segunda-feira, 17 de julho de 2006

Coisas da vida

Foi no sábado, no Mercado de Água Fria. Estávamos eu, Serjão e João Valadares, no bar Tenório, o rei do Jabá. Eram poucas mesas, na calçada, e tivemos que dividir o espaço com três camaradas que bebericavam mansamente, por ali. Daqui a pouco, já estávamos, nós três, num papo animado com os três desconhecidos. Lá pelas tantas, um deles olhou para o João e disse:

"Esse bicho é repórter. Eu conheço uma pessoa que é repórter".

Falou assim, do nada. Acertou em cheio. Depois olhou para mim e anunciou:

"Esse aqui é escritor".

Ficamos meio mudos.

Finalmente, ele olhou para Serjão, que estava com uma máquina fotográfica.

"E esse aqui, é o quê?"

"Fotógrafo", respondeu nosso adivinho.

"Tá bom. Só porque eu estou com uma máquina fotográfica na mão, sou fotógrafo. Quer dizer que se eu estivesse com um rolo de papel higiênico na mão, eu era um cagão?", perguntou Sérgio, e rimos muito.

Pois bem. A conversa seguia nesse ritmo sereno do sábado, já início da tarde, quando chegou uma senhora e pediu dinheiro para uma cana. Ela me chamou a atenção. O rosto era de uma índia, uma índia velha, os cabelos brancos e bem lisos escorriam pelos ombros. As feições eram marcantes. Esses rostos cheios de vida, que formam, na verdade, um semblante.

"A senhora quer uma cana?", perguntou Serjão.

Ela fez que sim com a cabeça. Serjão pediu a cana, ela bebeu como se fosse água.

Daqui a pouco, ela me olha e diz que sou muito bonito, e o sábado fica lindo. Digo que ela também é muito bonita, Serjão tira uma foto nossa, e passamos a conversar. Então já somos seis na mesa e uma senhora de quase 60 anos, uma índia perdida num mercado de subúrbio. Ela teve 23 filhos, mora ali perto, é amiga de todos no Mercado.

Depois da nossa conversa, ela vai embora. Notamos um dos camaradas de cabeça baixa, com a mão encobrindo o rosto. O amigo dele informa:

"Ele é um dos filhos dela".

Há um silêncio respeitoso na mesa. Depois ele explica que aquela senhora é sua mãe, que é alcoólatra, que não adianta levar para casa, que daqui a pouco ela volta para beber. Ficou envergonhado.

Caramba, o sujeito está tomando umas cervejinhas, numa tarde de sábado, quando a mãe chega do nada, e pede uma dose de cachaça a desconhecidos.

Seguimos nossa peregrinação. Depois fomos para o Edmilson Esquina Bar, onde atacamos um sarapatel.

"Muito bom esse sarapatel", vaticionou Valadares.

"Sarapatel não, sarrabulho", respondeu Serjão.

Terminamos a jornada mística em Vital, já ao crepúsculo.

Hoje, a imagem daquela índia envelhecida, que teve 23 filhos, me apareceu com força. E pensei em seu filho, já homem feito, envergonhado, escondendo o rosto.

Coisas da humanidade. Coisas da vida, eu sei lá.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não vou comentar os seus passeios pulsantes de vida, mas agradecer pela dica do livro. Adorei e li numa sentada "(...)Se eu também sou um outro é porque os livros, mais que os anos e que as viagens, deslocam os homens. Depois de muitas páginas acaba-se por aprender uma variante, um movimento diferente do praticado, que se acreditava inevitável. Afasto-me daquele que sou quando aprendo a tratar de outro modo a mesma vida." Valeu! Bj, Ane.

Anônimo disse...

FODA!