Espaço para crônicas das mínimas coisas. Estuário é o lugar de encontro do mar com o rio, uma das regiões mais férteis do planeta. Salgado e doce se misturam, como o suor e a saliva. É a desembocadura de um rio, que pode ser muito bem o Capibaribe, que atravessa o Recife, cidade onde vive o autor dos textos, Samarone Lima.
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
Margeando o Velho Chico - I
O Velho Chico, fotografado pelo andarilho Iramarai Vilela
“Vai moiando os pés no riacho
que água fresca, Nosso Senhor,
Vai oiando coisa a grané
Coisas pra mó de ver
O cristão tem que andar a pé”.
Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em "Estrada de Canindé”.
Inspirados no velho Gonzagão, vou com o velho Iramarai andar a pé, na esperança de olhar as coisas a granel. A convite de amigos, vamos de Ouricuri a Santa Maria da Boa Vista, porque terminamos um trabalho que consumiu vários dias, e agora é o tempo de percorrer estradas sem pressa, sem essa de turismo.
O time da despedida é de primeira: Belém, Boy, Nana e Iramarai. Ao meio dia e trinta e três, chegamos à cidade, procuramos um restaurante à beira do Rio São Francisco, que nós daqui conhecemos como “O velho Chico”. Entramos eufóricos, loucos para comer peixe. Sentamos, eu pergunto em voz alta se tem peixe no local, todos me olham de mal jeito. Depois do silêncio, olho para o cardápio. Está lá, em letras garrafais:
“Bar do peixe”.
Comemos, bebemos uma cachaça deliciosa, a Karibé, conversamos águas imensas, olhando para o Velho Chico. Mais tarde, nossos amigos pegam a estrada rumo ao Recife. Com meu comparsa Maraí, o mesmo da caminhada Exu-Crato, mês passado, vamos caminhar, para entrar em outra freqüência. É que a gente vê melhor a vida andando devagar. E o cansaço de uma longa caminhada é coisa que não se explica, coisa para longas conversas.
Antes de seguir, percorremos a feira de Santa Maria. Tem de tudo, quem conhece as feiras do interior do Nordeste sabe muito bem. Tem comida, roupa, sapato, cinturão, produtos de norte a sul das necessidades, remédios os mais diversos, curas a preços módicos. Olhamos, comparamos preços, não compramos nada. Avistamos um barco se preparando para sair, perguntamos para onde vai, o sujeito responde, não lembro bem, mas como custa apenas dois reais, vamos nessa. Vai ser uma hora dentro do Velho Chico, então já me sinto um felizardo.
São poucos os companheiros de jornada. José Aristeu, cinqüenta e dois anos, descobriu diabetes há um ano. Toma dois remédios por dia: Glicofor, de oitocentas e cinqüenta mg. Desculpem aí, mas o meu teclado não está pegando os números, mais tarde conserto. Olho o remédio, descubro que é Cloridrato de Metaformina, algo assim, posso ter anotado errado porque já tinha tomado umas garapas. Além disso, Glibenclaminda, de cinco mg. Os remédios foram pegos no hospital da cidade. Aristeu não sabe o nome do hospital da cidade, sabe apenas que ele, o hospital, é do município. Na farmácia, dez comprimidos custam dezesseis reais.
São quinze horas em ponto quando chegamos à Ilha de Deus. A canoa vai ser descarregada. Tem umas cinco sacas de adubo. Invento de ajudar, mas me arrependo rapidamente, as sacas são pesadas como o quê, e estou fora de forma. Depois, vem um dos quatorze filhos de Aristides, que esqueci o nome, o menino vem com um carrinho de mão. Os exagerados de plantão vão dizer que é trabalho infantil, mas para mim, ele está somente ajudando o pai, e filho gosta de ajudar o pai. Olhei agora direitinho minhas anotações, o menino se chama Edson, tem quatro anos, um problema no dedo mindinho, porque sofreu uma queimadura. O Gildázio [www.gildaziomoura.blogspot.com] vai me dizer que não é defeito, mas “pessoa com deficiência”, eu respondo “menos, Gildázio, menos”.
