terça-feira, 30 de outubro de 2007

Viagem solidária

São 6h22, estou no terminal do Centro do Cabo, para viajar ao Recife. O "semi-expresso", que é mais rápido, porque vai pela BR, nem deu sinal de vida. Pego o ônibus comum mesmo, fico rezando para o sujeito que está passando a roleta não pegar a janela, na cadeira que fica logo depois do cobrador, o melhor lugar do ônibus para ler e esticar as pernonas que tenho. "Sai, sai", fico repetindo baixinho, mas o cara se aboleta no meu lugar. Ressentido, fico do lado oposto, com minha mochila e outros apetrechos das andanças.

O ônibus sai cheio, pego meu livro do momento e começo a ler. Sei que vou cochilar, porque estou cansado, dormi pouco, estou com uma mania feia de acordar no meio da noite e ficar direto, lendo e escrevendo. Então acontece o fenômeno que muita gente de classe média não conhece - o ônibus lotado, parando rigorosamente em toda parada.

Começo a cochilar, acordo, cochilo de novo, como faz minha mãe, em tudo que é viagem. Herança de família é coisa que o sujeito carrega até cochilando.

Então acontece o fato da viagem: a chegada da grande família. Uma senhora negra, certamente a mãe de duas outras senhoras negras, cada uma com três filhos, todos também negros, um deles visivelmente irritado com algo, deve ter uns 11 anos, está com uma cara péssima. Não contei direito, mas eles juntos somam nove pessoas. Uma das mulheres leva uma criancinha nos braços e fica de pé, na minha frente. Dou uma enrolada, quero ler somente mais uma página, mas estou com o coração mole, olho para ela, pergunto se quer sentar. A mulher, claro, quer sentar.

Não estamos nem na metade do caminho, faltam uns vinte minutos para as sete da manhã, o ônibus está entupido, perdi a cadeira, é a vida.

O menino de 11 anos começa a passar mal, está meio pálido, a avó manda ele sentar. Todos fastam, ele vai para um canto, está irritado, não quer sentar, a avó é linha dura, fica repetindo "senta, menino, senta ai", me olha assim e diz:

"Ele está com dor de cabeça direto".

São todos bonitos, fortes, simpáticos, só o menino está assim, mas com dor de cabeça o cara não fica nada legal.

Uma moça do lado dele puxa a mão.

"Tira a mão de fora da janela, que é perigoso".

O menino tira, então senta, a viagem se acalma. Olho para as cadeiras, tem passageiro dormindo com o filho no colo, gente escutando fone de ouvido, muitos ainda cochilam, há um rapaz ao meu lado com uma pastinha transparente, cheia de documentos, uma Carteira de Trabalho, creio que ele descolou um trabalho novo, está com uma cara boa. Ao lado do cobrador, de pé, um rapaz cochila. Sim, uma cochilada em pé mesmo, que é como a vida permite, certas vezes.

Olho para o lado. A menina que ajudou o negrinho está com a cabeça baixa, rezando um terço, com a ajuda de um terço miúdo, que a gente coloca no dedo, uma vez ganhei um desses de uma aluna.

Quase não tem conversa, é um ônibus silencioso e cansado, feito de trabalhadores brasileiros, que moram a 45 quilômetros do Recife. Surge mais uma vaga ao meu lado, a outra mulher negra, possivelmente a mãe do menino que passa mal, senta, com uma menina no colo. Vamos caminhando para sete horas, falta a Imbiribeira inteira, mais meia hora, pelos meus cálculos.

Olho para o lado. Dezenas de carros ciscam impacientes, rumo a algum lugar, desta cidade interminável, que é o Recife. Não consigo entender o motivo de haver tanta impaciência entre as pessoas que têm um carro só para elas, com ar-condicionado e som ambiente. A essa altura, esqueci da importância da minha leitura, o livro fica para depois. Em seu lugar, ficou a imagem da avó, dura e carinhosa, mandando o menino sentar, no chão do ônibus, o menino resistindo, a voz amorosa de uma passageira que não sei o nome, que usava um broche falando algo de Deus ou Jesus, não lembro, sei que era um dos dois.

