quinta-feira, 30 de março de 2006

Conversas no Alto José do Pinho e uma análise sobre a Lei Seca

Estou no salão Belo Visual, no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife. Eliete, minha cabeleireira, passa uns cremes na minha vasta cabeleira e comenta:

"Professor, está bom de dar uma cortadinha, né?”

Só Eliete, e mais ninguém, enfia uma tesoura na minha cabeleira. Ela só me chama de “professor”, porque quando a conheci, eu era professor da Universidade Católica, e fiz um trabalho com os alunos no Alto. Não tem jeito: todo mundo no Alto me chama de “professor”. Eu adoro isso, acho mais bonito ser professor que jornalista. A filha de Eliete faz um alisamento no cabelo de uma criatura, que está sentada ao meu lado. O cabelo dela é cor de jambo, e o secador, junto com a escova, vai alisando tudo, o cabelo vai ficando uma peruca, de tão lisinho. Daqui a pouco, o assunto em pauta é a morte de uma atriz, que não sei o nome, só sei que era uma setentona, e caiu de um edifício, acho que foi no Rio de Janeiro.

“Foi suicídio. Deu no noticiário. Isso é depressão”, diz a mulher-do-cabelo-sendo-alisado.

O salão inteiro entra no assunto. Fico calado, para não cometer nenhuma gafe, porque outro dia saiu o ator global Kadu Moliterno com a família, na revista Caras, e era tudo lindo e maravilhoso, uma família "unida, completa e feliz", como sempre queria minha avó Zeneuda. A mulher dele apareceu recentemente na capa de uma revista, toda detonada, com o olho inchado, dizendo que apanhava direto do camarada, o mundo está mesmo uma grande esquizofrenia.

A mulher ao lado conta a história de uma amiga que ficou doida, por causa de um grande amor, hoje vive girando o braço esquerdo o tempo inteiro e comeu parte dos cabelos. Eu fico impressionado com esse negócio de comer parte dos cabelos.

“Lá vou morrer por causa de homem! Eu, em cada separação, vou é para a farra, tomo todas e volto pra casa cheia dos quequéus”.

Eliete escuta. Perdeu um grande amor, ano retrasado, vítima de um acidente, e só faz o comentário:

“Primeiro, a pessoa tem que se amar”.

A morte da atriz é o mote para uma longa discussão sobre solidão, depressão, relacionamentos, separações, sofrimento, culpa, amor, enfim, essas coisas que rendem muito num salão de beleza, num boteco e numa sessão de psicanálise.

Eliete me pergunta se conheço um lugarzinho para ela alugar um salão, em Casa Forte. Anda meio desgostosa, quer mudar de ares, conhecer novas pessoas, “escutar outras conversar”. Fico de procurar um lugar, ela pede meu telefone. Dá uma aparada na minha juba e vou comemorar no bar de Seu Biu, que fica defronte.

É quase uma hora da tarde. Flávio me serve um “Ele & Ela”, depois como um pratinho de jabá (a R$ 2,00) e tudo fica mais bonito. Flávio me fala da com sua voz de locutor da “Lei Seca”, que está vigorando em vários bairros, inclusive no Alto José do Pinho. A partir das 23h, segundo determinação da Secretaria de Defesa Social, os bares de vários bairros não podem mais vender bebida alcoólica. Flávio acha que não vai dar em nada, porque o bar fecha, e todo mundo vai atrás de bares abertos. Só valeria mesmo se fosse para a cidade inteira, avalia.

“É um problema. Quando dá onze horas, todo mundo começa a pedir saideiras”, lamenta Flávio, que está se organizando para voltar a estudar para concursos. Pergunto qual concurso, ele responde que qualquer um serve.

Lembrei de Castanha, o homem que mais pede saideiras no Brasil. No mínimo dez, antes de pedir a conta. Seu Vital adora essa brincadeirinha.

“O governo tinha que fazer propaganda na televisão, explicando se está dando resultado e informando como funciona. Ficou tudo nas costas da gente, que trabalha no ramo”, explica Flávio. Concordo.

