sexta-feira, 21 de julho de 2006

Sábado no Recife

Sábado no Recife. Minto. Sábado em Casa Amarela. Súbito, descubro que amo este pedaço da cidade, este bairro que tem nome uma casa de cor amarelada. Amo as ruas, as dobras, os vendedores de sonhos, aboletados em suas bancas de jogo do bicho. Amo os balcões dos mercados, os tamboretes que equilibram os homens e suas doses, em meio à festa dos pratos que saem a cada minuto, com algo guisado, assado, algo cheirando das penelas.

E essa claridade do sábado? E esse sol recifense, que torna as coisas mais claras, as pessoas mais lúdicas? Não, não se trata da lucidez comum, de sentir a alma melhor, seguindo os manuais de auto-ajuda, mas a lucidez de viver, seja como for, seja como flor.

Os homens circulam, conversam, bebem algo, contam histórias. O sábado é o dia das confissões. Ninguém atravessa o sábado com um segredo no peito. Se o faz, é um equivocado, um coxo permanente do espírito. Sábado é também o dia consagrado para o armistício. Não deveria haver mortes aos sábados. Não deveria haver separações, brigas, troca de farpas. Daqui do meu canto, uma mesinha em “Mery Almoços”, onde tomo estas notas, decreto inutilmente: não vos maltrateis aos sábados, pois é o dia do armistício!

No sábado, as janelas devem ser abertas no três e o dominó jamais poderá causar rusgas. O jogo, neste dia, deve ser manso. Os gestos devem ser mansos. Nada de bater pedras no tabuleiro. Há que tocá-las suavemente, sem ruídos, sem alardes. Há que cuidar para não deixar a porta bater. As conversas devem ser mansas (só as gargalhadas devem se espalhar, causar estremecimentos no espíritos). É aconselhável andar como no século XIX, como faz o meu amigo Gustavo.

Não descuidemos da geografia. A geografia, como a história, nos faz singulares. A geografia das ruas, das casas, dos bares, das roupas penduradas às janelas. É pelos detalhes espaciais que um francês é francês, que faz um sujeito de Marseille ser diferente do parisiense. O recifense da Zona Norte tem outro ritmo, outra ginga, o olhar é mais cadenciado. Só caminhando pelas calçadas de Casa Amarela, Poço da Panela, Alto José do Pinho, se percebe isso.

A geografia dos rostos também reverbera e aponta definições. Não tivesse eu vindo para o Recife, em 1987, com 18 anos, minha vida teria sido outra. Não teria encontrado meu próprio sangue, teria me perdido do meu destino. Seria como um soldado, que vai para a batalha, e apenas caminha, à procura de seu único combate. Me faltaria, ao final da vida, a herança afetiva do povo que escolhi para a irmandade. Seria manco do espírito. Entraria na batalha já ferido de morte. Sendo jogador, entraria em campo contudido. A vida, sem o Recife, teria sido de viés.

Sábado em Casa Amarela. Um dia em que se pode consertar uma bolsa rasgada por R$ 1,00. Dia em que os velhos sebos vendem livros como “Irresistível amor”, “Ninho de amor”, “Amor sem máscaras”, “Cowboy de aluguel”. Dia perfeito para comprar o “Livro do Ano” de 1971 e ver que o mundo sempre foi esta confusão dos homens e do poder. Dia em que se pode comprar livros como “Miséria doirada”, ou “Catita – quadrinhos eróticos para adultos”. Não esqueçamos das Playboys antigas, amontoando os corpos já envelhecidos. “Tiazinha! 26 páginas de enlouquecer!”.

Sábado. Estou olhando os livros, quando chega um bêbado e me conta que encontrou um livro sobre Raul Seixas, no banco da Praça de Casa Forte.

“Acho que o cara leu e esqueceu no banco”, diz.

“Que sorte, heim?”, respondo, e a senha está dada para a conversa.

Ele olha para mim, me dá uma cutucada e diz:

“A história do velho Raul!”

No mesmo dia, cheio dos quequéus, ele perdeu o livro.

“Se eu encontrar, pego pra tu. É a história do velho Raul. Perdi ali, perto de Dom Vital. Só tem ladrão”.

Dom Vital é uma escola, em Casa Amarela, defronte a Mery. Nunca vi ladrão por lá.

“O velho Raul, o velho Raul”, repete meu bebinho.

Passa o vendedor de relógios, com vários deles dentro de um recipiente plástico, cheio d’água.

