quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Bonança e o Titanic

Todo começo de ano tenho este pantim de sair da cidade, ir para um pequeno retiro, organizar as idéias, fazer planos, descansar e fingir que vou trabalhar em alguma coisa importante. Este ano vim para um sítio a quatro quilômetros de Bonança, uma cidade que já gostei só pelo nome. A casa fica no sopé de algo mais alto, que não é uma montanha, muito menos uma colina, e lá embaixo posso ver o açude, onde Val, o caseiro que mora ao lado, jura ter jacarés de vários tamanhos e idades.

Ontem à tardinha, o vizinho Cyro foi à cidade comprar vermífugo com o Val, e peguei o bigu. Val, o caseiro, aproveitou para devolver o DVD na locadora. Sim, amigos, o caseiro está atualizadíssimo com as modernidades urbanas e foi devolver um filme de terror, locado no dia anterior, para desespero dos filhos, que morrem de medo. Só não gostou mais do filme porque era todo em inglês e ele não entende nada em inglês. Na “Locadora Morena”, ele recebeu as explicações sobre o funcionamento do equipamento e pagou o aluguel: R$ 2,00. Resolvi levar um filme para assistir com Val e sua família. Olhei os nacionais – todos locados. Peguei “Náufrago”, expliquei a história ao meu amigo, ele se animou, mas deu errado: o irmão da dona da locadora tinha levado na surdina, para ver em casa.

Então aluguei um filme novinho em folha: Titanic, que alguns leitores chegaram a ver.

Val e Ciro voltaram para o sítio. Fui perambular pelas ruas de Bonança.

De imediato, percebi que a cidade tem uma auto-estima lá no topo. Tudo é Bonança. “Posto Bonança”, “Auto-Elétrica Bonança”, “Borracharia Bonança”, “Bar e Lanchonete Bonança”, “Bonança Calçados”, “Padaria Bonança”, "Farmácia Bonança", "Mercadinho Bonança" e por aí vai. Eu já estava ficando cansado de tanta Bonança, quando vi um “Bar da Viúva”. Não, amigos, não parei, é preciso andar para conhecer uma cidade. Passei em uma esquina e uma turma da meia idade jogava um dominó manso, delicado, silencioso, bem diferente do fuzuê da minha turma do Poço da Panela. Me veio uma indagação clássica: por que o Dominó nunca foi cogitado para ser esporte olímpico? A medalha de ouro sairia do Poço da Panela, indubitavelmente.

Desço uma rua principal e descubro que estou na Agamenom Magalhães, mas faltam os carros, os lavadores de vidro dos sinais, os guardas multando todo mundo pelo simples prazer da multa, quando deveriam estar orientando o trânsito. Passo por um grande terreno, onde estão montando um imenso parque de diversões. “É para a festa de Reis”, tinha me explicado Val, bem antes. Os brinquedos são os mesmos de todo parque do interior: cavalinhos lerdos que rodam, carrinhos que batem uns nos outros e ninguém se fere, aquelas canoas que ficam na gangorra e a famosa, imprescindível, fundamental e clássica Roda Gigante, que sempre detestei, graças ao meu ancestral medo de altura, seja ela qual for.

Paro para olhar a cena. Ao meu lado, um pirralho de uns sete anos veste uma camisa falsificada do Barcelona, com o nome “Ronaldinho” atrás. C'est la vie. Sigo perambulando. Mais auto-estima: “Bonança Bombons”, "Espetinhos Bonaça". Na porta de um bar, está pintado: “Quando Deus quer, é assim”. Não discuto assuntos teológicos, simplesmente aceito. Sento no balcão do “Bar Bonança” e peço uma Brahma (a R$ 1,75). Na frente, uma TV mostra as desgraças de São Paulo, depois de umas chuvas violentas. O tira-gosto mais barato é filé de merlusa, a partir de R$ 1,00 e peço logo um. “Você vai ver agora a história de pessoas que perderam tudo por causa das chuvas”, diz a apresentadora.

Daqui a pouco, passa o jornal local da TV Tribuna, uma matéria sobre meningite. Vejo o repórter: é Bruno Fontes, meu ex-aluno da Católica! Tem um sujeito do lado mergulhado na janta, penso em apontar e dizer: olha ali, é o Bruno Fontes, vê que bicho desenrolado, mas não tem clima, o sujeito está com uma fome dos diabos. A matéria é boa, o cara é mesmo desenrolado mesmo, esse Bruno Fontes. No mesmo jornal, sou informado que Pernambuco tem 285.287 motos, é moto pra chuchu, penso solitário.

“É moto pra caralho”, me diz o gordinho do lado, com um pedaço de macaxeira na boca.

Duas cervejas, dois tira-gostos, já anoiteceu, hora de voltar para casa de moto, em toda cidade do interior tem o famoso "Moto-Táxi", uma beleza. O piloto conversa mais que o homem da cobra, resolve passar no seu bar, antes de me deixar em casa, me oferece um aperitivo que não recuso, me apresenta a filha, uma moça muito bonita, mas a vida segue. Chego, vou à casa de Val, saber como anda o Titanic, se já saiu do porto, se já afundou, se o Leonardo di Capri já tomou no papeiro.

“Estava esperando o senhor para começar”.

Cyro ajeita a cor, o brilho, a imagem, começa o filme, mas o Val olha tudo, aprendendo na prática. Na sala, eu, Cyro, Val e seus três filhos homens. A mulher foi dormir, diz ele. Começa aquela história toda que eu tinha visto uma vez, e nem lembrava de um bocado de coisas. Lá pelas tantas, Cyro começa a dar umas cabeçadas. Está com sono, resolve ir embora. Ficamos vendo o resto. Val está maravilhado. Pergunto se estão gostando, respondem que sim com a cabeça sem olhar para mim. Vamos vendo a história. Aos poucos, me vem um cansaço também. Daqui que esse navio afunde, muita água vai passar por debaixo desse casco, penso. Depois de uma hora de cinema-na-casa-de-Val, digo ao amigo que vou me embora, ele diz que está cedo sem olhar para mim, os filhos nem piscam.

Chego em casa. Lá fora, um silêncio profundo, aquele silêncio do interior, que só os grilos e outros animais que vivem nas matas podem alterar. Durmo sem trégua, cansado das caminhadas e cachoeiras. Quando o dia amanhece, venho escrever estas notas, ao som de pássaros os mais diversos. Olho no dicionário o significado de Bonança: calma, sossego, tranqüilidade.

Então eu concordo com o dicionário.

Vejo Val logo depois, puxando um cavalo, que vai vermifugar.

"E aí, gostasse do filme?"-, pergunto.

"E apois", responde. "É meio demorado, umas três horas, mas gostei".

Olha para mim e completa, muito sério.

"Mais tarde vou ver de novo".

E apois.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Samarone.

Tô tentando pegar teu fone para uma matéria especial que estou fazendo para o Viver (DP) mas não consigo. Vc poderia me mandar seu contato pro meu email pessoal: carolinaleao@terra.com.br

Fico te aguardando. abr. Carol leão

Anônimo disse...

Mais delicia ainda!

Anônimo disse...

Adorei o "tomou no papeiro", mais popular do que isso só "e apois".
Morri de rir e isso faz bem pra alma e pro corpo.
Naire