quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Margeando o Velho Chico (Final)


Iramarai com as crianças do Sertão


Flor do Caruá

No segundo dia da caminhada, percorremos caminhos os mais diversos, por estradas ermas, onde cruzávamos vez por outra com motoqueiros de todos os estilos e idades. Foi o melhor momento da jornada. Só a paisagem do Sertão, o silêncio muito, pontuado pelo cantos das aves. A noite mal dormida fez estragos. Tive que parar, dormir um pouco, e criar coragem para seguir. Maraí fez fogo e aguardou, depois me acordou para o café. Só então voltamos à jornada.

A primeira coisa que avistamos foi um pé de faveleiro.

“Um pé de faveleiro, olhando microscopicamente, na ponta tem uma bolsinha, com uma ligadura”, explicou meu comparsa, um homem de muitas prosopopéias.

Seguimos devagar, com o sol do Sertão rasgando. O cheiro de lenha lembrava a infância do meu amigo. Aos sete anos, fazia cabana com jurema, um tipo de madeira. Ficamos analisando o nome “jurema”, que ele acha lindo, eu nem tanto. Não consegui me lembrar o que fazia aos sete anos. Sei apenas que era 1976.

A cada pedido de informação, olhares que nos analisavam. Na fala de cada um, a distância. Pelo bonito da fala, a gente sabe as distâncias. Cada entonação, uma légua a mais ou a menos. Pensei também nos pés, que têm tanta poesia quanto as mãos, e a gente nem repara direito.

Foi nesta segunda parte da viagem que reparei como o sertão é repleto de aves, dos mais diversos estilos. Desde o Carcará, que me lembra logo a voz da Maria Bethânia ("Carcará/Pega, mata e come"), passando pelo gavião e o urubu, que nunca voa batendo asas, fica apenas flanando, pegando bigu nos ventos, ele que não é besta nem nada. Surgiram jandaias, da família dos picitassídios, algo assim, que é a mesma turma dos papagaios, periquitos, tucanos etc. Elas ficaram de leve, bem quietas, olhando o movimento. Galos de Campina, Casaca de Couro, Concris, por ai vai.

Passamos por Areial, e neste momento, o joelho do meu amigo começou a doer. Diante da minha indigência sobre a fauna e a flora do Sertão, só me restou inventar uma árvore, “Vespertina”, que se junta à minha “Arenosa”, criada na viagem do Exu ao Crato, e que está sendo catalogada pela minha ciência. Cruzamos com uma planta chamada “caroá”, que é arrancada pelo talo, a gente mastiga, e mata a sede, igualzinho aos cangaceiros de outros tempos. Depois, Maraí descascou um mandacaru e comemos. Aos 38 anos, nunca tinha comigo mandacaru, deu tudo certo, estou vivo, mata mesmo a sede.

Passamos por Caraíbas. No Bar do Zé Preto, estava passando um jogo do Campeonato Alemão. Tomamos café, olhamos o tempo, estamos cansados mas inteiros.

“Quero ver se tem uma mulher que faça café melhor que eu. Pode ser solteira, moça, casada”, arrota Zé Preto, que é bem preto mesmo.

Para evitar problemas, não comentei que o café estava doce demais e meio arenoso.

Paradas servem apenas para deixar a alma chegar e olhar para o povo. Seguimos. Um rapaz pergunta se somos hippies. Antes de responder, ele diz que queria trocar uns dentes de jacaré com a gente, mas estamos sem paciência, a negociação finda por ali mesmo. Negócio de jacaré é mais para a turma do Pantanal, e a conversa aqui é mais seca.

A pescaria no Velho Chico, tão alardeada pelo Marai, desde o começo da viagem, foi de uma inutilidade completa. Confirmo minha sina: não nasci com o dom dos peixes, da pesca, o mistério dos anzóis. Eles, os peixes, sempre comem toda a isca, e me deixam feito tonto. Marai pescou somente água. Nosso almoço foi apenas a salada com pão e café.

Dormiríamos ali, à beira do rio, não fosse a chegada do Mauro, mergulhador de uns 64 anos, que veio fazer um trabalho em um canal, que serve para irrigação. Chegou numa D-20 desarrumada, usa óculos de basculante e viveu muito, conheceu gente demais, sabe poesias decoradas e se exibe com elas. Conversamos, e foi entardecendo. O barco que nos levaria até uma cidade perto de Orocó, nunca apareceu. Mauro nos olhou sério, ofereceu carona. Em minutos, estávamos dentro do carro do novo amigo. Ele, o velho marujo de cabelos brancos, não podia ver uma mulher à beira da estrada, que ficava doidinho. Passamos pelo “Assentamento Alegre”, do Movimento dos Sem Terra, e Mauro comentou:

“Isso é da tribo dos Sem Terra”.

Entardecia, quando chegamos a Orocó. O último barco tinha acabado de sair. Um pescador bêbado disse que nos levaria à ilha, falou de duas igrejas sabe-se lá onde, e o bafo nos deixou meio tontos. Tomamos um café à beira do rio, muito mais delicioso do que o do Zé Preto. Comemos pão com queijo de manteiga e o que sobrou da salada. O rio deslizava suave, com o sol dando tchauzinho com a mão. Veio aquele cansaço bom, da missão cumprida, de chegarmos a algum lugar.

Olhei para Maraí, sabíamos que a caminhada tinha chegado ao fim. Encontramos um hotel simples, o Beira Rio. Banho geladíssimo, soneca. Acordamos com um programa do Arthur da Távola, falando de Beethoven. Era um trio de Violoncelo, Violino e Piano, o número 65, feito quando o sujeito tinha apenas 34 anos e “ainda não era gênio”. O Yo Yo Me arrebentou no violoncelo. Parecia que ele iria entrar dentro do instrumento, tal era o êxtase. Marai ao meu lado dormia como uma criança. Lá pelas tantas, ele acordou, por causa da música.

Foi despertado pela beleza. Louvado seja.

4 comentários:

Unknown disse...

Boa tarde meu jornalista, ou mais do que isso meu professor favorito, pois já o adotei como meu professor. Você tem me ensinado muitas lições importantes. Uma delas é que sempre há espaço para nossas idéias,sempre. Mas vamos ao assunto.O senhor doutor Samarone conseguiu me levar a conhecer um lugar que ainda não havia visitado: o Sertão, tudo com uma simples leitura. Consegui sentir um pouco do que o Sertão. Adorei. Estou na metade do seu livro "ESTUÀRIO" e como sempre estou adorando. Vivencio suas experiências no Poço da Panela. Simples e cheias de emoção. É isso que sinto, emoção. Fantástico. Até mais, meu amigo.

Anônimo disse...

Sama,
mais uma viagem de belas e simples recordações... fico a me lembrar das minhas andanças no sertão.
Um grande abraço,

Anônimo disse...

Muito boa, Sama. Viajamos todos com vocês nessas peregrinações...Só não sabia que hippie gostava de dente de jacaré, essa foi demais...O nome do cara do violoncelo é o Yo-Yo Ma, que sorte de vocês assistirem a ele tocando Beethoven...bom que as parabólicas do sertão servem para algo mais além de despertar na gente de lá a simpatia pelos times de futebol do sudeste (mas bem que tu devia ter pedido o CD do flamenguista pra mandar de presente lá pra Ilha do retiro...)

Anônimo disse...

Ola, gostaria de comprar o livro Clamor. Como faço pra entrar em contato com vc?


Grata,

Thaís Costa

91061189/32537992