quinta-feira, 31 de maio de 2007

O umbigo


Com ilustração de João Lin

Estávamos voltando de Brasília Teimosa, após uma deliciosa aula de campo com meus alunos, quando o carro que ela dirigia começou a atravessar aquela ponte que não sei o nome, aquela que faz a ligação do Pina com o Recife, como se tudo não fosse Recife. Então ela, que estava dirigindo, disse a seguinte frase:

“Foi aqui que joguei o umbigo das minhas crianças”.

Fiquei mudo, puxei meu caderninho e anotei a frase. Certas coisas que as pessoas me dizem, assim, no meio do dia, são como uma oração, uma bênção, um clarão, daí meu amor pelas palavras.

Então fui puxando assunto, até que ela me contou. É descendente de italianos, nasceu em Nova Bassano, perto da serra gaúcha, e cresceu em Passo Fundo, onde morou até os 21 anos. Conheceu um Pernambucano e veio pra cá.

Isso vem de família, contou. A mãe enterrou seu umbigo debaixo de uma árvore, “numa sanga”. Olhei no Aurélio, sanga quer dizer “pequeno regato, que seca facilmente; escavação profunda no terreno, produzida pelas chuvas ou por correntes de água subterrâneas”. Minha amiga disse que sanga é “uma vertente de água límpida”, e achei muito mais bonito a definição da minha amiga, que a do Aurélio, que Deus o tenha. Fica a versão da minha amiga, enquanto dirigia.

“Dizem que onde você enterra seu umbigo, você não sai”, completou.

Pensei que ela fosse dizer aquelas loas sobre o amor à terra natal, aquele discurso de raízes, mas ela foi para o outro lado.

“Pois quero que meus filhos sejam do mundo”.

Contou que o pai, imigrante italiano, chegou à Bahia, viu que as coisas não estavam boas, então se mandou para o Sul, onde fez a vida, casou, teve filhos. A família cresceu sem este sentimento de pertencer a um lugar específico.

“A gente tem isso, não temos fronteiras”.

Como não sou besta nem nada, fui fazendo perguntinhas e tomando notas.

“Depois que você sai de um lugar, você não é mais de lugar nenhum, é do mundo”, disse.

Lembrei que nasci no Crato, depois morei em Brejo Santo, Imperatriz, Pentecostes, Fortaleza, Recife, Cabo de Santo Agostinho, São Paulo, Recife de novo, Cabo de novo, onde estou agora, e percebi que é isso mesmo. Eu não sou mais de lugar nenhum do mundo, sou do mundo. Meu umbigo ficou em alguma sanga da vida, creio.

Minha amiga inventou uma história linda para os filhos. Que jogou os umbigos no rio e os peixinhos comeram, uma coisa bem bacana. Sempre que passam pela ponte, as crianças querem saber mais detalhes, e ela vai acrescentando, ornamentando, embelezando mais e mais, e eu dou graças a Deus, porque o mundo está precisando mesmo é de beleza, essa beleza simples de inventar uma história para os filhos.

Eu gostaria muito de estar passando por uma ponte do Recife, qualquer dia desses, e encontrar uma mulher com os olhos marejados, com o vento balançando seu vestido e cabelos. Uma mulher que tivesse acabado de jogar nas águas do Capibaribe o umbigo de seu filho.

Eu não perguntaria nada, apenas reduziria o passo para ver a cena. Ela sorriria e comentaria, por uma necessidade humana de compartilhar com um desconhecido emoções profundas:

“É o umbigo do meu filho”.

Eu sorriria e ficaria feliz. Só isso.


Para Ana Luiza Funghetti, claro.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Cenas da vida

São 7h03, o ônibus Centro do Cabo está lotado, rumo ao Recife. Acabamos de atravessar Prazeres, o que significa pouco mais da metade do caminho, quando o motorista estaciona o veículo e desce, com um singelo rolo de papel higiênico debaixo do braço. Não corre rumo ao posto, vai apressado. Deve ter seus motivos.

Fica um silêncio estranho no ônibus, feito de rumores. Lá pelas tantas, um sujeito não resiste.

"Cobrador, o motorista foi no banheiro, é?"

O cobrador, um negro de cabeça raspada, riu, e nisso, o calor começou a aumentar.

Poucos minutos, um comentário vem lá do fundo do coletivo:

"Ele caiu dentro da privada!"

Risos.

Um passageiro começa a se impacientar.

"Mas justo no dia que estou atrasado..."

A mulher atrás de mim retruca, na surdina.

"Isso é falta de compreensão. Ele está passando mal".

Contei no relógio. Foram oito minutos cravados. Daqui a pouco, vem o motorista, andando mais rápido.

"O cara está todo suado!", disse alguém.

"Vamo embora, cagão", solta a turma do fundão. Impressionante como na escola, no ônibus, em qualquer lugar, a turma do fundo gosta de tirar onda.

"Ele já veio trabalhar com papel higiênico. Isso é que é um cara prevenido".

O motorista entra, acelera, todos respiram aliviados.

"É muita incompreensão", reclama a mulher.

O veículo começa a ganhar velocidade. O camarada que estava ao meu lado, até o momento muito quieto, faz apenas um comentário:

"Isso é cana. Pode apostar que foi uma cana que ele tomou ontem".

Já quase no Recife, entrou uma borboleta no ônibus e ficou tentando sair, sozinha, batendo nos vidros. Depois a perdi de vista. Era uma borboleta amarela, tamanho médio, bonita como o quê.

