domingo, 12 de novembro de 2006

De volta para um aconchego

Rua Hercilia Cavalcante, 65, no centro do Cabo de Santo Agostinho. A casa onde passo a viver fecha a rua, de sorte que não corro o risco de ser atropelado. Moro no primeiro andar, após subir uma escada com degraus finos. Sempre acho que vou tropeçar, mas não aconteceu ainda. Da janela lá de cima, posso ver e escutar o barulho imenso dos alunos do colégio estadual Luisa Guerra. Caramba, a escola é uma zona!

Moro com a amadíssima tia Flocely, com seus 79 anos e cabelos branquinhos, Renato, o filho de Rosa, que é o braço direito de tia. Uma figura de imenso destaque neste novo lar é um camarada chamado Bambam, um vira-latas de quatro anos, o reizinho da casa. Não tenho medo nenhum da saúde de tia. Tenho um pavor existencial de uma eventual fuga do animalzinho, ou de uma morte precoce. Tia sofreria demais.

Esta semana, aproveitando a troca do portão, o camarada fugiu. Cheguei em casa e a notícia chegou aos ouvidos de tia, que ficou arrasada. Ele foi localizado por mim e Elton (marido de Rosa) numa rua aqui próximo. Não esboçou reação e voltou para casa balançando o rabo.

Estou fazendo o reconhecimento do terreno aos poucos. Ontem dei uma boa caminhada, vi a academia "Sinta-se bem", alguns mercadinhos, o açougue, barracas diversas, e já localizei o meu boteco, que é o do Mário. O nome dele é Amaro, mas ele acha o nome horrível, prefere ser chamado de Mário.

"Como é que um pai bota o nome do filho de Amaro?", pergunta. Eu nem acho essas feiudices todas.

Adapto-me às rotinas da nova casa. O café da manhã eu não ligo muito, porque sou um cearense esquisito, que gosta muito de chimarrão logo cedo (as ervas que vendem por aqui, infelizmente, são o que de pior se produz no Sul, mas meus amigos vivem prometendo mandar um pacotinho, e nunca mandam). O almoço é ao meio-dia, e me esforço para estar com fome ao meio-dia, para não atrapalhar a rotina. Na sexta-feira, o almoço é peixe. Quando não estou trabalhando no Recife, passo a tarde lá em cima, escrevendo minhas besteiras, até que às 19h, tia chega ao pé da escada e diz:

"Sama... vamos jantar?"

Eu geralmente vou.

Jantamos eu, tia e Renato. Rosa faz tudo, cuida de tia, e vai embora à tardinha. Rosa adora dizer que meu cabelo está cada vez pior. Depois de jantar, Renato sai, e ficamos papeando, eu e a tia. Ontem fiquei sabendo que ela foi uma leitora voraz, mas agora anda cansada da vista. Falei que estou lendo "As mil e uma noites" e ela lembrou que já leu também. Amanhã vou ler uns trechos para ela. Antes, vamos a um frenologista. Descobri esta semana que frenologista é um médico dos rins.

Enquanto meu notebook não sai do conserto, uso o computador de Renato, que fica aqui no térreo. De vez em quando, Bambam vem, fica ao meu pé, aguardando um carinho. Passo a mão na cabeça, ele fica contente, depois vai embora. Sempre me dou bem com cachorros, especialmente os vira-latas. Acho que nas vidas passadas fui um deles.

Renato sabe copiar um bocado de coisas no computador, e está copiando alguns cds. Ele não cobra nada. Ontem, me ensinou a escanear fotos. Na hora aprendi, mas desaprendi logo. Decidi escanear as fotos antigas da família, que estou contrabandeando de Fortaleza, aos poucos.

O motivo da mudança é simples. Quero estar mais perto da tia, e as viagens Poço da Panela-Cabo estavam me consumindo a resistência. Continuo adorando o Poço, mas eu gosto dessas andanças. Daqui a pouco, arrumo as malas de novo. Por mim, eu teria casas espalhadas pelo mundo. Sonho em morar um tempo no exterior. Penso na África ou América Central.

É um reencontro também, o que estou vivendo aqui. Morei nesta casa entre 1992 e 1994, quando estava lá com meus vinte e pouquíssimos anos, e começava no jornalismo. A casa é a mesma, a rua é a mesma. Só Biliu e Zezé que morreram. Biliu era maravilhosa, aquelas velhinhas que contam piadas safadas. Tia levou duas quedas, teve um início de derrame, mas está bem, e daqui a pouco comemora 80 anos. Arali, que vi pequeníssima, está uma moça. Outro dia, morreu o Netinho, filho da vizinha, com 27 anos. Fui à missa de corpo presente com tia, e foi uma coisa muito triste. O padre também mudou. Sou mais o antigo. O quarto que morei, agora é ocupado por tia. Onde ela morava, agora vivo eu. São as reocupações geográficas, coisa que o mano Paulinho entende bem.

