segunda-feira, 11 de setembro de 2006

O menino da escada

Algumas pessoas mais chegadas me saíram com essa. Era uma história de que eu tinha um menino, lá em casa, ele ficava debaixo da escada espiralada que leva para o primeiro andar. Em alguns momentos, alguns dias específicos, o menino aproveitava que eu estava dormingo, subia, ligava o computador, e escrevia em meu lugar. Os melhores textos, portanto, os mais delicados, penso, seriam do tal menino, ou o Menino Tao, se for o caso.

Estou começando a achar que é verdade. Nunca o vejo direito, mas penso que ele existe. Às vezes, quando abro a porta bruscamente, sei que ele conseguiu ficar quietinho, sem respirar muito, para que eu não o veja. Entre nós, portanto, vem surgindo uma cumplicidade de presença e ausência, e já nem reclamo, quando ele escreve no meu lugar. No fundo, é bom ter alguém para escrever no lugar da gente, quando falta algo para dizer.

Talvez eu recorra ao menino quando quero escrever coisas tristes, essas coisas que chegam pelas estradas da vida, pelos atalhos, pelos remendos, pelas feridas e derrotas. Eu tenho o estranho defeito de não querer compartilhar sofrimentos, eu sofro com um egoísmo profundo. Mas há dias em que dá vontade de chorar mansamente, baixinho, sem alarde, como quem reza sozinho, humilde, em uma catedral, repleta de silêncio. Reza, mas nada pede. Há dias em que a vontade é de aceitar a comoção com certos encontros, com as marcas no rosto de algumas pessoas que passaram pelos meus olhos, o vinco na carne, na face, as tatuagens do tempo, uma fivela nos cabelos emaranhados de luz.

Alguém me disse, hoje, que todos somos anjos caídos. Então me veio uma vontade de aceitação, um desejo de reconhecer outras calçadas, de me abrigar, de permitir não só o sorriso na chegada, mas o desamparo da perpétua busca, de compartilhar livremente os murmúrios. Me ocorreu também a presença de certos acenos, olhares que me valem mais que diamantes, silêncios que me dizem mais que todos os poetas.

Ah, vejam só o que me ocorreu. Comecei a escrever, ambalado por certas nostalgias do hoje, e o menino da escada perdeu os pudores. Saiu do seu cantinho, subiu a escada e chegou perto de mim. Depois, abriu um sorriso e me pediu para escrever comigo.

Perdoem pelas poucas linhas, pela fragilidade que me ocorre, pela falta de algum farelo de pão, que ofereço com algumas palavras. Eu talvez esteja confessando minha fome, com a ajuda do tal menino.

15 comentários:

Anônimo disse...

sama, hoje encontrei um anjo caído. ele tinha asas de morcego e sonhava em ser menino. conheço bem esse menino. foi ele quem me fez beber uma certa vida doída de dor, e chorar e beber o verde e depois o azul. sei bem o que é isso. do meu lado, querido, tenho que deixar o "velho" atuar (vc sabe de quem estou falando, né?) e com o cachimbo e a cúia eu apascento a dor.

seu amigo distante
G.

cometaurbano disse...

Sama, o texto é lindo, seja seu ou do menino.
Anjos, mesmo caídos, voam.
Um abraço grande do mano PH

Anônimo disse...

.

Minhanossasenhora, tudo junto mesmo. O que falar de algo desse tipo?
Que conheço poucas pessoas que tenham essa pureza da alma pra escrever e emocionar dessa forma.

Semana passada estávamos eu e uma outra fã tua falando justamente do teu blog. E no meio disso tudo lembramos de alguns textos, aliás, lembramos não, porque a gente só lembra do que esquece! =) A gente relembrou de alguns marcantes. Isso foi num almoço com direito a cerveja e tudo mais. Cenário perfeito pra falar dos teus causos.

Agora eu fiquei pensando ... eu acho sabe Samarone, que esse menino poderia sair mais dessa escada. Uma criança não pode se criar assim tão presa e no caso dela, é necessário ao menos o repertório para traduzir o mundo, ou a parte que do mesmo que chora.

Seja como for, suas palavras são sempre grandiosas e em textos assim, quando as risadas nos deixam à beira da estrada, surge um elemento de paz que se chama oração.

Fica com Deus!

Beijo!

.

Anônimo disse...

Texto lindo! Digo sempre a mesma coisa pela falta de palavras bonitas depois de ler as suas! Um beijão!

Anônimo disse...

Menino Serelepe este menino...
Vê se alimenta ele direito...(principalmente com muito afeto, carinho e aafinco)

Abraço... meu velho e até amanhã.

Anônimo disse...

Lindo e poetico, Sama. Como vc!
Tira um tempo pra passear e brincar um pouco com o menino!

beijos

Mariana Mesquita disse...

Que bom que o menino veio espalhar tanto azul na nossa vida. Estava com saudades dele. Beijo!

Anônimo disse...

Samarone. Difícil encontrar um comentário à altura do seu texto.

Anônimo disse...

Sama, vc escreve com a alma. E vc continua me fascinando. Saiba que sempre tem um anjo perto de vc.
Saudades de vc. Beijos.

P.S.: ontem tive a impressão de ter visto sua foto no JC.

Anônimo disse...

Samarone, esse poeta-menino é a imagem de como te vejo.
Um lindo menino, com a alma mais pura e poetica que já conheci.
Um beijinho....

Anônimo disse...

Muito lindo esse texto. Seria bom ter sempre um deslumbramento infantil diante das coisas e uma honestidade com relação aos próprios sentimentos que a vida adulta desconhece, mas isso é sonhar demais.

Finalmente achei teu blogger, queria ter sido sua aluna na católica.
juliana
http://sinalvermelho.zip.net/

Anônimo disse...

Exausto

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

(Adélia Prado in "Bagagem")
achei q tinha a ver c seu momento-menino.
beijos,
Lu

Anônimo disse...

Samarone, meu querido, de vez em quando é necessário deixar de lado esse "egoísmo profundo" na hora do sofrimento e permitir que possamos partilhar com você das lágrimas e da nostalgia. Que bom que o menino está vivo e traquinando ao seu lado, expondo sua verdadeira face de poeta que nos enche de emoção. Um cheiro de mãe.

Anônimo disse...

Samarone,

Que menino lindooo!!!!
Eu e minha filha desejamos toda a sorte e do mundo para vc e o menino.

Um bj

Conceiçaõ e Moara

Anônimo disse...

Chore não, menino... Pelo menos vc está no Recife..