sábado, 25 de março de 2006

Conversas recifenses na fila do banco

Estou na fila do Banco do Brasil, na sede da Prefeitura do Recife, para receber uma pequena ajuda de custo para pagar nossa orquestra dos "Barba". É sexta-feira, já passei duas horas com Serjão, nos corredores da Prefeitura, o tal do "empenho" vai de um lado para o outro, falta sempre alguma assinatura, até que recebo o papel em três vias e vou para a fila. A fila não, aquilo era um mar de gente. Então descubro que é o dia do pagamento da ajuda de custo para as troças e blocos. Aguço o ouvido, esqueço o cansaço, e começo a pescar as conversas. Descubro que há muitos mundos, dentro de uma mesma cidade, cada um com seus valores e importâncias. Neste caso, estou no meio de uma gente pobre, que insiste em manter a tradição de um bloco ou troça no bairro, às vezes sem dinheiro nem para a passagem de ônibus dos integrantes.

Três sujeitos estão à minha frente. Um deles tem apenas o dente da frente, pontudo, aguçado, um dente que parece não querer ficar dentro da boca. Batizei-o logo de Dentinho. Ele é o mais falante. Ao seu lado, um sujeito baixinho, de calça marrom desbotada, camisa verde bem velha, aberta à altura do peito, chapéu branco, daqueles de poeta, enterrrado na cabeça. Lembou um amigo meu da Casa do Estudante, "Tijolinho". Eles conversam. Esqueço do cansaço e começo meu trabalho de registrador das conversas recifenses:

"Rapaz, a Dantas Barreto acabou-se no Carnaval. Ninguém vai pra lá, só se for para ser morto ou assaltado".

"Quando fizeram aquele corredor de merda..."

"Na Praça do Diário era que era bom. A gente saída do Marco Zero e vinha se apresentando, era lindo".

O de dente pra fora passa então a reclamar:

"Maracangalha estava com dez passistas e cinco diretores, e foi quarto lugar!"

"E eu, que fui o sétimo!", reclama Dentinho.

"Maracangalha não foi quarto não, rapaz, foi quinto, que eu vi a apuração".

"E eu, que fui o sétimo! O Sétimo!"

"E o terceiro, foi quem?"

Silêncio.

Dentinho retoma:

"Se eu tivesse caído, ía processar a Federação".

Olha para os amigos, indignado, e pergunta:

"Agora me diga. Como é que passa sem o porta-estandarte e se classifica em quinto lugar, e eu fico em sétimo?"

"Em quinto? Isso é que é uma esculhambação".

O celular do cara atrás de mim toca.

"Alô Clarinha? Tudo bem? Ôx, ele está juntinho de mim, aqui na fila".

(passa o celular para Dentinho, que abre um sorriso com seu único dente).

"Ei, menina, tás com raiva de mim ainda?"

Silêncio.

"Meus trabalhos na comunidade, estou aprendendo a trabalhar melhor, visse?"

Silêncio.

"Vou entregar o aparelho ao teu marido, minha linda".

Fala para os amigos:

"Eu vi ela guri, conheci pequenininha".

Outro sujeito, na fila, fala alto, como se pensasse entre seus miolos.

"Aquelas agremiações do interior receberam o mesmo que a gente. O que sobra para eles, falta para a gente. De outro município, tinha que vir como convidado".

Entra um sujeito moreno, forte, na agência. Ao meu lado, Dentinho dá um grito.

"Seu Vladimir!!!!"

A fila inteira olha para seu Vladimir. Uma velhinha que cochilava na cadeira quase cai, com o berro de Dentinho.

"Vladimir Vieira da Silva!"

Abraços e tapões nas costas, igualzinho aos políticos.

"Fala Bicão!"

Do meu lado:

"Aí eu me arretei... Era o Urso da Boa Vista".

"Faltando cinco minutos para terminar minha apresentação, Léo tirou a orquestra e me prejudicou muito. Veja bem: cinco minutos antes de terminar a apresentação!"

"Safadeza monstra. Agora... tens notícia de Camisa Velha?"

"Camisa Velha passou vários anos sem sair, e quando saiu, me ganhou o título por um ponto. Sabe o que é perder o título por um ponto?"

"Um ponto é pra arrasar a pessoa".

Chega uma senhora, com o carnê do IPTU.

"Me informaram agora que meu débito do IPTU é dois mil e pouco. Já pensasse?"

"É um pobrema, esse negócio do IPTU. Eu tenho um barraquinho de cinquenta metros, e estou devendo mais que isso".

"A turma lá de cima não perdoa pobre", comenta um senhor barrigudo, muito sério.

Do outro lado da fila, a conversa segue.

"Tá desmoralizada. A Federação Carnavalesca está desmoralizada. A pessoa não pode ter três agremiações de jeito nenhum".

"Eu vou te dizer uma coisa. A minha comunidade é muito boa para o Carnaval. Quando a gente sai, sai mesmo, não tem quem segure".

"Sabia que o cara está com três ursos, aquele homem lá do Buriti?".

"Eu te digo: esses caras estão acabando com o Carnaval do Recife".

"Ali, rapaz, só punhalada nas costas".

Vai chegando a minha vez de ir ao caixa. Ainda escuto o acerto:

"Quando a gente receber o dinheiro, vamos na casa de Jorge Bicão, tomar uma".

"E apois".

Durante uma hora de fila, não escutei um comentário sobre corrupção, guerras, o aumento da violência no Recife, o custo de vida, desemprego, nada. Era outro mundo, com suas carências, seus sonhos, suas tristezas e alegrias. Outros recifenses, que moram nos altos e baixos, longe dos lugares mais arrumadinhos.

Fiquei arrependido de não ter perguntado qual a agremiação que perdeu o Carnaval por um ponto, um reles pontinho, mas deixei para lá. Certas coisas, sem resposta, ficam até melhores.

E confesso: se tivesse me chamado para ir na casa de Jorge Bicão, tomar uma, eu teria ido na hora.

Fica para a próxima, então.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sama, tô aqui já saindo pra uma festinha de criança e qdo vi o micro ligado pensei: eu vou dar uma espiadinha no blog do Sama!
Então encontro vc com sua forma especial de falar sobre coisas simples da vida... uma delícia!
Esse mundo a que pertencemos que envolve guerras, corrupções, violência urbana e outras coisas nos tira um pouco a percepção de que algo além disso existe.
Podem ser coisas mais simples, como vc descreveu, ou coisas mais belas, como a poesia e as emoções...
Obrigada por nos fazer relembrar que precisamos melhorar nossa percepção sobre outros mundos!!
Beijos e bom domingo.

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog!
Não tive tempo de lê-lo com calma, mas farei isso em breve.
Abraço