quarta-feira, 22 de novembro de 2006

O retorno terno

Ah, nada como uma nova casa e a nova vizinhança! No meu caso, é um reencontro com uma vizinhança que deixei para trás em 1994, naquele rumoroso dia em que viajei para São Paulo, onde fiquei por seis bons anos.

À esquerda, um depósito de material de construção, nada a declarar. Um depósito de material de construção é um depósito e ponto final. À direita, pasmem, infelizmente, uma escola. Nunca pensei que fosse dizer isso: como é horrível morar ao lado da Escola Estadual Luisa Guerra, Deus do céu!

Tem aulas os três turnos. Daqui escuto uivos, gritos, e parece que na escola tem tudo, menos aula. Daqui da janela, posso ver as aulas no primeiro andar. Olho, reparo, busco um lenço para enxugar as lágrimas. Os jovens não estão nem ai, a falta de professores é constante. Os que dão aulas, dedicam um bom tempo a escrever coisas intermináveis, no quadro branco, aquele negócio que é um tédio completo para quem está na cadeira. Outro dia, vi uma professora de Português explicar o que era um verbo "intransitível".

Um amigo disse que tem um termo na Medicina que se chama “poliesculhambose”. Essa escola é um exemplo. A cena mais normal do mundo é as turmas serem liberadas lá pelas 10h da manhã. Outro dia, soltaram uma bomba de São João numa sala. A providência da diretora foi de uma pedagogia incrível: liberou todo mundo, e foi a maior festa.

Pela graça divina, a escola vai embora no próximo ano. Volta ao seu lugar de origem, após uma interminável reforma. Voltaremos a ter silêncio. Minha tia, que foi a primeira diretora, há muitos anos, acompanha meio desolada o rumo que sua escola tomou. Essa escola me parece ser uma pequena metáfora do que estão fazendo com a Educação no Brasil, mas isso não é tema para minha cronicazinha de hoje.

Mais adiante, a casa de Luizinho e Neide, depois da de Jorge, filho de Biliu, que morreu quando eu morava aqui, em 1993, creio. Tem uma bandeira do Sport pendurada na janela, objeto perfeitamente desnecessário em logradouro público. Do lado de cá, depois do depósito, a casa de Detinha, as filhas e agora um bocado de netos e netas. Virando à esquerda, o glorioso Centro das Mulheres do Cabo, uma ONG conhecida e muito atuante. Daqui a uns dias, vou levar meu curriculum, para ver se descolo alguma oficina de literatura ou coisa parecida. Virando à direita, temos uma pequena jóia que é o Fernando, o sujeito que conserta coisas diversas. Mais que isso: ele conserta máquina de datilografia. Conserta máquinas e bebe uma garapa incrível.

Foi lá que encontrei esta maravilha, chamada Olivetti Lettera 25, não sei o ano. Ele começou me pedindo oitenta reais, e tivemos uma seqüência de 12 assaltos e julgo que ganhei por pontos. Lá pelo terceiro round ele baixou para setenta mangos. Fui de esquerda, de direita, apliquei-lhe uns jabs, me esquivei várias vezes, mandei uns cruzados de esquerda (meu forte, Joãozinho Peruca sabe disso), até que o negócio ficou em R$ 60,00. No último segundo, baixou para R$ 50,00 e o gongo tocou.

Ela está aqui, e belezoca. Estou passando todos os poemas a limpo nela, graças à pressão psicológica do Gustavo, e batucando outras besteirinhas. Fico no primeiro andar escutando aqueles plec plec plec e lembro do curso de Datilografia, que fiz em Fortaleza, há muitos anos. A primeira aula eu lembro bem: asd asd asd asd, até encher umas folhas. Então, eu nunca mais na vida parei de encher folhas.

Eu adoro o som da máquina de escrever. Faz bem para a alma. Quando comecei a estagiar no Diário de Pernambuco, a redação ainda era movida a máquina de datilografia. Eu gostava daquela confusão, aquele ruído das máquinas. Redação sempre foi uma coisa barulhenta, animada, divertidíssima. Os computadores chegaram acompanhados de uma nova ordem – as coisas ficaram mais silenciosas. Acostumado com as máquinas de ferro, eu batuco com uma certa força no teclado. Acho que é uma tentativa inconsciente de escutar a música dos primórdios. Vou perguntar a Ana e Wal, psicólogas da minha escola, se uma coisa tem a ver com outra.

Na última vez que estive em Fortaleza, encontrei a minha velha Remington, aquela mesma que usei durante todo o curso de Jornalismo e Educação Artística. Ela torrou a paciência de muitos colegas de quarto, na Casa do Estudante Universitário (CEU). Fiz o contrabando para cá, sem que minha mãe percebesse.

Lembro que uma certa feita eu tinha que entregar um trabalho no dia seguinte, os colegas de quarto estavam dormindo, não tive dúvidas. Fui ao banheiro da CEU, levei a cadeira, a máquina, fechei a porta e fiz o trabalho todinho, madrugada adentro. Tem hora na vida que não adianta – ou o sujeito tem raça, esfrega a venta na vida, ou fica.

