quinta-feira, 27 de julho de 2006

Na estrada e as coisinhas de família

Boto o pé na estrada novamente. Destino: fortaleza, onde vive grande parte da família. Há quase três anos não visito a terrinha. Agora, outras demandas. Minha mãe pensa em vender a casa, se mudar para um lugar mais seguro. A violência vai recompondo geografias, esvaziando bairros, mudando trajetórias. Venho tentar ajudar em algo.

No ônibus, uma cambada de cearenses. Eles trabalham em algum estaleiro do Recife. Cada parada, o assunto é somente um: tomar uma gelada. Com o sotaque bem carregado, eles imitam os pernambucanos, fazer gozações. Eu, que tenho herança das duas culturas, finjo anotar algo sério e registro as conversas.

“Rapaz, o pernambucano gosta mesmo é de matar mulher...”

“E eu não sei? Só esse ano, já mataram umas 160”.

“Os cabras não gostam de mulher não. Desse jeito, não vai sobrar uma”.

“É que pernambucano tem sangue ruim, sabia? O PCC chega por lá, eles matam logo, não dá nem tempo se enraizar”.

“Não, macho, mataram foi umas 180 mulheres, só esse ano”.

Um dos cearenses chama outro, que está na parte da frente.

“Ei Jacuné, vem cá. Vem cá, macho, conversar com a gente. Conta uma história pra gente...”

(Jacuné não vem)

“Cearense não bate fofo não”.

(Não entendi. A frase saiu do nada).

“Não tem essa não. Chegou, é partir pra cima, papai”.

(Lembrei do meu amigo Marcelo Barreto, com essa história de “papai”)

“Mulher que chora quando o cara viaja, bota gaia”.

“Pois quando eu sair de casa, vou descer a lenha e dizer – te cala, mulher!”

“ô putaria, macho”.

Chego à velha rodoviária de Fortaleza, não há ninguém à minha espera. Minha mãe não sabe que cheguei. Minha irmã vem me buscar. Está com 25 anos. Quando saí de casa, tinha 12. Vai ser advogada. Conta as novidades. Chego em casa, a mesma casa em que morei tantos anos. A outra irmã, Patricia, está com 23, passou no Vestibular para Turismo. Vejo a casa, vou à biblioteca. Sobram poucos livros. Cada vez que venho, levo mais alguns exemplares, todos empoeirados. Sou um traficante confesso de livros. Lá pelas tantas, chega a minha mãe. Toma o susto com minha chegada, mas está feliz.

Vejo seus cabelos brancos. Chegou aos 60 anos. Almoçamos em Ciço, aqui perto, conversando sobre a vida. Ela quer saber de tudo. O trabalho, a vida, enfim. Pela primeira vez na vida, não diz que estou com os cabelos secos. Trouxe a matéria que saiu no Diário de Pernambuco, domingo, falando de um livro que estou terminando. Ela pega a cópia, exultante. Olha logo se tem a foto. Se não sair a foto, ela se chateia muito.

“Vou mostrar às minhas amigas no Hospital”.

Ela é auxiliar de enfermagem.

Antes de sair para o trabalho, ela pega um isonor pequeno.

“Para que é isso, mãe?”

“Eu compro dindim e levo para as minhas colegas. Elas adoram”.

Dindim, no Ceará, é a mesma coisa que “dudu”, no Recife. Quem não conhece, teve uma infância meio manca.

Mas essa é a minha mãe, uma senhora de 60 anos que está sempre sorrindo, mesmo nas maiores quedas, e leva dindim para as amigas do Hospital.

Até segunda-feira, aproveitarei essas coisinhas lindas da vida.

4 comentários:

Anônimo disse...

Duas coisas dá pra tirar dessa crônica:

1- Cearense é um bicho difícil de confiar;

2- Sama tá escondendo duas irmãs da galera.

cometaurbano disse...

Sama,

que saudades da turma do Monte Castelo. Nunca mais fomos juntos no mesmo período rever os amigos e a família. Deve estar sendo difícil para vc aguentar o Neto com a camisa do flamengo o dia inteiro. Fala para mamãe que aprovo a venda da casa, mas espero que ela não entre em nenhuma roubada.
Abração do mano PH

Tiago Nobel disse...

Valeu sama!

Mais uma vez obrigado por essas pequenas delicadezas da vida aqui expostas...

Abração!

Anônimo disse...

Minha avó fazia dindim e qd eu ia pra Fortaleza tomava até não poder mais!