Só estudei bem, que eu me lembre, da 5a à 8a série. O resto foi inútil, apenas ocupei a cadeira da sala, porque não lembro de nada interessante. Na 5a e na 8a, fui reprovado em Matemática, e só prossegui a vida de estudante, porque inventaram uma coisa maravilhosa, a dependência, que você pagava no ano seguinte. Mas psicologicamente, é muito ruim a palavra dependente. Até hoje, não sei como se calcula a raiz quadrada, nem a função existencial do cateto da hipotenusa.
Apesar de muito curioso, não sei para que os turcos tomaram Constantinopla (lembro somente da frase). Arranco lágrimas de sangue, para entender o que significa objeto direto e indireto, fora os adjuntos adnominais, pronome oblíquo e outras regras. Oblíquo, na minha modesta concepção, é torto e vesgo mesmo, como Jorge Bandeira, meu dileto amigo, quando está muito mamado. Mas há gente oblíqua mesmo sem beber.
Meu ano de ouro mesmo foi a oitava série, no 7 de Setembro, em Fortaleza. A diretora entregava pessoalmente o boletim para quem tirasse todas as notas acima de 7. Os vencedores, famosos CDF, eram chamados nominalmente, se dirigiam ao púlpito, e recebiam o boletim daquela senhora velha, séria e rigorosa. Uma salva de palmas era o grande momento do mês, um troço acessível somente a quem vivia em cima dos livros, sem tempo para jogar pelada e futebol de botão com o irmão.
Um mês, fiz um esforço fenomenal, tire a lasca do cateto, acertei as artimanhas da Física, decorei pedaços inúteis da tabela periódica, descobri algum adjunto adnominal, e consegui passar pela sabatina. A menor nota foi 7,3.
Quando a diretora chamou meu nome, houve um levante na turma, porque sempre fiz parte da malandragem. A diretora levou um susto, o marcapasso deve ter descontrolado, ela me estendeu a mão e virei o assunto do dia. Em casa, meu pai não deu muita bola, aquela conversa inútil de que o cara não fez mais que a obrigação, que é uma ducha de água fria.
Só descobri que tinha alguma inteligência mesmo num dia dramático da turma, quando a Dona Socorro anunciou a arguição oral. Iria dar um complemento da aula anterior, e no final, chamaria as vítimas para o matadouro das perguntas ao vivo, na frente de toda a turma. Neste momento, quem era sabido gemia, e quem era tímido queria tomar doses cavalares de chumbinho, o meu caso. Nunca encontrei chumbinho lá em casa.
Ela explicou toda aquela coisa dos holandeses, as malandragens do Brasil-Colônia, e todos já estávamos tremendo, olhando para o relógio, que praticamente tinha congelado.
Lá pelas tantas, Dona Socorro nos olhou com aquela frieza e perguntou:
"Alguma pergunta, meninos?"
Eram 50 criaturas sem conseguir respirar, salvo algum CDF que sabia falar até holandês, se fosse o caso. Neste momento, algum espírito superior me soprou algo no ouvido direito, e criei a coragem para levantar este meu imenso braço, que certamente tremia como um bambu.
Perguntei o motivo de os holandeses não se importarem tanto com o Pau-Brasil, se aquilo era uma obsessão de Portugal. Não, eu não usei a palavra "obsessão" na época, porque tinha pouca leitura e era meio fracote das idéias. Mas fica assim mesmo, que a frase fica ótima, e também faz tempo pacas.
Dona Socorro disse que a pergunta era muito boa, e teve que ir ao Parque da Jaqueira, passar pelo Poço da Panela, chegar ao Marco Zero, e parar no Palácio do Campo das Princesas, onde estava a resposta. Isso tudo a pé. Teve que falar dos holandeses, dos portugas, e de nós, num labirinto de povos e fatos que nos deixou tontos.
Pouco importava o Pau-Brasil e aquela esculhambação do período em que fomos impiedosamente saqueados, o negócio era demorar muito. Cada frase a mais, dez segundos longe da arguição.
A resposta foi mais longa que a batalha do Peloponeso (outra que nunca entendi direito). Quando ela terminou, já com a garganta seca, a sineta do recreio tocou, ela passou a arguição para a aula seguinte, na semana seguinte. Foi como um chute de fora da área, na gaveta, aos 49 do segundo tempo, o gol do título. Ganhei abraços, parabéns, mas nem com isso, consegui abrir espaço no coração da Siu-Lan, a japonesinha mais linda que a humanidade conheceu.
Mas fiquei muito bem com a turma, surgiram novos amigos, e me disseram até que eu era inteligente. Algumas vezes, cheguei a acreditar, mas a realidade costuma me dar respostas mais contundentes.