Às vezes a gente fica assim, querendo sair de um canto, e fica batendo num vidro que não existe.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Como um cachorro molhado

Desde 1999 entrei para o time dos cabeludos, e dele não pretendo sair tão cedo. Eu sempre usava o cabelo curtinho, bastava começar a crescer, e eu "zapt!", mandava passar aquela maquininha no um, a cabeça ficava zerinho, eu aproveitava e aparava a barba.

Bastou começar a viajar pela América Latina, que fui pegando o gosto. Descobri que quanto mais crescia, mais o cabelo ficava enrolado, e aquilo me agradou. De repente, entendi que tinha uma personalidade de cabeludo, um caráter de cabeludo, um jeito de cabeludo. Mais explicações sobre isso, não sei dar.

Há coisa de quinze dias, a moça que trabalha aqui com a tia Flocely, a Rosa, começou a repetir as coisas da minha mãe. Que meu cabelo estava muito seco, que precisava de um "cremezinho", aquelas coisas. Eu por ali, ressabiado. Desde 2.000, somente Eliete, do Alto José do Pinho, mete as mãos nesse meu fuá. Ela nunca erra. Quando é para cortar, ela já sabe o tamanho certo. Saio de lá, tomo uma cerveja ou duas no Caldinho do Biu, e volto para casa feliz.

Pois bem, Rosa me pegou desarmado do espírito, veio com uma amiga, a amiga trouxe uns cremes. Era para hidratar meus cabelos. Eu estava cansado, era um sábado, eu não queria discutir nada, sábado é um dia que geralmente não sou contra nada, não quero muita munganga, entrei no clima. Foi creme, massagem, creme, massagem, teve uma hora que a cabeça esquentou, o negócio fedia pra valer, e depois de muita muvuca, fui liberado.

Olhei no espelho. Eu estava um misto de Clodovil com Raul Seixas. Ela tinha feito um alisamento no meu cabelo. Aqueles cachos de outrora viraram fios lisinhos, como a natureza não me deu.

No dia seguinte, fui ao Alto José do Pinho, pedir salvação a Eliete. Quando me viu, ela disse:

"Professor, o que foi isso que fizeram no seu cabelo.."

Como era o dia das Mães, ela não tinha tempo de me recuperar psicologicamente. Toda sua família estava lá, para um almoço. Depois, entrei no vendaval das aulas, trabalhos, frilas, não deu para voltar.

Na terça-feira, cheguei para dar aulas. Os risinhos dos alunos foram apenas o primeiro sinal de que o estrago fora grande.

Na metade da segunda aula, tive que parar e explicar o acontecimento. Falei tudo, do creme, de como não sabia nada do alisamento etc. Uma aluna complementou:

"É, professor, por isso o senhor está com esse cabelo de cachorro molhado".

Nós rimos muito, e a aula seguiu. Meus colegas de ensino foram até legais. Bete disse que eu estava "fashion". Hum hum.

Até sábado, tentarei ir a Eliete, consertar o estrago. Quem me encontrar por ai com um cabelo meio Clodovil, meio Raul Seixas, favor não comentar. Continuo sendo eu mesmo.

Eu, mas parecendo um cachorro molhado.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A descoberta dos mundos: os livros entrando na vida dos jovens

Texto publicado originalmente no "Suplemento Cultural", sob a batuta do Raimundo Carrero.
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O Pedro disse logo nas primeiras aulas que não era muito chegado a livro. Achava aquele negócio de ficar um tempo quieto, com um livro nas mãos, quase uma perda de tempo. “Quando começava a ler, batia uma preguiça, dava sono, eu não seguia”, diz. O Herivelton, que é da Igreja Batista, lia a Bíblia e quase nada mais. “Tentei algumas vezes pegar outro livro e me submeter, mas não conseguia”. Com Aldemir, a coisa era mais complicada. “Eu tinha um descaso geral, passava batido. Lia por ler. Não tinha essa relação que vivo hoje com os livros, feito marido e mulher”.

Pedro Henrique, 18 anos, é morador do bairro de Tejipió. Atualmente está terminando de ler o volume II de “Mitologia Grega”, de Junito de Souza Brandão, um calhamaço de mais de 300 páginas. O volume I ele devorou em três semanas. Já leu também “Olga”, de Fernando Morais, “As aventuras de Robinson Crusoé” e está terminando “O mais longo dos dias”, de Cornelius Ryan. Recentemente descobriu uma biblioteca do avô, meio abandonada, e começou a resgatar livros para sua casa. Está montando sua própria biblioteca.

Herivelton dos Santos Oliveira, vinte anos, mora nos Coelhos, está lando “Contos Brasileiros, volume III”, daquela famosa coleção “Para Gostar de Ler”. Nos últimos meses, aprendeu a dividir a Bíblia com outros livros. Já leu “Futebol ao Sol e à Sombra”, do uruguaio Eduardo Galeano, e se atreveu a mergulhar no mundo do Graciliano Ramos, com “Vidas Secas”. “Quando chegava na sala de aula, os colegas falavam entusiasmados do que estavam lendo. Como eu não lia, ficava todo por fora”, lembra. “Me influenciou ver ao meu redor todo mundo lendo”, lembra.

Aldemir Félix, que gosta de ser chamado de Suco, o que vive uma relação de “marido e mulher com os livros, tem 19 anos e mora em Brasília Teimosa. Depois de ler Pablo Neruda, descobriu que as coisas que tinha na cabeça, e não conseguia colocar para fora, se chamava poesia. “Comecei a escrever, a vomitar palavras. Tive crise de verme de palavras, diarréia de palavras. Está virando uma doença psicológica”, diz, com o exagero dos poetas. Antes de dormir, escreve no celular, e no dia seguinte, passa para o papel. Atualmente, organiza os poemas para um livro, intitulado “Poemas sujos para corações limpos”.