Desço no Cais de Santa Rita, são 7h25, deu exatamente uma hora de viagem, pareceu mais. Vou caminhando para a escola, olhando a beleza das pontes, uns barquinhos que chegam com peixes magros. Lá na frente, encontro Pedro, meu aluno, que é sempre o primeiro a chegar. Me conta do último fim de semana em Tejipió, o bairro onde mora. Tiroteio, briga de gangues, violência policial, essa epidemia de violência que tomou conta de nossa cidade. É de doer.

Prefiro ficar com a imagem daquela família, numerosa e muito agarrada dentro de si, como se todos protegessem todos. Uma família silenciosa que foi protegida com poucos gestos, nessa silenciosa viagem matinal de todos os dias.

30 comentários:

Anônimo disse...

Gosto de como voce descreve essas cenas de cotidiano, menino!

Anônimo disse...

Ô sama,

muito linda essa crônica, confesso que também não entendo a pressa de quem tem carro.

Parabéns!!!

Simone Pires

Anônimo disse...

Meu velho amigo de lutas!
Você sempre conseguiu, com maestria, captar as imagens da vida e transformá-las em palavras. Ao ler seu texto fico saldoso. Relembro as cenas e os lugares e parece que nunca saí de Recife, nem da CEU. Muita água passou embaixo da ponte desde então, mas que sabe qualquer dia possamos escrever um livro com o título: "1991, O ANO QUE NÃO TERMINOU".
Um grande abraço.
Moral

Anônimo disse...

Bem, não sei, mas parece que não é porque o sujeito tem um carro que não precisa chegar em algum lugar. Daí a pressa.

Pressa é pressa, a pessoa tendo ou não carro.

Anônimo disse...

Alô Sama, adoro ler seus textos...
Sâo bastante interessantes.
Um abração...
Rickson C.G.

Anônimo disse...

Oi Sama...
Adimiro o seu jeito de olhar as coisas e observar com carinho os acontecimentos do nossos dia-a-dia.
Felipe C.G.

Anônimo disse...

Sama, foi ótimo poder ler mais essa crônica, escrita por uma pessoa tão legal e de certa forma comum à nossa realidade.
Espero poder ter sempre o prazer de continuar a ler coisas tão maravilhosas.

bjs com carinho.

ass: Anna Cecília

Anônimo disse...

Oi SAma é com muito prazer que estou escrevendo para você...

Sama continue assim com esse entusiasmo enorme de fazer crônicas legais !!!

Beijos & Abraços !


Ass: Danila Araújo.

Anônimo disse...

Suas cronicas, são verdadeiras reflexões sobre o nosso diua-a-dia.

Muita paz e muita luz

Peste, seu monitor das palavras.

Anônimo disse...

oi prof!
Adorei o texto, pude te perceber bem pertinho de mim, fazendo parte do meu mundo! "antes eu te conhecia de ouvir falar, hoje eu te conheço de fato e verdade!
vai ser mais dificil sem vc mas eu aguento tá?
1000 beijinhos e boa viagem!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Oi Sama...
Adimiro os seus comentários do dia-a-dia. Essas crônicas que você faz em suas caminhadas diarias é muito legal.É impressionante o seu jeito de olhar as coisas e de observar com atenção e carinho as tragetórias das pessoas.
Adorei todas as suas aulas e foi ótimo ter passado esses um ano e oito meses ao seu lado. Irei sentir muita falta de suas aulas e companhia como amigo aqui na "Escola Oi Kabum". Quero que tenha a mesma dedicação que teve conosco com a próxima turma támbem.
Não sei os outros mas, eu nunca irei te abandonar.

Valeu por tudo que fez por nós.

