto ao meu caderninho com as drummonianas:

"Minha criança salta na minha vida para restaurá-la".

O Drummond perdeu sua filha Júlia em 1987, ficou triste, muito triste, sobreviveu apenas 12 dias, depois foi enterrado junto com ela, que coisa.

Volto à Flávia. Ela começa a ler um poema para os alunos e chora, se emociona, pára a leitura. Fica aquele silêncio, penso em bater palmas, mas o silêncio é mais eloquente que as palmas, então as grosserias da vida, as chateações, ficam mais serenas.

Ah, meus amigos, hoje estou meio desaprumado, alguma nota mais triste tocou. Mas são as coisas, minha falta de afinação com o mundo, que escondo bem.

Uma frase do Rilke então me consola:

"Sou um desajeitado da vida".

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Um prêmio ao bom jornalismo, em meio à nossa matança



Ação dos jornalistas na Favela do Detran. O pai de Idalino, assassinado, acompanha a pintura do "basta"

Sempre achei meio esquisito a fissura de alguns jornalistas por prêmios, como se isso fosse a coisa mais importante da carreira. O mais importante, para mim, sempre foi a qualidade do trabalho, os compromissos éticos e sociais. Isso tudo num belo texto, claro.

Mas um prêmio sempre admirei e acalentei secretamente o desejo de ganhá-lo – o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos. Não sei, era algo meio sentimental, que eu achava um pouco o meu caminho, essas vaidadezinhas que todo mundo tem. Nunca cheguei nem perto. Inscrevi Clamor na categoria “livro-reportagem”, mas nem menção honrosa ganhou.

Ontem fiquei sabendo que o grupo de jornalistas que toca o blog PEbodycount (www.pebodycount.com.br) ganhou o Prêmio, na categoria Internet. É sobre eles a postagem de hoje.

Rodrigo Carvalo, 28 anos, João Valadares, 29, Carlos Eduardo Santos, 28, e Eduardo Machado, de 30, são jornalistas do Jornal do Commercio, e já fizeram muitas matérias sobre violência. Os homicídios, latrocínios, seqüestros, ou, como bem diz o Faces do Subúrbio, do Alto José do Pinho, “estupros, atropelamentos, assassinatos, esses são os fatos, que não impressionam, mas amedrontam”.

Eles já ganharam prêmios, são conhecidos, uma moçada jovem que tinha tudo para ficar naquele esquema bom de fazer matérias legais, mostrar a violência, textos bacanas, enfim.

Mas eles têm algo que diferencia um bom jornalista de um grande jornalista, que é o compromisso. Eles começaram a perceber que a violência em Pernambuco era muito maior do que se notificava. “A gente não tinha a real noção da matança”, como diz Rodrigo Lobo. Matança. Não existe palavra mais certa para o que vivemos.

Resolveram montar o blog Pebodycount. O nome é esquisito e às vezes até chato, mas a proposta era a seguinte: contabilizar todos os homicídios cometidos em Pernambuco, a partir de 1º de maio de 2007.

Vejam lá o Blog. De maio para cá, 1.866 pessoas foram assassinadas. Triste é saber que até o final do ano, cerca de 4.600 pessoas terão morrido. Estou falando de mortes no futuro que já sei que vão acontecer, e isso é triste, é terrível, é uma tragédia.

Todos os dias, por contra própria, sem usar a estrutura do Jornal, eles ligam para delegacias, IMLs, consultam fontes, conversam com outros órgãos de Imprensa, e atualizam o Blog. Ao meio-dia, eles atualizam os dados. Parece simples, mas não é. Todo mundo sabe que esconder dados é uma ótima forma de ir tapando o sol com a peneira.

Marcas – Em outubro, eles começaram outro projeto, intitulado “Marcas da Violência”. Durante todo o mês, eles estão indo a todos os lugares do Recife onde ocorreu homicídio, para deixar uma marca no chão, de tinta vermelha, com a palavra “basta”. Eles se acordam às 4h30 da manhã, vão por conta própria aos lugares mais ermos do Recife, onde a Imprensa só vai mesmo quando a Polícia prende um punhado de gatos pingados com uns papelotes de maconha, para mostrar serviço. Depois, eles, os presos, são exibidos com festa nos telejornais histéricos, com apresentadores que parecem gozar com mais violência.