São três histórias que chamam a atenção, entre os 80 jovens que freqüentam a Escola Kabum!, de Arte e Tecnologia, um projeto da Oi Futuro, realizado pela ONG Auçuba, desde maio do ano passado. Três jovens que não liam, ou liam muito pouco (geralmente por obrigação da escola), não davam importância aos livros, e agora estão mergulhados neste universo. Esse caminho da Literatura que, como todos sabem, é uma paixão sem volta.

Escrevo este texto, portanto, para compartilhar uma paixão. Eu, que leio e escrevo há muitos anos, estou agora, com meus quase 40 anos, encarregado de transmitir não propriamente um conhecimento, mas uma paixão. Sou o educador da Oficina da Palavra, uma das disciplinas oferecidas pela Kabum! Não venho trazer segredos milagrosos ou propostas pedagógicas, apenas compartilhar. Com alguma sorte, refletir sobre os projetos sociais que são desenvolvidos aos montes, em nosso País, e conseguem deixar de fora os livros como fonte essencial para a construção do caráter, de inspiração para a alma, em tempos cada vez mais ásperos.

“Do que é que tu gosta?” – Não adianta chegar para jovens com a lista dos livros do Vestibular. “Iracema”, “A moreninha”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Memórias de um Sargento de Milícias”, para você que lê o Suplemento Cultural, pode ser bacana e animador, mas para quem ainda não entrou na floresta dos livros, é um saco, algo que dá sono, preguiça, dor de cabeça. A melhor coisa a fazer, para abrir caminhos, é descobrir o que os jovens gostam.

Descobri que Pedro adorava coisas relacionadas à Segunda Guerra. Fui à minha biblioteca, encontrei “O relatório de Buncheald”, uma descrição detalhada de um campo de concentração, com aquelas fotos tenebrosas. O livro é um tijolo. Pedro, o mesmo que achava leitura perda de tempo, ficou com os olhos brilhando. Levou para casa e simplesmente devorou o livro. “Na página 10, 15 de qualquer livro, eu deixava pra lá”, conta. Hoje, quando tenho tempo, fico lendo”. Depois de um silêncio, ele explica o que sente. “Parece que estou dentro da história”. Depois do “Relatório”, ele se agarrou com “Olga”, e sem nenhuma preguiça, leu inteiro.

Herivelton, que gosta de futebol, se amarrou nas pequenas histórias de Eduardo Galeano. Quando algum jornalista ou escritor ía à escola, conversar com os jovens, prestava sempre muita atenção. “Essas visitas do pessoal da área ajudaram muito. Eles contando a paixão pelos livros, dá vontade de ler. Isso me ajudou muito a escrever e até compor”, diz. Ele toca violão e faz suas músicas. “Hoje, procuro tempo para me dedicar a isso”.

O caso de Suco chega a ser intrigante. Com ar e postura rebelde, no início ficava arredio. Quando pegou Pablo Neruda, levou um choque poético. Como tem um jeito muito irreverente e contestador, catei da minha biblioteca “A imprensa livre de Fausto Xolff”, e “O homem e seu algoz”, livro de contos. Suco literalmente teve um surto literário.

Num desses domingos, estava lendo Fausto xxx, quando sua namorada o interrompeu.

“Estás me traindo com os livros”, disse ela.

Suco estava há quatro horas ininterruptas lendo, extasiado. Deu um belo carão na namorada, que o estava atrapalhando, e só terminou depois de seis horas de leitura. “Fui vencido pela fome”, diz. Hoje, a namorada já não estranha sua quietude.

Projetos literários – Os não-leitores começam a colocar no papel suas idéias. Outro dia, Suco assistiu a um documentário sobre “Poetas Marginais do Recife”, do jornalista Pedro Saldanha, e ficou atacado de inspiração. Na parada de ônibus, quis anotar uma idéia, mas o ônibus chegou.

“Me deu uma idéia, eu quis escrever, mas estava sem caneta. Fiquei todo agoniado. Uma mulher ao lado me perguntou: ‘Filho, você está se sentindo bem?’. Eu disse para ela que estava com diarréia”, conta. Chegou à Kabum! com dor de cabeça. “É que a idéia ficou espremida”, diz.

Lívia Damares é um dos poucos casos de jovens que chegaram à escola com uma carga boa de leitura. Tem 18 anos, mora na Bomba do Hemetério, e já tentou Vestibular para Letras duas vezes, sem sucesso. Quando teve sua primeira paixão adolescente, escrevia cartas para o amado, buscava nos dicionários palavras bonitas, para encantar. “Escrevia muito para ele, mas nunca mandei”. Nos momentos tristes, Lívia também sempre escrevia. Na escola, uma professora de Literatura “fazia um auê” em torno dos livros, e ela começou a freqüentar a biblioteca.

Depois, começou a freqüentar o Sesc Casa Amarela, que tem uma boa biblioteca, e os livros foram para sua casa, mesmo que apenas por uns dias. Lembra com paixão o primeiro livro que a emocionou: “A marca de uma lágrima”. Estava com 11 anos e chorou muito.

Hoje, Lívia sente uma diferença. Descobriu a importância da poesia. Antes, ela acha que “escrevia bobagens da minha cabeça”. Consegue agora fazer uma ponte do que lê com os contos, crônicas, poemas que tem em mente. Fala coisas já cheias de estilos, como “está sendo uma mudança muito grande na minha visão literária”. A mudança maior, no entanto, está relacionada com o ato de escrever. “Antes, eu só escrevia quando estava triste. Agora, sempre tenho um papel e uma caneta à mão”.