Ele me olha assim bem sério e diz:

“Sabe de uma coisa, Marone (ele só me chama de Marone mesmo, desde a primeira vez que falou comigo, já me acostumei). Com essa Lei Seca, a turma está bebendo é mais. Como sabem que o bar vai fechar de 11 horas, empurram o pau. Bebem com mais pressa. O freezer que esvaziava lá pela uma da manhã, agora fica vazio antes das onze".

Imagino. O cara beber olhando para o relógio deve ser um inferno.

Na parede, os avisos diversos.

“Não vendemos mais fiado”.

“Evite ressaca: mantenha-se bêbado”.

Preços: prato de Jabá: R$ 2,00 (pequeno) e R$ 3,00 (grande); Cerveja Brahma: R$ 2,00.

Cerveja Nova Schin: R$ 1,99.

Na mesa ao lado, cinco sujeitos tomam Pitu em lata, comem jabá e discutem com seriedade os caminhos do dominó. Lá pelas tantas, um lamenta:

“Pra jogar lá, a gente tem que pagar. Agora... eles aqui jogam de graça”, diz ele, com um jeito meio desconfiado.

Termino minha cerveja, passo na casa de Peste, meu velho amigo, mas ele saiu. Procuro um táxi, mas o taxista foi almoçar. Desço a pé mesmo, o velho e bom Alto José do Pinho. Vou olhando as pessoas, as casas, os jogadores de dominó do início da tarde, as velhinhas aboletadas nas varandas, uns cachorros preguiçosos, caçando sombra, o subúrbio, a periferia, essas coisas que adoro, os lugares onde me sinto em casa.

No primeiro andar de uma casa, um senhor de bermuda vai levantando uma parede lentamente. Está suado, são quase duas horas da tarde, o calor está fodendo tudo, ele está concentrado em seu ofício, tem um tijolo nas mãos, não olha sequer para os lados. Lembrei de uma crônica do Rubem Braga, escrita na Itália, logo após o final da II Guerra, quando ele observa um homem reconstruindo sua casa, "trabalhando quieto, quase sem comer, de sol a sol, indiferente a tudo o mais". Ao final, Braga diz que aquele homem estava ali, solitário, mas parecia que estava fazendo mais que reconstruir sua casa, destruída pelas bombas: "estava começando a reconstruir o mundo".

Pego um ônibus até o mercado de Casa Amarela, vou em Mary, procuro Davi, mas ele não está. Passo na barraca de Denise, ela grita "oi, meu amor", bem delicado, e acho essas coisas do Recife impagáveis, líricas, afagos na alma. Penso em almoçar peixe, mas hoje não tem peixe, deixo pra lá. Pego um táxi, volto para casa com um taxista silencioso, um carro velho, caindo aos pedaços.

Chego em casa, olho no espelho, o cabelo ficou na medida, Eliete é demais.

Deveria ter anotado a placa do táxi, para jogar no bicho, mas esqueci.

Bem, a vida segue.

ps. hoje à tardinha (sexta-feira), será aberta a exposição "Visões do Poço", com trabalhos de vários artistas do nosso reduto. A mini-galeria funciona na mercearia de Seu Vital, no Poço da Panela. Quem quiser ir, vai curtir.

5 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Amanha tenho uma prova dificílima, por isso, precisei estudar muito esta semana...Mas, tenho sempre vindo aqui me deliciar com suas cronicas.Obrigada!
Tudo de bom!
um abraco,
Claudia

Anônimo disse...

no dia em que tu falou do "3813" de luciana deu 4813 no bicho! ainda bem que não joguei. foi por 1.

Anônimo disse...

adorei. So quero fazer um cometario sobre a cidade do Recife. Como a moda é construir muros. O Recife não pode ficar de fora. Estam, não sei quem? Prefeitura, Governo ou Sociedade, um muro embaixo do viaduto Joana Bezerra , ao lado do Hospital Esperança. Aréa perigosa, perto do local do mergulho dos menores sugerido pelos PM no carnaval. è isso ai..

Anônimo disse...

Rapaz, cada vez que leio suas cronicas fico com vontade de ir conhecer o Seu Vital.

Anônimo disse...

Ah! Também eu quero conhecer seu Vital, o Poço da Panela... Quero continuar me apaixonando por essa cidade acolhedora, que tem me cativado a cada dia mais...
Abraço!