Todos nós te amamos muito, de coração.

Um grande abraço e um milhão de beijos de sua aluna: Andréa Fernandes e filha Anna Carolina.

Valeu mesmo por tudo. Tchauuuuuuuuuuu!!!

Anônimo disse...

É, Sama como sempre, lemos uma crônica sua hoje, mais uma que nos atrai, e que a gente se identifica muito, pós geralmente passamos pela mesma situação em fim garanto que aprendi bastante com você, e é um orgulho ter um professor como você um grande abraço e parabens. (Marlon cg)

Anônimo disse...

Concordo Plenamente! A primeira cadeira, junto do cobrador, é a melhor pra ler. Tem um ferrinho que dá pra apoiar os pés, a cadeira tem espaço pra você arriar um pouquinho e encostar a cabeça. Faço exatamente o mesmo.
E também não entendo a pressa dos carros!!!

Anônimo disse...

Oi Sama,sua crõnica esta muiiitoo boa.Sua vivencia do dia a dia,impactando sua vida,emocionando seu cotidiano.Saiba que por onde passar essas pessoas estaram do seu lado.Te olhando, porque os anônimos da vida estão no seu olhar.

Andressa silva
Fotografia

Anônimo disse...

olá Sama!li sua crônica A viajem solidaria,nossa que saga em?também, vivo algumas aventuras no dia-dia no ônibus uma delas já escrevi um texto e te mandei.
Sama saibas que és muito especial para mim.Denison Lima.
Fotografia.

Anônimo disse...

Oi Sama, gostei muito de sua crônica, pois quem nunca passou por isso no ônibus? Eu já vivi experiências que nem imagina, o que já passei para ler um livro dentro do ônibus não foi brincadeira, mas sempre vale a pena quando o livro é bom. Você foi um dos professores mais legais que já tive na vida. Nunca vou esquecer de você, continue sempre assim que já me contagiou. Beijos e Abraços!
Robervânia Santos
Fotografia

Anônimo disse...

Sama que viajem!
Sei que voçê é muito forte, e espertinho, sempre tirando um proveitinho das suas viajens.
Adorei a crônica.
estamos todos com muitas sauadades, esperamos te ver em nossa formatura, por favor não falte viuuu!!!!
espero que esteja tudo bem com voçê, e que esteja aproveitando sua viajem de alguma forma.

beijos!!!

Cleidjane lima
fotografa

Anônimo disse...

Palavra e Dicionário.

Palavra sempre passava
descalça na rua de Dicionário.

Palavra era safada e também
delicada
a cada passo.

Certo dia Diocionário
se viu cansado
e muito usado
por palavra.

Certo dia
Dicionário
fez um convite a Palavra
ela aceitou
foi ao cinema com
o Dicionário.

Ouve um certo clima
entre Palavra e Dicionário.

E seguirão para o motel
transar crônicas
mentir em versos
e antes da cerveja a acabar
Palavra se excitou
quando Dicionário falou
as mais doçes e dificíeis palavras de amor.

Após nove mêses
na maternidade do IMIP
no bairro dos Colhos,
nasceu.
Poesia
com muita saude.

Acho que vai ser
uma linda menina.

Aldemir Suco,

proxímo livro "Cinco pacotinhos invenenados"

Anônimo disse...

Oi Sama!Tou passando aqui para ti deixa um recadinho,adorei a sua cronica "Viagem solidária".
Sama adorei ter você como professor.......
tcahuuuuuu Fica com Deus!!!!!!

Branquinha
Fotografia

Anônimo disse...

Oi Samarone , quer dizer querido professor epidêmico. Quero dizer-te que é muito prazeroso ter um sábio como educador. Te admiro muitissímo e sou completamente alucinada pelos seus escritos que são maravilhosos. Meu coração deseja a ti muita paz e luz na jornada da vida, que cada dia possas escrever e lêr belissimas histórias ou estórias. De sua educanda epidêmica: Ísis Camila - Fotografia.