“Queres? É a prova d’água”.

En se voi, dizem os franceses.

Casa Amarela. Onde os diálogos passeiam coletivamente por entre as mesas.

“Mas tu não é frango não, é?”
“Eu disse que voltava, não foi? O boêmio voltou novamente”.
“Boa tarde, Mery, é um prazer revê-la”.
“Eu não posso dizer a mesma coisa”.
“Faça feito eu: minta”.
“Eu não sei mentir, só sei falar a verdade”.
“Verdade demais mata, meu bem”.
“É cada um que me aparece aqui...”
“Ele está tomando Gardenal”.
“É remédio controlado, é?”
“É, mas só o remédio. Ele não tem controle de nada”.
“Dona Mery, não dá para comer sem colher!”
“Cadê o Zé? Nunca mais vi o Zé!”
“Ele é ele, tu é tu. Fica na tua aí que é melhor”.

Fico por aqui. O sábado me levou a passeios pela memória. Em 1987, quando cheguei aqui, Casa Amarela foi uma espécie de albergue da esperança. Depois de alguns anos fora, voltei para o mesmo lado da cidade. É onde está meu norte. Algo em minha alma pertence ao Recife. Não nasci recifense por uma distração espiritual dos meus pais. Vai aqui o meu perdão. É preciso perdoar sempre e amar sempre. Estou tentando.

13 comentários:

Anônimo disse...

Adorei ..'SEJA COMO FOR ,SEJA COMO FLOR" nossa!!! esse texto e tua cara ..saudades..
paty

Anônimo disse...

Nossa alma pertence ao mundo...e nosso coração escolhe onde ela deve pousar!!
Provavelmente foi isso que aconteceu com vc...
Boa escolha a sua!!

Anônimo disse...

Sama, o texto tá lindo. PH. Vai anônimo pq esqueci a minha senha do blog

Anônimo disse...

Velho Sama, o Recife te agradece...

Mariana Mesquita disse...

Que declaração de amor mais linda. Ó, adorei ter estado contigo ontem. Preciso de mais noitinhas em seu Vital. Beijo!

Ecce Homo disse...

Oi, cratense errante. Tb vivo exilado do cariri. Da uma passada no meu blog, se nao lhe for custoso deixa um comentario.
abraços.

Anônimo disse...

Nós ganhamos o cearense mais recifense que conheço. A casa já é sua desde 1987. Continue sempre aqui nos presenteando com essa lucidez poética que vê o arco-íris que existe em cada pessoa e em cada cantinho da cidade. Um cheiro.

Anônimo disse...

Sinto-me assim em Olinda, dobro as ruas subo as ladeiras, vejo uma igreja, um buteco, vários cheiros dentre eles o de jasmim, atrás dos muros coloridos exalando um cheiro único só deles. Lembranças memórias infância, rosto rosado, sorriso leve e intenso. Que saudade da casa de vovó.

Anônimo disse...

ecce homo: qual é o endereço do teu Blog?
samarone

Anônimo disse...

Sama, essa foi de encher os olhos d'água. E eu aqui com tanta saudade dessa terra...

Tiago Nobel disse...

Sama, muito boa a declaração de amor a essa nossa "cidade" peculiar. Afinal casa amarela é o maior bairro do "rifici". Abração!

Em tempo: Para vc acessar o blog de Ecce Homo é só clicar no nome azul dele. Ai vai aparecer uma linha pontilhada, vc clica nela e o blog aparece!

Anônimo disse...

"CASA AMARELA É O BAIRRO"!!!!

Massa esse teu relato sama, oh, já te perguntei isso há duas crônicas, mas, lá vai novamente:


Sama, tu conheces o bar de Djalma lá em Casa Amarela? vc segue pela estrada do arraial e antes do sinal do banco Bradesco entra à esquerda, é no final dessa rua. Lá além da simpatia de Djalma, vc encontra uma maravilhosa moela, guisado, sururu, pastéis...tudo com aquele prrecinho camarada. Quando puderes aparece por lá.
ps: Djalma não abre aos domingos e nem nos feriados (ele tanbém toma a dele...) abração...

Anônimo disse...

"Ele é ele, tu é tu,fica na tua que é melhor".
Um desconhecido de Casa Amarela/Ceará tem desviado a minha concentração. Talvez tarde, mas só agora olho as suas palavras arranjadas para o sonho e leio a dança das frases na imaginação. Como seu texto é inebriante!!!
Parabéns!!!