O Fernando cobrou R$ 25,00 para consertar, limpar, botar óleo, deixá-la tinindo. Tivemos uma nova guerra civil, que só terminou quando ele baixou para R$ 15,00. Isso é uma forte herança materna. Minha mãe pechincha até em loja de R$ 1,99.

À noite, passam uns vigilantes com uns apitos. Eu não gosto de escutar apito três horas da manhã, porque acordo e lembro que o Santa Cruz caiu para a Segunda Divisão. Minha tia disse que é para eles, os vigilantes, mostrarem que estão trabalhando. Sim, podem trabalhar meus amigos, mas precisa apitar às três da madruga?

Será que estou vivendo aquele negócio do Eterno Retorno? Volto a viver com a tia que me acolheu, quando saí da Casa do Estudante. Eu estava começando no Jornalismo, minha bagagem só tinha mesmo livros, ela tinha acabado de se aposentar, estava morando sozinha, fazia caminhadas e nadava.

Aqui, neste primeiro andar, vou trabalhar pra valer, nos próximos meses, para terminar meu terceiro livro-reportagem. É o último, fruto das minhas pesquisas sobre as ditaduras e outras coisas. Adoro esse negócio de "Trilogia". Mas esse tem também uma história de amor no meio, talvez outras coisas, vamos ver, é surpresa, tomara que eu consiga costurar bem as muitas histórias que se cruzam.

É fascinante saber que foi aqui, em 1993, que comecei as pesquisas para este livro. Lembro que eu voltava das entrevistas apaixonadamente encantado com as histórias de vida de uma geração que lutou contra a Ditadura, e mostrava alguns trechos das gravações para a tia. Ela se emocionava e compartilhava tudo, dando suas opiniões.

Não, não é eterno retorno o que estou vivendo. É o retorno terno, como bem diz o querido Rubem Alves.

10 comentários:

Anônimo disse...

Samarone,


Estou muito feliz por você, devido aos últimos acontecimentos. Inácio me falou... estou adorando ter amigos (irmãos) famosos.Olha antes da consagração autografa o meu Estuário...é mais charmoso dizer assim ... "Tenho um livro autografado por ele quando ele ainda não era tão famoso"... rsrsrsrsr. Naquele dia, eu estava mais preocupada com o pagamento das minhas "contas" e esqueci de lhe pedir o autografo.
Sim, adorei a crônica.

Bom dia!

Conceição Cardozo

Anônimo disse...

bom trabalho sama,
mas não esqueça de datilografar os poemas.

G.

Anônimo disse...

Que raio, Saminha!
agora que to no Recife tu vai embora pro Cabo. Eu,hein...
Encontrei um tal de Osvaldo Soriano no sebo e lembrei de voce.
Tuas agendas tavam em falta, deixei uma agente em Londres ja providenciando isso, dai so chegam em dezembro, snif, snif.
Quem sabe um dia...
manda o endereco e eu te mando o `Osvaldo´. Tambem encontrei nosso querido Rubem Braga, mas esse nao te dou, so quero me amostrar.
Te cuida, cabeludo.

Fabiana

Anônimo disse...

Olha, Samarone. Adoro muito as coisas que você escreve. Muuuuuito mesmo. Mas, desta vez, queria mesmo era fazer uma propagandinha do site de um pessoal amigo meu. É o www.vacatussa.com, um site de literatura. Tem textinhos legais e críticas. Se tu tiver um tempinho...
Beijo

Anônimo disse...

Sama,
Quero um livro seu, pra dar de presente, e precisa de autógrafo.
Como faço?

Meu email é camillachidid@gmail.com
Muito obrigada!!

Anônimo disse...

sama, por favor, movimenta mais teu blogg... minha diversao todas as manhas tah ficando muito monotona.. toda vez é a mesma cronica! já tô com saudade de sentir emoçao gostosa q teus textos provocam!

Anônimo disse...

Samarone

Linda Crônica!
Não esqueça do meu Estuário e do meu Zé. Me dê dicas de como faço para conseguí-los.
Grande abraço e até mais,
Priscila

Anônimo disse...

Samarone

Linda Crônica!
Não esqueça do meu Estuário e do meu Zé. Me dê dicas de como faço para conseguí-los.
Grande abraço e até mais,
Priscila

Anônimo disse...

Samarone, pedi sua autorização e realmente mandei sua crônica para Rubem Alves. Acho a singeleza de seus escritos semelhante a dos dele e fico feliz quando você termina citando um de seus livros maispoético sobre os constantes retornos de nossa vida.
Estou aguardando a Trilogia e, quem sabe,dessa vez com autógrafo?
Continue, assim, maravilhoso, meu querido.
Saudações tricolores!
Um cheiro, de mãe.

Livros & Literatura disse...

Samarone:

Parabéns pelo seu blog. Adorei a crônica O Retorno Terno. Rubem Alves é um educador de extrema importância em nosso país.
Um abraço! Marcela.

"Quantas pessoas começaram uma nova era em suas vidas a partir da leitura de um livro..... "

(Henry David Thoreau)