A casa fica ao lado do Centro das Mulheres do Cabo. Na época em que trabalhei para o Diário de Pernambuco, fiz matéria mostrando o trabalho das mulheres. O jardim é espaçoso, já comecei a dar umas arrumadas, vai caber todas as minhas plantas. Só não sei ainda como vou fazer com meus inúmeros livros, porque o primeiro andar não é tão grande assim.

Com calma vou me arrumando. Ainda sinto falta de acordar e tomar logo aquele café bem doce de Seu Vital, com o sol da manã do Recife, papear umas besteirinhas, ver ele botar a comida para os louros. Mas não faz parte da minha natureza estes apegos. Eu lembro, e é bom, a vida segue.

Estou mesmo de volta para um aconchego. Vou nessa, que Renato quer dar uma olhada no computador.



ôps: levei a tia a um nefrologista, não a um frenologista, que são coisas diferentes, como bem me alertaram.Ontem aprendi a tirar a pressão arterial.

Estuário está agora também no instigado site www.mutuca.com

9 comentários:

Anônimo disse...

épocas melancolíricas.

o pássaro a voar.

G.

Anônimo disse...

Caríssimo Samarone...

Como você escreve bem!!! Que bom saber do teu paradeiro.

Parece que estava vendo tuas peregrinações pelo bairro. Sucesso nessa nova caminhada.

Também sou fã de As Mil e uma Noites! Qual edição estás lendo? Qual tua história preferida até agora?

Bem, fica aquele abraço saudoso,
Priscila

Anônimo disse...

Sama,
Adorei a visita. Papai gostou de vc, caso contrário não teria soltado o verbo. Ele é uma figura. Já estou repetindo o que ele diz" quem não quizer saber da verdade, mate os velhos". Entendo perfeitamente o seu amor por "tia".
Beijo
Naire

Anônimo disse...

Sama, se é possível uma aluna corrigir o professor, o médico que cuida dos rins não é frenologista é nefrologista. Mas tudo bem, gostei da nova palavra, rsrsrs.

Aproveito aqui para dizer que indiquei este blog para minha mãe, que mora no Espírito Santo. Como ela sentia muitas saudades de casa, disse a ela para lê-lo. Ela agora é sua fã e quando ler este recado vai morrer de vergonha.

Bom, é isso. Boa sorte no Cabo.
Um abraço, Juliana

Ana disse...

Ainda bem que vc nem liga! Nem sente estes apegos...

Tá bom!! A gente acredita!!

Giovani de Morais e Silva disse...

Você está muito melancóico, meu velho! Espero que não invente uma depressão... Vai dar uma volta na Vila Contra-mocambo que lá tem gente que dá crônica na certa... e levanta esse astral!

Anônimo disse...

Bom saber de vc... Já estava sentindo uma pontinha de saudades pensando em não ter a oportunidade de um dia te conhecer. Afinal, até então, eu não sabia pra onde vc tinha ido.
Fiquei feliz em saber que vc continua aqui pertinho de nós... Recifenses!
Sama, mudanças são sempre importantes. Nos fazem crescer, amadurecer e aprender a viver de maneira mais sábia.
Tenho certeza de que sua escolha foi a melhor pra vc e para aqueles que vc ama.
Mas lembre-se: vc tem OBRIGAÇÃO de ser feliz! Portanto SEJA!
Forte abraço pra vc.

PS: vc vai continuar visitando o Poço, né? Quem sabe um dia vou te conhecer lá...

Anônimo disse...

Meu caro amigo, continuo em salvador. Quando quizer venha e fique em minha casa.
Abraços,
Pabá

Anônimo disse...

Sama, ainda bem que corrigiram, pois a palavra frenologia, em que pese a sua sonoridade, na verdade significa "mediçao da cabeça" e esta associada ao desenvolvimento da antropologia criminal, aqui difundida por Nina Rodrigues, e que procurava justificar (pseudo) cientificamente a propensao dos negros para o crime, baseado em dados como o tamanho do cranio, formato do nariz, largura das mãos e pés, etc. Entao, vida longa à tia Flocely com o seu nefrologista, mas frenologista espero que nao tenha sobrado mais nenhum!

Ana Paula