Suco diz que seu mergulho no mundo da poesia, não tem nada de “modinha” ou paixão efêmera. “Quando eu escrevo, sinto liberdade. O homem só é livre quando escreve e passa a dizer o que sente. Não tem mais patrão, chefe, nada. Tem liberdade e independência.

Enquanto enche cadernos de poesias, coisas que estavam acumuladas em sua cabeça há algum tempo, Suco filosofa. “Ninguém pode mandar em sua leitura. É a independência de si próprio. A pessoa ganha asas para voar. Quando escrevo, quebro a lei da gravidade”, diz.

Nada melhor que um poeta recém-nascido.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

As palavras (final)

Só outro dia, fazendo minhas pesquisas sobre a história de minha família, descobri que o casamento dos meus pais teve um lance genial: uma carta, enviada pelo meu pai, que estava no Crato, para minha mãe, que estava passando uma temporada no Cabo. Então vejo que as palavras mudam destinos, selam, marcam, da mesma forma que rompem, laceram, machucam, maltratam.

A história ainda é cercada pela neblina do passado, e quem me contou outro dia foi minha tia Flocely, agora com 80 anos. O fato é que minha avó (mãe da minha mãe), não estava querendo aquele namoro com um tal de “José Vicente”, e resolveu mandar minha mãe para uns dias de exílio amoroso no Cabo. A esperança era a de que o coração sossegasse, mas todo mundo sabe o que acontece quando a pessoa está no exílio: ela só pensa em voltar.

Não sei o conteúdo da carta, sequer se ela existe. Sei que o portador, um amigo do meu pai, conseguiu encontrar minha mãe em uma sapataria aqui do Cabo, e deve ter sido engraçado, as palavras do meu pai terem chegado enquanto minha mãe comprava, por exemplo, um par de tamancos. O resultado foi um casamento poucos meses depois, cinco filhos, quase trinta anos casados. Dei sorte nessa história toda, porque se a carta não chega e meus pais não casam, não procriam, eu nem sei o que estaria fazendo por ai, em algum lugar ermo.

Fico agora me perguntando: o que terá dito meu pai nessa carta? Quais as palavras que ele usou, para fazer com que minha mãe decidisse retornar de imediato?

É preciso tricotar com as sombras do passado, para fazer o encontro com as memórias. Na próxima viagem a Fortaleza, tentarei encontrar estes fragmentos. Será que terei a sorte de encontrar a carta?

Mas há também palavras perdidas, que nunca voltam. Minha avó perdeu, em uma de suas viagens, todas as cartas e fotografias que tinha do seu marido. Ficou apenas uma foto, muito pequena, onde meu avô aparece de paletó branco, olhando atentamente para a lente, um olhar triste e melancólico, quase cabisbaixo. É tudo o que tenho dele: este olhar e o silêncio. Outro dia, fiquei sabendo que ele era altão e gostava de andar pelo mundo, então me identifiquei completamente. Será que hoje falo algo que meu avô gostaria de dizer?

Enquanto escrevo estes textos sobre as palavras, vivi um momento contraditório: após dar aulas, esta semana, fui resolver coisas, e descobri que meu diário não estava na bolsa. Me deu uma aflição física e espiritual. E se o diário ficou em cima da mesa, local acessível para todos os alunos? E se alguém o pegou? Perguntei à Andréia, que trabalhana escola, se ela tinha vistou um caderno assim, assado. Vendo-me nervoso, ela perguntou:

"Mas o que tem dentro desse caderno?"

"Minha vida", respondi. Às vezes, é preciso ser dramático.

Doeu-me imaginar alguém lendo minhas coisinhas, olhando as fotos dos antepassados, que costumo levar em cada caderno da vida.

Somente quando cheguei em casa e o encontrei diário em cima da mesa, inteirinho e absoluto, respirei aliviado.

Algumas palavras pertencem ao mundo, outras compartilhamos com os mais próximos, mas há palavras que são apenas nossas. São umas palavras abençoadas, quase murmúrios.

Porque o murmúrio só escuta quem está muito próximo. É quase um segredo que é só da gente.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

As palavras (1)


É um texto que venho escrevendo, hoje resolvi compartilhar, com algumas modificações. A imagem é do João Lin.
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Há muito tempo, talvez minha eternidade inteira, as palavras me seduzem e definem meus caminhos. Trato-as como se vivas fossem. Percebo quando estão ansiosas, depressivas tristes. Sei, por algum pacto com elas, quando resplandecem, quando estão a desabrochar. Sinto a claridade de cada uma. Quando estou cego de mim, não as vejo, vou como um analfabeto, à procura de um nome para seu destino.

Como as coisas que estão vivas, as palavras podem mudar de destino a cada instante, a cada diálogo. Uma palavra abençoada pode tornar-se amaldiçoada em uma fração de segundos. E o mais cruel dos tiranos pode dizer, enquanto contempla cadáveres, a palavra que também estava destinada à morte. Há sim, palavras que escapam de forcas, cadeiras elétricas, fuzilamentos. Eu mesmo, em silêncio, salvei algumas palavras, fui salvo por algumas sílabas. Quantas bocas me retiraram dos escombros! A tinta das canetas velhas, em papéis amarrotados, me aliviaram de sentenças.

Talvez seja por isso o meu amor aos dicionários, de todas as línguas, que guardam, naquele momento da língua, as palavras possíveis. Todo dicionário é um réquiem. Nele, as palavras descansam, repousam. Mas não é um réquiem de morte. Réquiem de beleza, de vida. Réquiem-ressurreição.

