quinta-feira, 17 de abril de 2008

Acasos, circunstâncias e cartas

Esses acasos e circunstâncias são grandes presentes da vida, e acolho como um abraço de um velho amigo, que não vejo há tempos.

Por esses dias, arrumando as muitas caixas de livros e fotografias, esbarrei em um lote imenso de papeis amarelados. Parei a arrumação, o objetivo de deixar as estantes no ponto, e fui revê-las. Foi um mergulho em mim mesmo, que durou o restante da tarde, entrou pela noite, e os livros ficaram na desordem de sempre.

Descobri que até 2002, recebi cartas com rara frequência, e sempre respondi. Como saí de casa em 1987, e desde esta época escrevia para amigos e família, tive na minha vida uns 15 anos de correspondências, com pessoas as mais diversas. São memórias pungentes, que chegavam em diversos tipos de envelopes, cores. Tê-las por perto é quase um segundo diário.

Por onde andará o velho e impagável Guilherme Salgado Rocha, meu companheiro de redação no jornal "O São Paulo", da Cúria Metropolitana de São Paulo? É um sujeito grande como um urso, feroz em suas paixões, capaz de falar duas horas initerruptas sobre o Botafogo, sua grande paixão, com lágrimas nos olhos. Olhei algumas de suas cartas, divertidíssimas, longas. Certa vez, eu estava na França, ele me mandou uma enorme carta. Metade falava do desempenho do Botafogo no Campeonato Brasileiro de 1995.

Ao final da carta, ele mando a pergunta fatal:

"Você tem dado vexame aí, meu?"

Não lembro se dei vexame, creio que sim, Luzilá é quem pode responder melhor, porque foi a santa amiga que me acolheu, ali no quinziéme.

Ah, a carta é uma preciosidade que ainda teimo em manter. Alguns poucos amigos ainda sustentam esta paixão, devorada pela febre dos email, Orkut, enfim.

Mexo os papéis, encontro uma carta de Betânia Santana, minha adorável amiga dos bons tempos do Diário de Pernambuco, entre 1992 e 1994. Quando me mandei para Sampa, ela mandou algumas cartas que estava quietinhas, adormecidas.

Vejo uma de 29 de junho de 1994. É uma preciosidade. Está escrita a máquina mesmo, de datilografia, no papel timbrado do Diário, onde escrevíamos as matérias. É a famosa "lauda" jornalística, com 20 linhas contadas. Meu Deus, quantas matérias escrevi, utilizando aquelas folhas amarronzadas! Na época, a Luiza, filha da Andréia, fez um ano. Uma frase me chamou atenção: "O inesquecível não precisa ser muito longo".

Ao final da carta, um PS:

"Carta feita ás vésperas do Dia dos Namorados, durante plantão no Diário, ouvindo Altemar Dutra, no gravador de Zé Maria, que manda um grande abraço".

Então, lembro imediatamente do velho e bom Zé Maria Garcia, com sua eterna cabeça branca, os dedos amarelados de cigarro, que me apresentou ao mundo boêmio da Cristal, o ponto de encontro dos malandros do Diário e do Jornal do Commercio.

No amontoado das cartas, há coisas engraçadas. Enconteri uma carta que escrevi para Marquinhos e Stella, duas adoráveis criaturas, que moravam na Holanda. Separei duas longar reportagens publicadas no Jornal do Brasil, em fevereiro de 1999. Numa delas, o tradutor Pedro Sussekind falava da nova tradução do Hans Staden, o relato do soldado alemão que percorreu a costa brasileira, entre 1548 e 1555. "O Brasil de Staden foi inspiração para o movimento modernista e até hoje não recebe a devida atenção nos curriculos escolares", diz o texto.

Ontem mesmo, arrependido por não ter mandado a carta, fui à agência do Cabo e postei a carta, com um bilhetinho. Foi mal, amigos, desculpem o atraso de quase dez anos para mandar a cartinha. Ando meio lento ultimamente.

Tenho um bom lote de cartas do Gustavo, meu dileto amigo. Por elas, dá para ver a sustentação perpétua da verdadeira amizade. Quando ele estava ruim das pernas, minhas poucas linhas ajudavam em algo. Muitas vezes, recebi um "força, irmão", que ajudou muito, sempre utilizando a "Carta Social", que custa 1 centavo (R$ 0,01).

Leio, em janeiro de 2001, um informe importante:

"Acabo de comprar a trinta contos esta Olivetti semi nova, com ela tentarei pelo menos ser mais claro, já que aquela minha letra miúda fazia-te mais cego".

Um trecho certamente me deu alguma esperança a mais, naquele 2001 tão cheio de coisas boas e ruins:

"Tenho pensado bastante no que temos feito para modificar este mundo. Novamente me vem a mesma resposta: existirmos do jeito que existimos. Pacíficos, amorosos, abismos".

Há uma carta da Camila Vinhas, amiga e vizinha em São Paulo. A carta foi entregue pessoalmente, sem os serviços dos Correios. Nunca mais reencontrei Camila, e espero que ela tenha mergulhado de vez no mundo da dança, deixando o jornalismo para segundo plano. Precisamos mais de artistas que de jornalistas.

Ah, termino por aqui. Comecei a tomar notas, reler coisas, e fui vendo filmes de minha vida. Poderia escrever muitos textos sobre este tesouro que tenho comigo comigo. Melhor mesmo ir lendo aos poucos, me deliciando, relembrando.

Cartas, para mim, representam um pequeno pedaço da humanidade que deixa a pressa de lado, busca um papel, uma caneta, uma máquina de datilografia, e escreve. É como uma meditação para um amigo, para alguém que se quer bem. Uma pequena oração.

Nada mais amoroso do que chegar em casa, e ver uma cartinha por debaixo da porta.

Lembra um bom abraço. Um abraço de rodoviária, às vésperas da chegada de uma pessoa que vem de muito longe, ou na hora fatal do embarque.

Nessa hora, nossos braços ficam imensos e acolhedores.

Para Betânia Santana, com saudades.

5 comentários:

Anônimo disse...

Bom final de semana.

No hay ser humano que no quiera ser otro
y meterse en ese otro como en una escafandra
como en un aura tal vez o en una bruma
en un seductor o en un asceta
en un aventurero o un boyante

sólo yo no quisiera ser otro
mejor dicho yo
quisiera ser yo
pero un poco mejor

Mario Benedetti

bjs,
Yvette

Samarone Lima disse...

O poema é melhor que a crônica.
sama

Anônimo disse...

Amei. Também guardo diversas cartas, algumas de amor. Ridículas como diz Fernando Pessoa, mas não seriam ridículas se não fossem de amor. Relê-las é um momento de puro prazer.

Bom final de semana.

Beijo na alma.

Tell Aragão disse...

tenho tanta saudade das cartas... agora, só recebo (quando recebo) os e-mails... sem graça...
estou lendo seu livro de crônicas... uma amiga emprestou... e foi lá que vi o endereço do teu blog... voltarei outras vezes...
abraços

Anônimo disse...

Sama,
não visita esses blogs em inglês, que deixam mensagem, a maioria é vírus.
um grande abraço,
sirley