Anônimo disse...

Sama, gostei muito da crônica e da simplicidade que vc fala sobre as coisas cotidianas da vida. Olha... Peste leu o relatório dele sobre a Oficina da Palavra, gostamos muito, mas queriamos que vc estive pelo menos deixado o seu parecerkkkkkkkk. Pois, eu coloquei muito sentimento no meu relatório, e gostaria de uma resposta tua, nãi sei por quê.
Abraço se cuida. Da sua aluna reclamonakkkkk Danúbia.

Anônimo disse...

SAMA ,,,, CADÊ SEU RELATÓRIO,,, DA OFICINA DA PALAVRA... PESTE,,, ABALOU... VÊ SE MANDA POR EMAIL O SEU RELATÓRIO... : cesarkabum@hotmail.com,,,

SIM TE VI NO COMERCIAL DOS MORTOS... JÁ É ESCRITOR E JORNALISTA AGORA NVAI SER ATOR,,, QUE XIQUE SAMA,,,
ABRAÇOS CÉSAR SANTOS
VÍDEO
OI KABUM!ESCOLA DE ARTE E TECNOLOGIA

Anônimo disse...

Sama, simplismente adorei pelo fato de algo parecido ter acontecido comigo.
Por exemplo, aquele dia que você estar super cansada, que entra no ônibus e não tem lugar na janela e além disso para fechar com chave de ouro entra um velhinho e lá vai eu me levantar e encarar 50 minutos até chegar na minha parada.
Mas é assim mesmo. Bjusssssss
Clindinalva ( neguinha )

Anônimo disse...

OI SAMA GOSTEI MUITO DA SUA CRÔNICA E SIM EU TE VI NUM COMERCIAL AI FIQUEI MUITO FELIZ EM TE VÊ VOLTE LOGO
DANCLEBSON

Anônimo disse...

oi Sama eu adorei o texto espero que vc continui assim tendo bastânte inspiração para continuar escrevendo esses textos maravinhosos que só vc sabe escrever beijos de sua pequena aluna Mitalichel (Mita.)

Anônimo disse...

Oi Sama, você sabe que não sou muito de gostar de crônicas porém essa me tocou, acho que é porque é uma realidade na minha vida, esse vai e vem nas lotações, esse aperto e o crescimento pessoal que adquirimos ao ver os olhares que parecem até mostrar a alma de algumas pessoas, dessa sim eu gostei muito, muito mesmo.
Grande Beijos da que é orgulhosamente sua aluna Amanda Guedes.

Anônimo disse...

Oi Sama! meu professor mas querido, Sama vou sentir muito sua falta e espero q vc não esqueça de mim. Sama vc fica lindo de cachinhos quando vai fazer de novo?
Tchau Sama até breve beijos.
(Micaella)

Anônimo disse...

Adorei Sama. Acho encrível a maneira com que vc detalha cada fato que acorre ao seu redor, e a junçâo que vc fez com a história que seu aluno disse sobre os últimos fatos de sua comunidade, deu um ar de drama na crônica. Adorei. Bjosss.

Sandrinha

Anônimo disse...

pôxa Sama ficou muito massa o texto.fiquei triste hoje ultima aula e vc não estava, ficamos meio burocuxos,claro que não estou querendo dizer que a aula foi ruin mas sentimos sua falta. Beijos... Priscila(vídeo)

Anônimo disse...

Ai Sama gostei muito dessa crônica, da até pra imaginar um filme de todos os detalhes de dentro do ônibus, você é um exemplo vivo que tenho tentado imitar, não consigo esquecer o desafio e compromisso que você me apresentou e eu aceitei. valeu por tudo
que fez por mim e por todos os alunos de todas escolas que você passou. sei que tem muita importância o xseu trabalho para o Recife, Pernambuco e para o Mundo valeu!