Me custaria muito viver, não fossem as palavras que aprendi e carrego, não sem uma certa humildade. É que vejo o mundo não pelos olhos, mas pelas palavras.

O poeta Juan Gelman me ensinou a amar o amor com suas palavras, que parecem tocar todos os corpos e almas do mundo. Em um de seus poemas sobre a chuva, ele diz que lhe custa escrever a palavra amor, “porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/e somente a alma sabe onde os dois se encontram”.

É isso. O amor é uma coisa, a palavra amor é outra coisa. Mas não haveria o encontro na alma se a palavra não tivesse realizado aquilo que o coração teceu, tantas vezes sozinho e em silêncio.

Há, segundo Gelman, palavras que naufragam, palavras “que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que se amou/ e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá, como o silêncio que há entre duas rosas”.

Sim, palavras prematuras, que nascem e morrendo.

Talvez seja por isso que a palavra “prematuro” seja sempre a do meu irmão, Lúcio Flávio, que morreu com cinco dias de vida, talvez menos, e nós, os três irmãos, fomos impedidos de vê-lo, em uma pequena capela de um hospital, quando a infância atravessava minha vida. O que ficou, de sua curta passagem pela terra? Terá ele sorrido ao ver o rosto de sua mãe, pela primeira vez? Sequer escutei seu grito inicial, que parece inaugurar nosso primitivo rompimento com o silêncio uterino.

E descubro que Lúcio Flávio não teve tempo de aprender a falar. Quais as palavras que meu irmão teria trazido ao mundo? Quais as palavras ele ressuscitaria? Porque sinto que cada ser humano vem ao mundo não apenas para viver, amar, construir coisas, belezas, ter uma história, mas também para trazer palavras, emudecer outras, ignorar muitas. Alguns poucos conseguem o milagre de ressuscitar palavras. Outros tratam de não deixá-las morrer.

Meu irmão, que não disse uma palavra em sua passagem por este mundo, me trouxe a palavra “prematuro”. Desde então, tudo o que é prematuro me leva a ele, que jamais vi, mas tenho e sei.

E me lembro que o nome dele, as duas palavras “Lúcio” e “Flávio”, causaram um certo rumor familiar, que jamais consegui decifrar inteiramente. Era como uma nuvem escura, em torno de um nome de uma criança que não tinha sequer nascido. Lúcio Flávio era o nome de um famoso criminoso nos anos 70. Sua história resultou em um livro que tinha um título épico: “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”. Certamente, se o chamassem de Lúcio não haveria problema. Flávio, somente o Flávio, seria aceito a contento. Mas havia um problema – as duas palavras estavam juntas.

Então me veio este sentimento, ao longo da vida, de que certas palavras, juntas, mudam completamente de sentido. Se tornam outra palavra, que não é também uma terceira palavra.

Teriam nascido palavras destinadas à mais completa solidão? Palavras que nunca conseguiriam sequer se aproximar das outras, sem causar feridas?

Não sei se o meu irmãozinho viveu sua agonia, se passou os poucos dias de vida dentro de uma incubadora, se sentiu frio, se teve fome. Não sei sequer se ele pôde tocar o peito de sua mãe, que também é a minha, para os primeiros goles do leite ancestral da vida, para o acolhimento maternal dos primeiros minutos no mundo. Não sei a cor dos seus olhos, se tinha muitos cabelos, não sei sequer se ele sorriu, e morreu levando o nome que tantos quiseram lhe negar.

Sei apenas que veio, viveu pouco, foi breve como um início. Não teve direito ao seu alfabeto. Por isso, falo em seu nome, e o trago para a lembrança, que é outra forma de vida.

(Amanhã continua. Ou não)

terça-feira, 15 de maio de 2007

O tempo



Com ilustração de João Lin

Aconteceu esta semana. Resolvi umas coisas, fiz o arroz com feijão do cotidiano, e no final da tarde, já anoitecendo, me vi perambulando, com um enorme guarda-chuva na mão. Iria para o Cais de Santa Rita, mas estava na Agamenom Magalhães, quem não é do Recife, não vai entender nada. É uma boa caminhada.

Fui andando devagar, que meu projeto principal, agora, é tartaruguear. Pocot, pocot, pocot.

Então me surgiu uma vontade íntima, a de dar uma passadinha na Católica, a Universidade onde já estudei, penei para pagar as mensalidaded, menti para dédéu, para conseguir uma bolsa de 50%, o lugar onde me formei, iniciei minha vida de jornalista, e depois voltei, seis anos depois, para ser professor.

Fui lá, como aqueles animais que buscam um lugar do passado para encostar um pouco o corpo. No quinto andar, encontro o velho Fradique, com o jornal "O Berro" debaixo do braço. Lembrei de quando fui editor do jornal, ganhei vários exemplares, conversamos umas lorotinhas, depois passei no departamento. Arakitan, o tricolor, me recebeu com um sorriso.

"Professor, o senhor por aqui..."

Papeamos uma aguazinha básica, depois apareceu o Múcio, ficamos por ali. Falamos de futebol, renovei minha fé numa gloriosa campanha do Santa Cruz rumo à Primeira Divisão, Múcio, adversário ferrenho, evitou chispas.

E depois segui. Fui à rua de Lazer, á famosa "rua de lazer", comprei um CD falsiê por R$ 7,00. Depois fui para o Bloco A, onde iniciei meus estudos de jornalismo. Ali, peguei muitas filas, ali, penei para pagar as parcelas da Católica, ali conheci vários amigos. Por onde andará o velho e bom Waldemir Leite?