O timoneiro informa que vamos de Cupira para um povoado chamado Inhanhum, que fica a um quilômetro. Um quilômetro de barco no rio São Francisco é um presente da vida. O barco vai deslizando manso, parece que a gente está num útero. O José Aristeu tinha perguntado o que a gente fazia por ali, Iramarai respondeu que estávamos pesquisando sobre as plantas da região, para a Universidade Federal de Pernambuco, e ele comentou:
“À toa vocês não estão”.
O barqueiro, um homem negro e prestativo, se chama José Ernane Rodrigues de Souza, tem trinta e seis anos, e é barqueiro há trinta e seis anos, segundo suas próprias palavras. A falta dos números no teclado está começando a encher a minha paciência.
Chegamos em terra firme, pagamos dois reais cada, somos informados que vamos passsar em Cupira de Baixo, depois Anhum, um Nhanhum. O nome da cidade, por sinal, me provocou dores de cabeça as mais diversas, porque em cada boca, havia uma pronúncia, e meus ouvidos não passavam a mensagem direito para os dedos, que é onde se localiza meu cérebro.
Andamos em terras as mais diversas, passamos por casinhas, vilarejos, todos com suas respectivas antenas parabólicas, até que escutamos um som altíssimo, e descobrimos que estamos em Cupira. É o hino do Flamengo. A cada passo nosso, o hino fica mais forte, e descobrimos que vem de um bar vazio, com um enorme galpão, onde o povo dança forró. O proprietário é um obcecado, porque o hino termina e recomeça imediatamente.
“Uma vez Flamengo/ Sempre Flamengo”.
Só não fiquei mais chateado porque lembrei do tio Ademar e Seu Almir, fanáticos torcedores do rubronegro carioca. Lamentei profundamente não ter levado um CD com o hino do Santa Cruz, para ele ver o que é sinfonia, mas não vem ao caso, não quero arranjar briga logo com a torcida do Flamengo.
Paramos para pedir água. A contragosto, ele baixou o som. Aproveitei para ir ao banheiro. Usei o das mulheres, que é sempre o mais limpo, em qualquer lugar do mundo, a céu aberto, por sinal.
Enquanto ficamos no bar, escutei o hino do Flamengo treze vezes.
Voltamos à estrada, margeando o São Francisco, e paramos para um bom mergulho. Foi besteira parar no bar, porque o rio tinha muito mais água, com a vantagem de não ter o hino. Seguimos olhando a paisagem do Sertão, os bichos, as plantas, as gentes. Passam crianças saindo de uma escola, elas sorriem quando vêem dois cabeludos caminhando,com mochilas nas costas, perguntamos os nomes, se sabem escrever o nome, essas bobagens, tiramos fotos, fazemos rápidas amizades e seguimos sem rumo.
Escurece, pergunto ao Iramarai qual o nome daquela primeira estrela, ele é pego de surpresa, não sabe.
“Preciso esperar que elas subam”, diz, aproveitando para dar uma pequena conferência sobre constelações e a Via Láctea.
Nos perdemos em algum caminho, escureceu de verdade, não temos lanterna, então surge do nada uma fragata velha, fazendo o barulho de um tanque de guerra abatido por ima granada. É um ônibus escolar, que vem dando golfadas e pulos, como um sapo ferido. A cena é inacreditável: o motorista vem iluminando a estrada com a ajuda de uma pequena lanterna. Lá mais na frente, a carroceria velha pára, aproveitamos para perguntar o caminho de volta, ele explica, e os meninos nos olham assombrados. O ônibus então segue, iluminado pela lanterna do homem que dirige.
Ao contrário de outras viagens, não demos sorte de conseguir uma hospedagem com algum morador. Decidimos acampar ao lado de uma quadra de fuebol em construção. Catamos gravetos os mais diversos, Maraí faz um fogo em cinco segundo, preparamos um belo café, numa lata de leite Ninho, conseguida quilômetros antes, em Inhanum. Desconfio que a noite vai ser deliciosa.