Mais que deixar a marca no chão, eles conversam com a população, escutam sentimentos de impotência, dor, desespero. “Hoje, fomos ao Campo do 11, em Santo Amaro”, diz Rodrigo. Enquanto a pintura vai sendo feita, os jornalistas explicam o objetivo. “Eles sentem como se aquela morte tivesse alguma importância. A pessoa pode ter sido enterrada como indigente, mas foi lembrada”, diz João Valadares, um dos craques do time. A reação da população tem emocionado os quatro jornalistas, que de vez em quando são acompanhados por um craque da fotografia, o Rodrigo Lobo.

Segundo João, eles estão tentando “tirar a casca” que encobre a questão da violência em Pernambuco. Ir mais fundo, ver o sofrimento humano de perto, dar nome, encontrar rostos, semblantes, pessoas machucadas. “Queremos olhar, tocar, escutar essa gente, que não tem um computador em casa, e não acessam um blog”, explica João. De quebra, eles fazem algo que vai de encontro a um vício moderno dos jornalistas – fazer matérias por telefone, nas redações geladinhas pelo ar-condicionado.

Rodrigo lembra do caso de um pai que chamou a equipe do PEbodycount para mostrar o local exato que o filho tinha sido assassinado.

São muitas histórias que esses jovens camaradas estão vivendo. Em meio a essa nossa interminável tragédia pernambucana, a utilização da informação como forma de denúncia, de pressão, de reflexão. Não é todo jornalista que topa se acordar às 4h30 da manhã para ir às bocadas saber de mortes.

Do meu cantinho aqui na Internet, digo aos meninos: sigam, camaradas, sigam firmes nesta jornada. Tirem as cascas, mexam nas feridas. Conheçam mesmo os lugares onde nossos jovens são abatidos como lebres, nessas madrugadas de medo e espanto. Cutuquem, mexam, tirem o véu do medo, da paralisia, da hipocrisia.

Cada um de vocês representa o tipo de jornalista que acredito, a comunicação que tenho fé, e que infelizmente, está desaparecendo. Sigam neste jornalismo inquieto, atento, fuçador, que não se acomoda, que vai às ruas, que olha o povo e se emociona com suas dores.

Já desisti do Prêmio, mas ontem comemorei como se fosse meu. Mas não existe maior prêmio do que lutar pela vida, num tempo de tantas mortes.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Tempo, memória, encontros

Parece que o tempo tem sua própria memória. Não sei de onde me surgiu isso, quando iria escrever sobre minhas andanças pelo Sertão, e foi o suficiente para deixar o tema das caminhadas para outro dia. Acho que já caminhei demais com as palavras da estrada.

Talvez esta descoberta do tempo com sua própria memória tenha surgido no café da manhã de hoje, com minha tia Flocely, de oitenta anos, cabelos branquinhos, suas rugas e tantas coisas vividas. Ela tem resistido bravamente às dores na coluna, diálise peritonial, duas infecções em um ano. Está aqui, lúcida e doce como sempre, e cada dia mais caladinha, quieta, modestamente gente. Rosa, seu braço direito, que sabe dos remédios, rotinas, horários, que cuida com a maior das forças, que é amor, me disse que ela ultimamente vem falando muito dos parentes, da mãe, irmãos, confundindo o mundo dos vivos e dos mortos.

“É como se eles estivessem aqui”, disse tia, com lágrimas escorrendo.

Estão mesmo, de alguma forma. Tio Zelito, vovó Zeneuda, tio Paulo, seus irmãos, já estão em outro espaço. Sua mãe Elisa, que há muitos anos também morreu, está de volta, percorrendo a casa como uma nova visitante.

Um dia, procurando velhas fotografias da família, encontrei uma anotação de tia, quando morreu sua irmã Zeneuda.

“Morreu Zeneuda, nosso último traço”.

E por essas coisas que não entendo, cada vez mais estou viajando para os lados da Chapada do Araripe, de onde viemos. Minha tia é do Exu, mas morou muitos anos no Crato, de onde vim. Estou muito próximo dela e de nossas origens, ao mesmo tempo.

Na última viagem, trouxe num saquinho um pouquinho da terra de Exu, e dei de presente. Pensei que era um presente bobo, mas reparei que dias depois, a terra estava num copo de geléia, na estante, ao lado de sua imensa coleção de corujas.

