quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Quando nevou no Recife da minha imaginação

Foi ontem à tardinha. Estava molhando as plantas depois de um daqueles dias em que tudo urge, as demandas saem como aqueles milhos de pipoca, estourando todos de uma vez, e o sujeito se vê exausto, ao crepúsculo, quando me ocorreu algo.

Fiquei imaginando a chegada de uma enorme frente fria, no Recife, em pleno mês de setembro. Mais que isso. Fiquei vendo aqueles floquinhos de neve, que começam a descer lentamente do céu, igualzinho ao cinema. Perdão, amigos, não tenho contrato com o pessoal da previsão do tempo. Foi apenas uma divagação íntima. Então fiquei imaginando esta memória.

Ato contínuo (ôps, Davi), os meninos daqui do Poço da Panela, que são muitos, sairiam correndo, aos gritos.

"Olha a neve ai/ Olha a neve aí", estirando as mãos para pegar no algodão geladinho.

Não, não haveria mãe alguma gritando da porta:

"Passa já para dentro, menino, que tu vai pegar uma gripe braba".

Tampouco os meninos sentiriam frio. Quem, aos sete anos, morando no Recife, sentiria frio, com a chegada dos primeiros floquinhos de neve em pleno verão?

A venda de Seu Vital, aqui na esquina, ficariam imediatamente entupida de gente, porque a nevasca aconteceria ao anoitecer. Sem poesia, amigos, não vamos longe.

Os tradicionais pedidos, por uma cerveja gelada, seriam transferidos para algo mais forte.

"Vital, um conhaque, s’il vous plâit", diria Tony, puxando o cachecol, que estaria quase arrastando no chão.

Sim, amigos, com a chegada da neve, todo recifense ressuscitaria seu passado francês, seu passé composé.

"Il fait froid", responderia outro, tremendo.

"Uma Pitu, Seu Vital, uma Pitu que essa neve pegou a gente desprotegido, ula-la", completaria alguém, usando esse "ula-la" famoso.

Vital, com seu casaco de general e luvas, continuaria a ser a mais delicada das criaturas.

"Toma logo, peste!", responderia docemente.

Nas semanas seguintes, a neve se acumularia pelas ruas. Aqueles que costumam caminhar nas primeiras horas da manhã, passariam com seus esquis, creio, desengonçadamente, tentando acertar o passo.

"Essa primeira nevasca a gente nunca vai esquecer", comentariam.

Casais apaixonados jogariam neve uns nos outros. Com as crianças, seria diferente. Haveria uma batalha diária. Escondidos detrás dos postes e dos carros, os pirralhos mandariam ver. Eu lembro de uma guerra de mangas, há muitos anos, que durou muitas horas. Além disso, neve dói menos que caroço de manga.

Lulu passaria no seu carrinho, toda coberta, mas teria a intuição de botar a mão para fora, olhar com aqueles olhos de amêndoa e dizer:

"Neve, Samarone, Neve!"

O movimento nos bares, creio, iria reduzir. Os amigos se juntariam mais, e se beberia muito vinho. Creio que os poetas escondidos ousariam mostrar seus escritos. Logo, surgiriam os saraus. Aqui-acolá, alguém comentaria, olhando pela vidraça aquele mar de branco do lado de fora:

"E essa nevem, heim?"

Como estamos no Recife, logo começariam as campanhas. Agasalhos urgente, que o povo está com frio. Aquecedores surgiriam com a devida urgência, em todas as lojas, em dez parcelas cheias de juros. Creio que nossos animais, acostumados ao calor, sofreriam muito, e seriam mandados para os países vizinhos, como o Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas.

"Aquilo sim, é que é lugar quente e bom", comentariam os bebinhos do Mercado de Casa Amarela.

Depois de algumas semanas, nos daria aquela impaciência. E aquele sol do domingo? E caminhar só de calção, às seis da matina? E a pelada semanal, com a neve cobrindo a terra?

Logo surgiria um problema existencial, de caráter irreversível: a impossibilidade de jogar decentemente um bom dominó, com a utilização de luvas grossas.

Então veio passando um carro na rua, meu regador estava atrapalhando a passagem, tive que parar de divagar. Súbito, parou de nevar na minha imaginação, tudo voltou ao normal, aquele calor da tardinha, início de noite no Recife. Depois, molhei as plantas do quintal, guardei a mangueira, tomei um banho e fui tomar um cafezinho em Vital, a minha Pasárgada.

Fiquei rindo um pouco, imaginando meus camaradas tremendo de frio, mas felizes por terem um ótimo motivo para beber coisas fortes e falar um francês precário. O dominó já corria solto. Alguns bebericavam a cerveja, não tão gelada.

"Esse febrento", reclamou Seu Vital, quando seu parceiro errou a jogada.

Fiquei com essa dúvida no espírito: como será que se diz "febrento", em francês?

Emilia vai me ajudar, tenho certeza.

Au revoir.

7 comentários:

Anônimo disse...

Samarone! Linda crônica. Sensível, criativa e muito feliz!
Grande abraço, Priscila

Anônimo disse...

Não sou Emília.. mas Féberrentui seria o correto para Febrento.. meu caro.

betita disse...

"Sem poesia, amigos, não vamos longe"...perfeito, Sama.

Pedro Macedo disse...

Um dia, na minha cabeça, nevou em São José do Egito. E a feira foi cancelada.

Anônimo disse...

Sama,
Sem dúvida, mudaram as estações.
Nada como uma coberta quentinha, uma xícara de chocolate quente e a companhia de quem a gente gosta, nesses dias nevados.
Beijo
Naire

Tiago Nobel disse...

Sama, tu é um doido maravilhoso! No texto, no momento em que vc "desperta" do transe, eu já não queria mais voltar. Queria que vc tivesse continuado sua descrição, de mansinho, assim como a neve que chega... Abraço grande!

Anônimo disse...

Faz tempo que nao vinha aqui...
Acho que nunca comentei, mas o seu blog era obrigação nas minhas leituras matinais. A correria do trabalho em Sampa foi fazendo eu deixar de lado coisas boas, mas agora voltei para matar as saudades dos bons textos e de Recife...