segunda-feira, 27 de março de 2006

Cada papelzinho, uma vida

Nas muitas viagens que fiz à Argentina, Chile e Uruguai, para pesquisar sobre ditaduras e solidariedade, que resultou no livro Clamor (2003), escutei dezenas de histórias, que não entraram no livro, mas guardei com carinho em muitos cadernos, e passo a compartilhar.

Lembro que a pesquisadora argentina Claudia Feld, que participava comigo e outros 15 jovens pesquisadores da América Latina do projeto “Memória e Repressão”, me entregou uma pesquisa que tinha feito sobre o julgamento dos militares argentinos, em 1985. Era uma longa e detalhada pesquisa sobre o impacto que o julgamento dos milicos, após a redemocratização do País, teve naquele contexto argentino. Mas, como sempre, foi uma pequena história a que mais me interessou.

Não era sequer uma história. Na verdade, pouquíssimas frases, de uma pessoa que foi ao Tribunal, dar seu testemunho. Era o depoimento de uma mulher. Das 833 pessoas que deram seu testemunho, cerca de 500 havia sido afetadas diretamente pelo terrorismo de Estado: sobreviventes de centros clandestinos de detenção e familiares de desaparecidos.

Alberto Amato contou para Claudia um episódio que ocorreu no Tribunal. Um dia, uma testemunha apareceu com uma pasta laranja debaixo do braço, sentou-se e contou sua história. A pasta estava grudada ao corpo. Ao final do depoimento, o juiz perguntou:

“A senhora tem alguma prova?”.

“Sim”.

"As trouxe?”

“Sim”, respondeu a senhora.

“Estão nesta pasta?”

“Sim, estão nesta pasta”.

“Por favor, entregue-a ao Tribunal”, pediu o juiz.

O juiz pediu a pasta e a mulher foi se desprendendo dela com uma enorme dificuldade, “como quem se desprendia da única amarra que tinha com a vida”, como disse Amato. Dentro, estavam muitos papéis. Após entregar a pasta ao Tribunal, ela só conseguiu dizer uma frase:

“Por favor, não percam nenhum papelzinho”.

Lhe disseram:

“Fique tranqüila, não vamos perder nenhum papelzinho”.

Atrás dela, um jornalista disse a Amato:

“Te dás conta? Cada papelzinho é uma vida”.

***

Uma vez, estávamos discutindo sobre o número de mortos e desaparecidos nas diferentes ditaduras de cada País. A conversa com os amigos pesquisadores do Cone Sul ficou em cima dos números. Lembro que uma das pesquisadores, que era do Chile, ficou impressionada com o baixo número de mortos e desaparecidos no Brasil, em comparação com os seus vizinhos (só na Argentina, o número de desaparecidos pode chegar a 30 mil).

“Mas só?”, perguntou ela, referindo-se aos desaparecidos brasileiros.

Eu fiquei tão perplexo, que só me veio uma frase Tzevan Todorov como resposta:

“Um milhão de mortos é uma informação. Uma morte é um sentimento”.

2 comentários:

Anônimo disse...

ver a vida morte a morte é uma dor perigosa, mas necessária ao ser em luta contra o simples existir.
beijo do tamanho do mundo e com as cores das borboletas

Anônimo disse...

se a contagem acontecer hoje o numero de morto e desaparecidos será muito menor, já que, os arquivos e papeis da ditatura Lula ajudou a queima-los.