Talvez agora eu esteja entendendo o sentido das minhas caminhadas. Talvez buscasse algo que não sabia, agora encontro o que não busquei. Ultimamente, minha mãe tem ligado, falando de uma saudade maior, querendo minha presença com uma urgência. Terei que ir a Fortaleza, abraça-la e saber de sua vida. Recebo cartas de tia Teresa, depois de longos anos sem vê-la, com fotos antigas da família, vejo meus retratos com sete anos, e revejo minha jornada.

Tomar o café da manhã em meio às lágrimas da saudade de uma pessoa que se ama muito é, de certa forma, entrar nesse mundo de reencontros, perdas, despedidas.

Vivo uma despedida lenta, como o aceno de quem vai em um trem, lentíssimo, acenando e sorrindo.

Lembro agora que o trem da minha infância, que fazia o percurso do Crato para Fortaleza, se chamava “Sonho Azul”. Desde esta época, tudo que é azul me remete a coisas lindas, paisagens cheias de animais e plantas, pessoas sorrindo, como nos melhores sonhos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Margeando o Velho Chico (Final)


Iramarai com as crianças do Sertão


Flor do Caruá

No segundo dia da caminhada, percorremos caminhos os mais diversos, por estradas ermas, onde cruzávamos vez por outra com motoqueiros de todos os estilos e idades. Foi o melhor momento da jornada. Só a paisagem do Sertão, o silêncio muito, pontuado pelo cantos das aves. A noite mal dormida fez estragos. Tive que parar, dormir um pouco, e criar coragem para seguir. Maraí fez fogo e aguardou, depois me acordou para o café. Só então voltamos à jornada.

A primeira coisa que avistamos foi um pé de faveleiro.

“Um pé de faveleiro, olhando microscopicamente, na ponta tem uma bolsinha, com uma ligadura”, explicou meu comparsa, um homem de muitas prosopopéias.

Seguimos devagar, com o sol do Sertão rasgando. O cheiro de lenha lembrava a infância do meu amigo. Aos sete anos, fazia cabana com jurema, um tipo de madeira. Ficamos analisando o nome “jurema”, que ele acha lindo, eu nem tanto. Não consegui me lembrar o que fazia aos sete anos. Sei apenas que era 1976.

A cada pedido de informação, olhares que nos analisavam. Na fala de cada um, a distância. Pelo bonito da fala, a gente sabe as distâncias. Cada entonação, uma légua a mais ou a menos. Pensei também nos pés, que têm tanta poesia quanto as mãos, e a gente nem repara direito.

Foi nesta segunda parte da viagem que reparei como o sertão é repleto de aves, dos mais diversos estilos. Desde o Carcará, que me lembra logo a voz da Maria Bethânia ("Carcará/Pega, mata e come"), passando pelo gavião e o urubu, que nunca voa batendo asas, fica apenas flanando, pegando bigu nos ventos, ele que não é besta nem nada. Surgiram jandaias, da família dos picitassídios, algo assim, que é a mesma turma dos papagaios, periquitos, tucanos etc. Elas ficaram de leve, bem quietas, olhando o movimento. Galos de Campina, Casaca de Couro, Concris, por ai vai.

Passamos por Areial, e neste momento, o joelho do meu amigo começou a doer. Diante da minha indigência sobre a fauna e a flora do Sertão, só me restou inventar uma árvore, “Vespertina”, que se junta à minha “Arenosa”, criada na viagem do Exu ao Crato, e que está sendo catalogada pela minha ciência. Cruzamos com uma planta chamada “caroá”, que é arrancada pelo talo, a gente mastiga, e mata a sede, igualzinho aos cangaceiros de outros tempos. Depois, Maraí descascou um mandacaru e comemos. Aos 38 anos, nunca tinha comigo mandacaru, deu tudo certo, estou vivo, mata mesmo a sede.

Passamos por Caraíbas. No Bar do Zé Preto, estava passando um jogo do Campeonato Alemão. Tomamos café, olhamos o tempo, estamos cansados mas inteiros.

“Quero ver se tem uma mulher que faça café melhor que eu. Pode ser solteira, moça, casada”, arrota Zé Preto, que é bem preto mesmo.