Então, apareceu um café. Um café é sempre um lugar bom para acalmar o espírito, tomar algumas notas. Sem cafés, o mundo seria mais desumano. Em vez de ter tido dois bares, eu, grande bobocão, deveria ter tido mesmo era dois cafés supimpas. Agora é tarde, muita cerveja passou debaixo da ponte.

Estava anotando umas besteirinhas, quando me ocorreu algo: eu tinha pisado naquele lugar há vinte anos!

Olhei para mim, mesmo sem espelho. Estou com 38, cheguei ali com 18. Não vou chegar para os leitores com aquele papinho básico de "o tempo passou rápido demais". Foi apenas uma constatação. Duas décadas me separavam daquele Samarone classificado na última da última repescagem do Vestibular.

Então fiquei parado, serenando o pensamento. Pude me ver, apressado, providenciando os documentos para a matrícula. Estava começando a lida com as palavras. Passei tão rápido por mim, que nem me vi direito.

Depois me vi no Serviço Social, contando uma mentira cabeluda, de que tinha sido criado pela minha avó, que não conhecia minha mãe (ela que não leia esta crônica), que não tinha como pagar a universidade etc. Deu certo a lorota, e consegui 50% de desconto.

Neste momento, tinha um vento forte e bom. Fiquei pensando em duas décadas. Andei por tanto canto, morei em tantas casas, fiz tantas coisas, conheci tanta gente, acertei, errei, encantei, desencantei, enfim.

Ultimamente, os alunos da Católica vieram me entrevistar, por conta dos três livros publicados, as crônicas no Blog, essas coisas de quem lida com as palavras.

"Qual a diferença do Samarone de vinte anos atrás para o de hoje?", me perguntou uma delas.

Eu não soube responder. Certas perguntas são muito difíceis. Falei várias coisas, e não consegui dar conta da pergunta.

"No próximo encontro, você me responde", disse a moça, educadamente.

O tempo parece um amigo que envelhece com a gente, mas às vezes se esconde nas dobras da memória.

Para meu amigo Waldemir Leite, que nunca mais encontrei.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

De tanto pisar no acelerador da vida...



Com ilustração de João Lin

Aqui na escola, sentado, busco alguma inspiração para uma crônica decente.

Aldemir Félix, o "Suco", arruma os livros de nossa biblioteca, separando romances, poesias, livros-reportagem etc. Faz o trabalho silenciosamente. Outros alunos querem ajudar, ele não deixa. Cuidar de livros é mesmo algo meio solitário, uma psicanálise com cada volume.

Lá pelas tantas, ele, o Suco, solta essa frase:

"De tanto pisar no acelerador da vida, acabei arrombando o motor".

Fico com essa. Certas frases valem mais que uma crônica.

Vou aqui, em busca do meu passo de tartaruga.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Alguém conhece o "Seguro-Livro"?



Com a parceria fina do João Lin, mago do traço.

Tem seguro de vida, seguro-saúde, seguro do carro, tudo que é tipo de seguro, nesse mundo tão inseguro, mas pergunto aos leitores se alguém se lembro de criar o "Seguro-Livro".

É que a barra não está fácil para o meu lado. Há uns dias, as goteiras lamberam meus poetas e romancistas prediletos. Numa ação tática fenomenal, recolhi os que estavam secos, encontrei uma parte da casa bem enxuta, e os botei para dormir ali. Foi justamente onde nasceu uma fonte de água, mais forte que a fonte que existia na pracinha principal do Crato, meu torrão natal.

Hoje de manhã, quando vi a cena, pensei em chorar, mas chorar tem lágrima no meio, lágrima tem água, e minha intuição diz que iria prejudicar mais ainda a situação.

Então veio um sol bacana, e botei todos eles para um bom banho de sol. Espalhei-os pelo chão quentinho, o Rilke se espreguiçou, o Celan agradeceu, a Cecília Meireles deu espirros, com a súbita mudança no clima.

Fui lá dentro bebericar um café, olhei para o céu, apareceu uma nuvem grossa e escura, dei uns assopros com força, ela foi para as bandas da Enseada dos Corais. Isso é que é um pulmão bom esse meu, foi o que pensei.

Voltei para olhar os livros. Bam Bam, o vira-lata da tia, tinha aproveitado minha ausência para dar uma bela mijada no Rimbaud, Nunca vi um cachorro gostar de mijar poetas, mas o Bam Bam é dose, outro dia ele ensopou uma caixa de romancistas, acertando o olho do Onetti em cheio. Eu disse "sai daí, Bam Bam" com cara de mau, ele ciscou duas vezes e saiu com um andar literário, um flaneur canino, balançando o rabo.

Trouxe mais um lote de livros para a escola onde trabalho, que tem uma biblioteca em fase de nascimento, coloquei-os em cima de uma enorme mesa, e os leitores vão achar que estou criando coisas, que estou com mania de perseguição. O ar-condicionado, da marca "York", começou a pingar. Isis Camila, minha aluna, me alertou:

"Sama, os livros estão molhando".

Macacos me mordam, é o fim dos tempos.

Mudei os livros de lugar. Atingidos, nesta safra: Mia Couto, Mário Faustino e Herberto Helder. Não tem sol agora neste final de tarde bucólico do Recife, então eles vão ter que encarar uma noite meio gelada.

Gostaria de saber com os distintos 61 leitores, se alguém conhece um serviço tipo "Seguro-Livro". Você dá a lista de livros, o corretor anota, diz quanto você paga por mês, e em caso de sinistro (essa é boa), você recebe o livro atingido de volta, em pouco mais de 48 horas. Sem franquia, que acho isso de franquia um roubo, e sem essa de vistoria.