Lembro que meu número era o 45, e o da Samara era 44.
No ano seguinte, mudei para o Rui Barbosa, que nem mais existe. Terminei o 2o grau às duras penas, sofrendo com Física, Química, Biologia, Matemática, os genes x e y, as ervilhas de um camarada que não lembro o nome. O que me salvou a vida foi mesmo ter encontrado um professor maravilhoso de Português e outro de Redação, fora a pequena biblioteca lá de casa.
Comecei com "Papillon, o homem que fugiu do inferno", e nunca mais larguei. Depois, esbarrei nos poetas, e um dia meu pai me levou na casa de José de Alencar. Achei o máximo conhecer a casa de um escritor. Lembro que ele comprou Iracema e mais uns três livros do José, mas não sei se li, porque nunca gostei muito do meu conterrâneo.
Aos 39, continuo sem saber o motivo da tomada de Constantinopla pelos turcos. Se tiver algum especialista em turcologia, entre meus diletos leitores, agradeço.
O tempo passa, mas oblíquo, em minha prosopopéia, continua sendo torto e vesgo.
Para o Halley, Titu, Geovânia, Sérgio, Sâmia, Samara, Siu-Lan e toda a turma do 7 de Setembro
7 comentários:
Sama,
lendo na minha adolescência um livro de Arthur Connan Doyle, "Um estudo em vermelho", sobre a primeira aventura do famoso personagem "Sherlok Holmes", em um capítulo o Watson fala para Holmes sobre a constatação ciêntifica de que a terra gira em torno do sol, depois da explicação do médico, o detetive diz, que apesar de muito interessante a teoria ele trataria de esquecer aquilo. Watson pergunta o por quê? e, ele responde que nosso cerebro só deve guarda aquilo que nos será útil, o que não for nos servi deve ser esquecido...
acho que a questão que fazes segue o mesmo caminho, se não nos é útil para que buscar a resposta...
gostei da crônica... um abraço!
Sama, tinha um tempinho que não passava por esse blog. Bobeira minha, porque suas histórias são simplesmente maravilhosas. Também tenho "escrivinhado" historinhas. Surgem em torno da mesa, panelas, pratos e garfos. Gastronomia é uma paixão. Dá uma olhada. www.1pitadadetudo.blogspot.com. São crônicas gastronomicas curtinhas, mas feitas com paixão.Tb estão sendo publicadas no "Deprê" aos domingos.
Tem tb um blog com dicas e sugestões da vida de comes e bebes do Recife - esse mais de informações e percepções. Vai lá tb! www.blogdagastro.blogspot.com
cheiro,
aline feitosa
Me identifiquei pra caramba com as tuas memórias de hoje. Também nunca aprendi matemática, a diferença entre nós é que eu era ótima nas outras matérias. Tão ótima que uma professora me "ajudava" nas provas, corrigindo as aberrações cometidas contra os números, para que eu igualasse as notas(?) de matemática com as outras, sempre muito boas. Dona Inês era o nome do anjo salvador, se bem que com essa fada madrinha aí é que não quis saber de aprender. Abração, Anelise.
Samarone!!!
Ainda bem que você não se interessou por nenhuma dessas coisas! E ia lá querer "perder tempo" escrevendo essas maravilhas com tanta baboseira pra pensar?
Muitas das vezes, essas leituras salvam meu dia. Eu, aqui, trabalhando boa parte do dia enfurnada nessa sala, sem nem ver a luz do sol... Amuada, de casaco, pois não convenço os companheiros a aumentarem a temperatura do condicionador de ar...
Fico com o calor humano de tuas palavras. Blz pura!
Nossa, eu conseguia ser pior que você Sama! será que é um destino traçado pelos jornalistas?! hahaha
Ainda bem que você não precisou entender, nem decorar os números e as letras da matemática, da física, da química e da biologia. Da história, também não sei o verdadeiro sentido das invasões – dos holandeses, de Constantinopla e de tantas outras.
Ainda bem que seus professores de Português e Redação, te encaminharam ao destino mais que certo, o de escrever, principalmente quando historia sobre as coisas simples e boas da vida.
Continue com este ofício, mesmo que torto... mesmo que vesgo...
os mais brilhantes, pelo menos na história da literatura, dificilmente, muito dificilmente, foram alunos exemplares em seus tempos. acho que tem alguma relação com a obliquidade porque para ofuscar é preciso levar a luz numa direção onde todos já se acostumaram com o escuro. então, um brinde aos zarolhos e às trocas de direções.
beijos
justine, direto de alexandria
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