Para evitar problemas, não comentei que o café estava doce demais e meio arenoso.

Paradas servem apenas para deixar a alma chegar e olhar para o povo. Seguimos. Um rapaz pergunta se somos hippies. Antes de responder, ele diz que queria trocar uns dentes de jacaré com a gente, mas estamos sem paciência, a negociação finda por ali mesmo. Negócio de jacaré é mais para a turma do Pantanal, e a conversa aqui é mais seca.

A pescaria no Velho Chico, tão alardeada pelo Marai, desde o começo da viagem, foi de uma inutilidade completa. Confirmo minha sina: não nasci com o dom dos peixes, da pesca, o mistério dos anzóis. Eles, os peixes, sempre comem toda a isca, e me deixam feito tonto. Marai pescou somente água. Nosso almoço foi apenas a salada com pão e café.

Dormiríamos ali, à beira do rio, não fosse a chegada do Mauro, mergulhador de uns 64 anos, que veio fazer um trabalho em um canal, que serve para irrigação. Chegou numa D-20 desarrumada, usa óculos de basculante e viveu muito, conheceu gente demais, sabe poesias decoradas e se exibe com elas. Conversamos, e foi entardecendo. O barco que nos levaria até uma cidade perto de Orocó, nunca apareceu. Mauro nos olhou sério, ofereceu carona. Em minutos, estávamos dentro do carro do novo amigo. Ele, o velho marujo de cabelos brancos, não podia ver uma mulher à beira da estrada, que ficava doidinho. Passamos pelo “Assentamento Alegre”, do Movimento dos Sem Terra, e Mauro comentou:

“Isso é da tribo dos Sem Terra”.

Entardecia, quando chegamos a Orocó. O último barco tinha acabado de sair. Um pescador bêbado disse que nos levaria à ilha, falou de duas igrejas sabe-se lá onde, e o bafo nos deixou meio tontos. Tomamos um café à beira do rio, muito mais delicioso do que o do Zé Preto. Comemos pão com queijo de manteiga e o que sobrou da salada. O rio deslizava suave, com o sol dando tchauzinho com a mão. Veio aquele cansaço bom, da missão cumprida, de chegarmos a algum lugar.

Olhei para Maraí, sabíamos que a caminhada tinha chegado ao fim. Encontramos um hotel simples, o Beira Rio. Banho geladíssimo, soneca. Acordamos com um programa do Arthur da Távola, falando de Beethoven. Era um trio de Violoncelo, Violino e Piano, o número 65, feito quando o sujeito tinha apenas 34 anos e “ainda não era gênio”. O Yo Yo Me arrebentou no violoncelo. Parecia que ele iria entrar dentro do instrumento, tal era o êxtase. Marai ao meu lado dormia como uma criança. Lá pelas tantas, ele acordou, por causa da música.

Foi despertado pela beleza. Louvado seja.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Margeando o Velho Chico - I



O Velho Chico, fotografado pelo andarilho Iramarai Vilela

“Vai moiando os pés no riacho
que água fresca, Nosso Senhor,
Vai oiando coisa a grané
Coisas pra mó de ver
O cristão tem que andar a pé”.

Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em "Estrada de Canindé”.


Inspirados no velho Gonzagão, vou com o velho Iramarai andar a pé, na esperança de olhar as coisas a granel. A convite de amigos, vamos de Ouricuri a Santa Maria da Boa Vista, porque terminamos um trabalho que consumiu vários dias, e agora é o tempo de percorrer estradas sem pressa, sem essa de turismo.

O time da despedida é de primeira: Belém, Boy, Nana e Iramarai. Ao meio dia e trinta e três, chegamos à cidade, procuramos um restaurante à beira do Rio São Francisco, que nós daqui conhecemos como “O velho Chico”. Entramos eufóricos, loucos para comer peixe. Sentamos, eu pergunto em voz alta se tem peixe no local, todos me olham de mal jeito. Depois do silêncio, olho para o cardápio. Está lá, em letras garrafais:

“Bar do peixe”.