Mas será uma volta aleijada. Meus livros, sem minhas anotações, rabiscos, observações, não são meus.

São como esses livros que ficam solitários nas prateleiras das livrarias ou sebos, à espera de um dono.

Livros de ninguém.

sábado, 5 de maio de 2007

Chuvas, poetas, cartas, livros e outras coisinhas miúdas


Tenho muitas teorias, estou escrevendo um livro sobre o tema, e tenho uma teoria secreta: a de que as chuvas gostam de poetas, de bons livros, e fez um acordo secreto com as goteiras de todas as cidades do Brasil, para alcançar seu objetivo.

Não sei como é na Dinamarca ou no Zaire, mas onde moro, em qualquer lugar desta imensa pátria, as águas nunca caem em cima da geladeira, de uma cômoda velha ou numa panela na cozinha. A goteira cai sempre em cima dos livros, dos melhores livros, de preferência em cima daquele velho poeta, amadíssimo, que fica chorando junto.

As chuvas dos últimos dias aqui do Recife e ajacências, incluindo o Cabo, onde moro, confirmaram minha teoria (a de número 347): as águas acertaram em cheio os meus poetas mais queridos. Roberto Juarroz tomou um banho bacana, está ensopado do cocoruto ao dedão do pé, acompanhado pelo Vicente Huidobro, que já vai pegando sua pneumoniazinha. O Juan Gelman escapou ileso, porque o levei para a escola, e uma aluna o levou para casa, possivelmente a bordo de uma canoa. Fernando Pessoa está em lugar seguro, protegido, ao lado da minha cama, como sempre.

Procuro lascas de sol, réstias, para que eles não peguem uma gripe. No meu mundo, fala-se gripe, o sujeito fica gripado. Virose é modismo, tudo agora é virose. Uma topada é virose, uma ressaca é virose, uma diarréia brara é virose. A Rosa ficou de me emprestar seu secador de cabelo para salvar meus poetas, mas ela vem esquecendo sempre. O pior é que hoje está chovendo pacas (estava doido para usar esse "pacas" hoje, e só agora encaixei a palavra), e as goteiras devem ter aumentado, alcançando meus romancistas latino-americanos, que ficam ao lado dos poetas. Por precaução, trouxe o Robert Arlt para um lugar seguro e botei o Roberto Bolaño dentro de um saco plástico, o risco é a asfixia.

Deveriam inventar o "seguro-livro-de-estimação-molhado".

Continuo intrigado com meus leitores, que gostam de me pegar de jeito. Outro dia, falei que tinham me roubado o Fernando Pessoa, então a Renilde mandou uma caixa completa, até com a edição portuguesa, eu fiquei pasmo, abestalhado, algo de uma beleza comovente.

Na véspera do meu aniversário (3 de maio), cheguei à escola e tinha um Sedex. Eu adoro Sedex, porque sempre chega coisa boa por ele. Era o Alberto Lima, um leitor que mora em Paris. Era uma edição de "Os detetives selvagens", do Roberto Bolaño, que eu tinha comprado em Buenos Aires, e perdido em Fortaleza, quando estava quase terminando de ler. Junto do livro, uma carta linda, que retiro um trecho, mesmo sem a autorização dele:

"Se que, agora, já há edição desta obra em português, mas, antes que você seja molestado pelos seguranças da Livraria Cultura pela tentativa de um eventual empréstimo a longo prazo, mandei buscar este exemplar em Madri para compensá-lo por aquele, um dia, perdeu-se não se sabe como, não se sabe onde. Quem sabe, levado da sua casa por um amigo que se julgou mais esperto ou quis se vingar de um surrupio indevido".

Ele deve ler mesmo minhas crônicas, pois citou bem o "eventual empréstimo a longo prazo".

A carta termina assim: "Paris, le 20 avril 2007".

Macacos me mordem, que presente maravilhoso, Alberto. Estou aqui, relendo aos poucos, saboreando o velho e bom Bolaño, que inventou de morrer aos 50 anos. Qualquer dia, dou um jeito de retribuir tamanha bondade. Por favor, faça-me um favor: imprima uma cronicazinha razoável e leia num café daqueles de Paris. Se chegar um francês amigo seu e perguntar do que se trata, diga que espere um pouco, que você está muito envolvido com a leitura.

Quem não leu ainda "Os detetives selvagens" não sabe o que está perdendo.

Eu que agora sou especialista em rins, por conta da hemodiálise da minha tia, aviso aos leitores: cuidem dos rins de vocês. Caramba, o que tem de gente fazendo hemodiálise no Recife, não está no gibi. E não tem essa de ser velhinho não, tem gente de tudo que é idade e classe social. Fico até preocupado com o Gustavo, meu amigo poeta que mora em Brasília, porque ele gosta de ler, escrever, dar aulas, mas esquece de beber água direto, e só se lembra de molhar os beiços quando sente uma pontada. É o rim, reclamando da seca. Já disse a ele uma fórmula que inventei: cada mijada, um copo d´água. O bicho é ruim, e esquece.

Serve para todo mundo: quando sair água, lembre de repor.

Ah, me ocorreu criar o "Samu do Afeto". A pessoa está lenhada, ruinzinha mesmo, liga para um amigo, que vai de ambulância escutar as dores e não ficar com aquela de dar conselhos, dizendo "você tem que fazer isso", "você tem que tomar uma decisão", "deixe de ser besta", essa lenga lenga de sempre. Escuta, entende tudo, aceita que as coisas estão desse jeito mesmo, dá o ombro, o colo, depois vai embora.