De repentte, olho para o céu, que está coalhado de estrelas. Maraí mostra as constelações, lembro de Órion e outra que esqueci, e sei que ainda sou cego para estrelas. Ele vê formas, desenhos, figuras, meu olhar sem poesia, sem conhecimento,vê apenas estrelas, mas não é de todo ruim, porque acho bonito mesmo assim.
Abrimos o saco de comida. Atacamos uns damascos secos que nossa chefa nos deu, no começo da viagem, junto com banana desidratada, que fica uma delícia. Aqui-acolá, passa uma moto do nada. O Sertão de Pernambuco está cheio de motocas, antenas parabólicas e torcedores do Flamengo, Corinthians, Vasco etc.
Vencidos pelo cansaço, adormecemos. Acordo mais tarde, boto mais lenha na fogueira, porque faz frio. Então chega a figura ilustre da madrugada fria, um vira-lata doce e afetuoso. Maraí acorda feliz. Discutimos nomes os mais diversos para nosso primeiro amigo de viagem. Vence “Sertãozinho”. Depois Maraí dorme, fico brincando com o camarada, até que entrego os pontos.
Faltavam dez minutos para as cinco da manhã, quando fui despertado pelo meu comparsa de viagem. Estava pronto para mais um dia de caminhada.
“Vamos, que não estou para especulações não”, foi o que disse.
Apagamos o fogo, arrumamos as mochilas e botamos as patas na estrada.
Nem sinal de Sertãozinho, nosso mascote.
Não sei de onde surgiu isso, mas me ocorreu que a gente só vê as coisas quando as descobre.
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10 comentários:
ei seu moço, vênus é sempre a primeira e a mais brilhante de todas e se isso não é uma informação cientificamente comprovada, gosto de pensar assim porque prefiro vênus a todas as outras e então fica sempre sendo ela, simplesmente pela liberdade de gostar sem invadir todas as profundezas do universo. quanto às constelações, no deserto, no sertão, no meio do nada-tudo do mundo, basta saber que é quando o céu está mais escuro que derrama estrelas na terra com mais generosidade. tento ser assim e sigo dando cambalhotas e entregando risos nas beiradas do caminho.
bem, un petit bisou pour toi
"Pelo amor de Deus Samarone" tu e Iramaraí são figuras ilustres...
Eu, Lu, Janete e a "chefa" nos arrependemos de não ter ido dar aquela olhadinha no Velho Chico com vocês!!! Fica pra próxima.
Um grande abraço amigo.
Els Amorim
Hino do flamengo 13 vezes é de doer, hein...pelo menos serve pra ter certeza que eles são campeões brasileiros de 1987!
Mais um relato delicioso!
conte mais, que há ouvidos ávidos pra escutá-lo!
Por motivos alheios,estava a um tempo sem entrar em seu blog......e não é que estava com sede!!!!Obrigada,Graça.
daqui ponho o pé na estrada com voces.
bjs
Magali
Eita, lá vou eu ouvir 'Estrada de Canindé' e pegar um bigu na tua viagem...
Tu andando pelo Rio do Chico, lembrei do encontro de Riobaldo e Diadorim: 'para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa.'
Um beijo!
Marília.
[mariliachalegre@yahoo.com.br]
Sama pelamordedeus!!! Eu QUERO. To aqui sentindo contigo, lembrando contigo. Andar é bom demais e aí nesse sertao de meu Deus é que deve ser o pipoco do trovão. E viva o caminho de santiago de mortadela. Bora se econtrar quando tu voltar? Pra conversar das aventuras e desventuras do caminho.
beijo e vai lá!
carol bolinho
Sama pelamordedeus!!! Eu QUERO. To aqui sentindo contigo, lembrando contigo. Andar é bom demais e aí nesse sertao de meu Deus é que deve ser o pipoco do trovão. E viva o caminho de santiago de mortadela. Bora se econtrar quando tu voltar? Pra conversar das aventuras e desventuras do caminho.
beijo e vai lá!
carol bolinho
Alguém poderia informar onde é o novo ponto de encontro dos Amantes de Glória?
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