Comemos, bebemos uma cachaça deliciosa, a Karibé, conversamos águas imensas, olhando para o Velho Chico. Mais tarde, nossos amigos pegam a estrada rumo ao Recife. Com meu comparsa Maraí, o mesmo da caminhada Exu-Crato, mês passado, vamos caminhar, para entrar em outra freqüência. É que a gente vê melhor a vida andando devagar. E o cansaço de uma longa caminhada é coisa que não se explica, coisa para longas conversas.

Antes de seguir, percorremos a feira de Santa Maria. Tem de tudo, quem conhece as feiras do interior do Nordeste sabe muito bem. Tem comida, roupa, sapato, cinturão, produtos de norte a sul das necessidades, remédios os mais diversos, curas a preços módicos. Olhamos, comparamos preços, não compramos nada. Avistamos um barco se preparando para sair, perguntamos para onde vai, o sujeito responde, não lembro bem, mas como custa apenas dois reais, vamos nessa. Vai ser uma hora dentro do Velho Chico, então já me sinto um felizardo.

São poucos os companheiros de jornada. José Aristeu, cinqüenta e dois anos, descobriu diabetes há um ano. Toma dois remédios por dia: Glicofor, de oitocentas e cinqüenta mg. Desculpem aí, mas o meu teclado não está pegando os números, mais tarde conserto. Olho o remédio, descubro que é Cloridrato de Metaformina, algo assim, posso ter anotado errado porque já tinha tomado umas garapas. Além disso, Glibenclaminda, de cinco mg. Os remédios foram pegos no hospital da cidade. Aristeu não sabe o nome do hospital da cidade, sabe apenas que ele, o hospital, é do município. Na farmácia, dez comprimidos custam dezesseis reais.

São quinze horas em ponto quando chegamos à Ilha de Deus. A canoa vai ser descarregada. Tem umas cinco sacas de adubo. Invento de ajudar, mas me arrependo rapidamente, as sacas são pesadas como o quê, e estou fora de forma. Depois, vem um dos quatorze filhos de Aristides, que esqueci o nome, o menino vem com um carrinho de mão. Os exagerados de plantão vão dizer que é trabalho infantil, mas para mim, ele está somente ajudando o pai, e filho gosta de ajudar o pai. Olhei agora direitinho minhas anotações, o menino se chama Edson, tem quatro anos, um problema no dedo mindinho, porque sofreu uma queimadura. O Gildázio [www.gildaziomoura.blogspot.com] vai me dizer que não é defeito, mas “pessoa com deficiência”, eu respondo “menos, Gildázio, menos”.

O timoneiro informa que vamos de Cupira para um povoado chamado Inhanhum, que fica a um quilômetro. Um quilômetro de barco no rio São Francisco é um presente da vida. O barco vai deslizando manso, parece que a gente está num útero. O José Aristeu tinha perguntado o que a gente fazia por ali, Iramarai respondeu que estávamos pesquisando sobre as plantas da região, para a Universidade Federal de Pernambuco, e ele comentou:

“À toa vocês não estão”.

O barqueiro, um homem negro e prestativo, se chama José Ernane Rodrigues de Souza, tem trinta e seis anos, e é barqueiro há trinta e seis anos, segundo suas próprias palavras. A falta dos números no teclado está começando a encher a minha paciência.

Chegamos em terra firme, pagamos dois reais cada, somos informados que vamos passsar em Cupira de Baixo, depois Anhum, um Nhanhum. O nome da cidade, por sinal, me provocou dores de cabeça as mais diversas, porque em cada boca, havia uma pronúncia, e meus ouvidos não passavam a mensagem direito para os dedos, que é onde se localiza meu cérebro.

Andamos em terras as mais diversas, passamos por casinhas, vilarejos, todos com suas respectivas antenas parabólicas, até que escutamos um som altíssimo, e descobrimos que estamos em Cupira. É o hino do Flamengo. A cada passo nosso, o hino fica mais forte, e descobrimos que vem de um bar vazio, com um enorme galpão, onde o povo dança forró. O proprietário é um obcecado, porque o hino termina e recomeça imediatamente.

“Uma vez Flamengo/ Sempre Flamengo”.

Só não fiquei mais chateado porque lembrei do tio Ademar e Seu Almir, fanáticos torcedores do rubronegro carioca. Lamentei profundamente não ter levado um CD com o hino do Santa Cruz, para ele ver o que é sinfonia, mas não vem ao caso, não quero arranjar briga logo com a torcida do Flamengo.