Vou encerrando por aqui. Mais um ano sem declarar Imposto de Renda. Estou preocupadíssimo com esta tal de Super Receita. Tudo que vem com "Super" é super-preocupante: Superbonder, Superman etc.

Mas tem também o Superado, né?

Caramba, hoje estou escrevendo sem bússola, falando de tudo que é assunto, com a velha tradição de não chegar a lugar nenhum. Com 38, o sujeito perde o jeito sério de viver e vai por ali, pelejando.

Só não pode mesmo é ficar cabuloso. Eu não suporto gente cabulosa.

Ps. Acabo de ganhar um parceiro. João Lin, um mago do traço. Vai voltar sempre, promete.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Travessias

Há momentos em que a vida parece testar a gente. Agüenta? Então segura mais essa. Agüentou? Então vai mais um bocadinho. E devagar, sem perceber, o sujeito vai segurando a onda, fazendo o que não imaginava. Essa coisa eu chamo de travessia.

Falo isso por conta de uma jornada em hospitais, emergências, enfermarias do Recife. É uma realidade de quem tem uma parente de 80 anos, uma tia-avó, internada de repente, em meio a uma crise aguda do rim (sim, ela só tem um), e dores à beira do insuportável na coluna, por conta de duas vértebras quebradas, fruto das quedas da vida.

Nessas horas, a vida parece que faz o seguinte: cobra, mas dá força, numa cerimônia secreta.

Calhou que o destino final da minha tia, para se recuperar também de uma infecção urinária, acabou sendo um hospital no Janga, a 60 km do Cabo, onde moramos. A turma do aquecimento global vai ficar meio fula da vida comigo, mas o que ajudei a esculhambar a camada de ozônio, a bordo do Fiat da tia, não está no gibi. Amigos, o que gastei de combustível fóssil, é de fazer chorar. Era um vai e vem interminável, levando trazendo parentes e agregados. Cada vez que eu chegava à clínica, olhava para o céu e sentia o calor aumentando. Detonei umas duas geleiras, e três esquimós estão com câncer de pele por causa do meu exagero. Para equilibrar, estou usando o ventilador somente no dois, e só abro a geladeira quando tenho certeza do que quero.

Em 15 dias, me ocorreu somente uma coisa – ou eu levaria as coisas com uma pitada de humor, ou acabaria internado. É que tem muitos momentos na vida, nessas crises, em que a gente parece que está sendo testado.

Quando um médico olha para uma pessoa muito querida, de 80 anos, e diz que ela vai ter que entrar na hemodiálise naquele momento, dá vontade de chorar e dizer que é muita malvadeza, mas a vida está testando. Você tem que agüentar, meu velho, ou então tudo se esculhamba ainda mais. Rosa, a fiel escudeira da tia, esperou ela entrar na sala da hemodiálise, para fazer o tal cateter, e soltou as lágrimas. Eram umas lágrimas para lá de sofridas, eu garanto, as lágrimas da Rosa.

Todo mundo já teve (ou tem) um parente num hospital, sabe como é importante aquele soro, para ir ajudando a recuperar as forças. Quando a enfermeira não consegue encontrar a veia, depois de vários dias de internação, é que o camarada sente faltar um pouco do chão. É hora de respirar fundo, fingir que olha para a TV, enquanto a agulha chafurda no braço, que parece uma peneira.

Neste vai e vem, você vai encontrar todo tipo de médico, pouquíssimos afeitos ao preceito básico de olhar o paciente e escutá-lo com uma certa humildade. O doutor Flávio Medeiros, por exemplo, é um inovador da Medicina. Inventou uma consulta que não demora mais de dois minutos e meio. É um oi, tudo bem, como a senhora está, uns cutucões ali, outros aqui, tira a pressão, escuta o coração e vai embora. Presenciei o mesmo procedimento quatro vezes. Dizem que ele é o dono do Hospital Santa Cecília, acho que deve ser mesmo. Tempo é dinheiro, dizem os empresários.

Mas não faça muitas perguntas ao doutor Flávio, que ele não gosta. Fica irritado, fecha a cara, quando você, um reles parente, quer detalhes do quadro de uma pessoa querida.

“O quadro é estável”, foi a frase completa que consegui arrancar dele, em 10 dias de internação.

O material que fui anotando nos meus caderninhos daria uma ótima seqüência, tipo “nos corredores do Santa Cecília”.

Certo dia, um médico pediu outra radiografia da tia, a segunda em três dias.

Questionei, perguntei onde estava a anterior, fiz aquele escarcéu básico, até que o doutor Flávio me entregou a radiografia.

Minha tia estava no apartamento 11, ele me entregou uma radiografia do apartamento 105-B.

“Doutor, essa radiografia é de outro paciente”, eu disse.

“Ah, é mesmo”, me disse ele, como se fosse uma troca de um suco de laranja por um de maracujá.

Pela graça divina, nos hospitais ainda encontramos gente como Zezé, uma enfermeira baixinha e atarracada, com um eterno sorriso, mesmo quando dobra o plantão e está exausta.

É daquele tipo de gente que trabalha com tanto cuidado, bota tanto carinho em cada gesto, que a gente até esquece um médico evasivo e acredita na cura.

Quando a tia recebeu alta, a Zezé veio se despedir. Deu as mãos, olhou para minha tia nos olhos e disse que queria encontra-la em um local bem bonito, menos em um hospital.

A tia, que já estava se sentindo bem, ficou melhor.

Para a Zezé, que olhou minha tia nos olhos.