segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Tempo, memória, encontros

Parece que o tempo tem sua própria memória. Não sei de onde me surgiu isso, quando iria escrever sobre minhas andanças pelo Sertão, e foi o suficiente para deixar o tema das caminhadas para outro dia. Acho que já caminhei demais com as palavras da estrada.

Talvez esta descoberta do tempo com sua própria memória tenha surgido no café da manhã de hoje, com minha tia Flocely, de oitenta anos, cabelos branquinhos, suas rugas e tantas coisas vividas. Ela tem resistido bravamente às dores na coluna, diálise peritonial, duas infecções em um ano. Está aqui, lúcida e doce como sempre, e cada dia mais caladinha, quieta, modestamente gente. Rosa, seu braço direito, que sabe dos remédios, rotinas, horários, que cuida com a maior das forças, que é amor, me disse que ela ultimamente vem falando muito dos parentes, da mãe, irmãos, confundindo o mundo dos vivos e dos mortos.

“É como se eles estivessem aqui”, disse tia, com lágrimas escorrendo.

Estão mesmo, de alguma forma. Tio Zelito, vovó Zeneuda, tio Paulo, seus irmãos, já estão em outro espaço. Sua mãe Elisa, que há muitos anos também morreu, está de volta, percorrendo a casa como uma nova visitante.

Um dia, procurando velhas fotografias da família, encontrei uma anotação de tia, quando morreu sua irmã Zeneuda.

“Morreu Zeneuda, nosso último traço”.

E por essas coisas que não entendo, cada vez mais estou viajando para os lados da Chapada do Araripe, de onde viemos. Minha tia é do Exu, mas morou muitos anos no Crato, de onde vim. Estou muito próximo dela e de nossas origens, ao mesmo tempo.

Na última viagem, trouxe num saquinho um pouquinho da terra de Exu, e dei de presente. Pensei que era um presente bobo, mas reparei que dias depois, a terra estava num copo de geléia, na estante, ao lado de sua imensa coleção de corujas.

Talvez agora eu esteja entendendo o sentido das minhas caminhadas. Talvez buscasse algo que não sabia, agora encontro o que não busquei. Ultimamente, minha mãe tem ligado, falando de uma saudade maior, querendo minha presença com uma urgência. Terei que ir a Fortaleza, abraça-la e saber de sua vida. Recebo cartas de tia Teresa, depois de longos anos sem vê-la, com fotos antigas da família, vejo meus retratos com sete anos, e revejo minha jornada.

Tomar o café da manhã em meio às lágrimas da saudade de uma pessoa que se ama muito é, de certa forma, entrar nesse mundo de reencontros, perdas, despedidas.

Vivo uma despedida lenta, como o aceno de quem vai em um trem, lentíssimo, acenando e sorrindo.

Lembro agora que o trem da minha infância, que fazia o percurso do Crato para Fortaleza, se chamava “Sonho Azul”. Desde esta época, tudo que é azul me remete a coisas lindas, paisagens cheias de animais e plantas, pessoas sorrindo, como nos melhores sonhos.

8 comentários:

Unknown disse...

Sama, saudades...
você sempre me emociona com suas histórias da vida real. Passei um tempo sem passear pelo blog e vejo que perdi muita coisa. Mas, vou voltar a ler pq esse blog me faz um bem danado.
beijos
Andreia Santos

Anônimo disse...

bem, acredito no mundo dos corpos sutis. acredito nas imensas e inúmeras dimensões que nos negamos a ver por medo de sermos mais. acredito que a vida, quando está próxima de se tornar mais vida, nos libera das amarras que carregamos sem perceber, abrindo olhos e ouvidos para outros dentros. acredito na música do silêncio e na cor do que não conhecemos. acredito que toda partida é também uma nova chegada. acredito em cada dia e nas memórias afetivas como as mais ternas verdades do tempo. acredito no amor como a única razão do ser.
um beijo
justine

Anônimo disse...

(suspiro)

Como canta Silvério Pessoa: "saudade no coração e o pé rachado nesse chão".


*Li tua crônica no suplemento cultural do Diário Oficial do Estado. Linda como todas...

Adriana disse...

Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar no ar no ar no ar no ar
Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar no ar no ar

Todos os abraços, Meu Poeta Querido. Todos os abraços.
Adri

Anônimo disse...

não consigo me apartar dessas estorinhas que mais parecem conversinhas de pé de ouvido. leio tudo e conto para minha teresa.
muita luz
da vó de bentinho

Anônimo disse...

saudades... ando sentido muito isso ultimamente, só não sei dizer de quê!
Linda como "quase" sempre tua crônica.
Um grande abraço,

P.S - Se puder lêr o meu blog um dia desses: www.sobreumaseoutras.blogspot.com/2007_08_01_archive.html

Mack disse...

Sama, meu querido, pouca gente sabe o quanto nos tornamos mais completos ao lado de nossos velhos. Como é bom receber esse presente!

Beijo pra tu!

Beto Efrem disse...

Deu-me água aos olhos esse teu sertão.