Paramos para pedir água. A contragosto, ele baixou o som. Aproveitei para ir ao banheiro. Usei o das mulheres, que é sempre o mais limpo, em qualquer lugar do mundo, a céu aberto, por sinal.

Enquanto ficamos no bar, escutei o hino do Flamengo treze vezes.

Voltamos à estrada, margeando o São Francisco, e paramos para um bom mergulho. Foi besteira parar no bar, porque o rio tinha muito mais água, com a vantagem de não ter o hino. Seguimos olhando a paisagem do Sertão, os bichos, as plantas, as gentes. Passam crianças saindo de uma escola, elas sorriem quando vêem dois cabeludos caminhando,com mochilas nas costas, perguntamos os nomes, se sabem escrever o nome, essas bobagens, tiramos fotos, fazemos rápidas amizades e seguimos sem rumo.

Escurece, pergunto ao Iramarai qual o nome daquela primeira estrela, ele é pego de surpresa, não sabe.

“Preciso esperar que elas subam”, diz, aproveitando para dar uma pequena conferência sobre constelações e a Via Láctea.

Nos perdemos em algum caminho, escureceu de verdade, não temos lanterna, então surge do nada uma fragata velha, fazendo o barulho de um tanque de guerra abatido por ima granada. É um ônibus escolar, que vem dando golfadas e pulos, como um sapo ferido. A cena é inacreditável: o motorista vem iluminando a estrada com a ajuda de uma pequena lanterna. Lá mais na frente, a carroceria velha pára, aproveitamos para perguntar o caminho de volta, ele explica, e os meninos nos olham assombrados. O ônibus então segue, iluminado pela lanterna do homem que dirige.

Ao contrário de outras viagens, não demos sorte de conseguir uma hospedagem com algum morador. Decidimos acampar ao lado de uma quadra de fuebol em construção. Catamos gravetos os mais diversos, Maraí faz um fogo em cinco segundo, preparamos um belo café, numa lata de leite Ninho, conseguida quilômetros antes, em Inhanum. Desconfio que a noite vai ser deliciosa.

De repentte, olho para o céu, que está coalhado de estrelas. Maraí mostra as constelações, lembro de Órion e outra que esqueci, e sei que ainda sou cego para estrelas. Ele vê formas, desenhos, figuras, meu olhar sem poesia, sem conhecimento,vê apenas estrelas, mas não é de todo ruim, porque acho bonito mesmo assim.

Abrimos o saco de comida. Atacamos uns damascos secos que nossa chefa nos deu, no começo da viagem, junto com banana desidratada, que fica uma delícia. Aqui-acolá, passa uma moto do nada. O Sertão de Pernambuco está cheio de motocas, antenas parabólicas e torcedores do Flamengo, Corinthians, Vasco etc.

Vencidos pelo cansaço, adormecemos. Acordo mais tarde, boto mais lenha na fogueira, porque faz frio. Então chega a figura ilustre da madrugada fria, um vira-lata doce e afetuoso. Maraí acorda feliz. Discutimos nomes os mais diversos para nosso primeiro amigo de viagem. Vence “Sertãozinho”. Depois Maraí dorme, fico brincando com o camarada, até que entrego os pontos.

Faltavam dez minutos para as cinco da manhã, quando fui despertado pelo meu comparsa de viagem. Estava pronto para mais um dia de caminhada.

“Vamos, que não estou para especulações não”, foi o que disse.

Apagamos o fogo, arrumamos as mochilas e botamos as patas na estrada.

Nem sinal de Sertãozinho, nosso mascote.

Não sei de onde surgiu isso, mas me ocorreu que a gente só vê as coisas quando as descobre.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encontros e reencontros no Sertão de Pernambuco



Paulo Henrique, Janimeire e Jordana, na frente de casa, na Chapada do Araripe.

Há um mês, fiz uma travessia a pé do Exu para o Crato, com o meu amigo Iramarai Vilela. No meio do caminho, fomos acolhidos por Janimeire, seu marido Paulo Henrique e a amorosa filha Jordana. Janimeire estava grávida de cinco meses. Foi um encontro simples, desses que o Sertão permite, que os corações abertos proporcionam. Dormimos em redes numa pequena igrejinha azul e nunca foi tão bom estar no mundo.

As coisas da vida. Durante este período, me envolvi num projeto batizado de "Mãe Coruja", desenvolvido pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Eu e Iramarai, novamente, fazendo outros percursos. Semana passada, viemos novamente ao Sertão, para lançar o programa, uma das coisas mais belas que vi, nos últimos anos. Dezenas, centenas de pessoas mobilizadas, sonhando alto, querendo saúde, vida, desabrochamentos, como diria o mestre Cyro.

Num pequeno lampejo de esperança, sugerimos que Janimeire fosse escolhida como a primeira "Mãe Coruja" de Pernambuco. Falamos de seu perfil. Uma professora primária, morando na Chapada do Araripe, uma dessas guerreiras que o Brasil tem aos montes. Participou da última "Marcha das Margaridas", dá aulas para 25 crianças, tem um raro compromisso com educação.

Jordana, a amorosa filha, criou laços no primeiro instante. Fizemos aquela amizade pura e simples. Iramarai construiu com ela casas de papel. Dei um presentinho secreto que ela gostou muito. Paulo Henrique, o marido, um homem silencioso e aparentemente distante, envolvido com o mundo do roçado, acompanhava nossa chegada com pequenas gentilezas que revelavam quase uma candura.

Ontem, no lançamento do Mãe Coruja, em Ouricuri, o palco estava repleto de autoridades, políticos, secretários, representantes do Ministro da Saúde, enfim. Num cantinho, Janimeire, representando as mulheres grávidas do Sertão. Ao lado, Jordana, mais sorridente que nunca. Paulo Henrique, claro, preferiu ficar no seu canto.

Conversamos muito, falamos sobre o Programa, até que Jordana me pediu para ver o governador de perto. Foi, tirou fotos, depois voltou, e ficou comigo, colada o tempo todo.

Lá pelas tantas, perguntei se teria sopa novamente, quando voltasse à casa dela. Jordana respondeu que sim. Perguntei se teria rede para a gente. Ela disse que sim. Antes de perguntar mais alguma coisa, ela se antecipou:

"Vai ter tudo o que vocês gostam".

Janimeire vai ter uma filha. Jordana está cada dia mais linda. Esta foto de uma família do Sertão de Pernambuco nós deveríamos ter tirado antes, quando fizemos a travessia. Não desconfiávamos que voltaríamos para a arte do reencontro, nesse mundo cheio de desencontros.

Se o Programa Mãe Coruja funcionar bem de verdade, Janimeire brevemente saberá onde será seu parto, e ele deverá ser natural. Jordana vai ter uma linda irmã, que será amamentada, acompanhada, cuidada pela família e pelos serviços de saúde, e terá uma longa vida. E Paulo, aquele bom homem, seguirá cuidando do roçado e da família, sem muito alarde, cometendo suas pequenas gentilezas, suas delicadezas, como pegar um agasalho para um visitante que acabou de conhecer,, porque percebeu que ele está com frio.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

No Sertão, de novo

De Ouricuri, Sertão de Pernambuco.

De novo, estou no Sertão. É viajando que me renovo, que crio outras raízes. Na falta de tempo para escrever, coloco um pedacinho do Rilke, no maravilhoso "Cartas do poeta sobre a vida", que o Gustavo me soprou, desde Brasília.

Hoje à noite tem postagem nova, as postagens de viagem. Por enquanto, vamos com o poeta.

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"É necessário viver a vida ao limite, não segundo os dias, mas segundo a profundidade. Não é preciso fazer o que vem depois, se alguém sente que tem mais participação no que vem ainda depois, no longínquo, na mais remota distância. Pode-se sonhar enquanto os outros salvam, se esses sonhos são mais reais para alguém do que a realidade e mais necessários do que o pão. Numa palavra: é preciso tornar a mais extrema possibilidade que alguém traz em si o critério de sua vida, pois nossa vida é grande e acomoda tanto futuro quanto somos capazes de carregar".

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"Vivemos tão mal porque sempre chegamos despreparados ao presente, incapazes e dispersos em tudo".

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"A vida anda: passa por muitos ao longe e faz um desvio em torno dos que a esperam".

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Vou aqui, olhar os sertanejos, lembrando que hoje é o dia do meu querido São Francisco.