Estou na fila do Banco do Brasil, na sede da Prefeitura do Recife, para receber uma pequena ajuda de custo para pagar nossa orquestra dos "Barba". É sexta-feira, já passei duas horas com Serjão, nos corredores da Prefeitura, o tal do "empenho" vai de um lado para o outro, falta sempre alguma assinatura, até que recebo o papel em três vias e vou para a fila. A fila não, aquilo era um mar de gente. Então descubro que é o dia do pagamento da ajuda de custo para as troças e blocos. Aguço o ouvido, esqueço o cansaço, e começo a pescar as conversas. Descubro que há muitos mundos, dentro de uma mesma cidade, cada um com seus valores e importâncias. Neste caso, estou no meio de uma gente pobre, que insiste em manter a tradição de um bloco ou troça no bairro, às vezes sem dinheiro nem para a passagem de ônibus dos integrantes.
Três sujeitos estão à minha frente. Um deles tem apenas o dente da frente, pontudo, aguçado, um dente que parece não querer ficar dentro da boca. Batizei-o logo de Dentinho. Ele é o mais falante. Ao seu lado, um sujeito baixinho, de calça marrom desbotada, camisa verde bem velha, aberta à altura do peito, chapéu branco, daqueles de poeta, enterrrado na cabeça. Lembou um amigo meu da Casa do Estudante, "Tijolinho". Eles conversam. Esqueço do cansaço e começo meu trabalho de registrador das conversas recifenses:
"Rapaz, a Dantas Barreto acabou-se no Carnaval. Ninguém vai pra lá, só se for para ser morto ou assaltado".
"Quando fizeram aquele corredor de merda..."
"Na Praça do Diário era que era bom. A gente saída do Marco Zero e vinha se apresentando, era lindo".
O de dente pra fora passa então a reclamar:
"Maracangalha estava com dez passistas e cinco diretores, e foi quarto lugar!"
"E eu, que fui o sétimo!", reclama Dentinho.
"Maracangalha não foi quarto não, rapaz, foi quinto, que eu vi a apuração".
"E eu, que fui o sétimo! O Sétimo!"
"E o terceiro, foi quem?"
Silêncio.
Dentinho retoma:
"Se eu tivesse caído, ía processar a Federação".
Olha para os amigos, indignado, e pergunta:
"Agora me diga. Como é que passa sem o porta-estandarte e se classifica em quinto lugar, e eu fico em sétimo?"
"Em quinto? Isso é que é uma esculhambação".
O celular do cara atrás de mim toca.
"Alô Clarinha? Tudo bem? Ôx, ele está juntinho de mim, aqui na fila".
(passa o celular para Dentinho, que abre um sorriso com seu único dente).
"Ei, menina, tás com raiva de mim ainda?"
Silêncio.
"Meus trabalhos na comunidade, estou aprendendo a trabalhar melhor, visse?"
Silêncio.
"Vou entregar o aparelho ao teu marido, minha linda".
Fala para os amigos:
"Eu vi ela guri, conheci pequenininha".
Outro sujeito, na fila, fala alto, como se pensasse entre seus miolos.
"Aquelas agremiações do interior receberam o mesmo que a gente. O que sobra para eles, falta para a gente. De outro município, tinha que vir como convidado".
Entra um sujeito moreno, forte, na agência. Ao meu lado, Dentinho dá um grito.
"Seu Vladimir!!!!"
A fila inteira olha para seu Vladimir. Uma velhinha que cochilava na cadeira quase cai, com o berro de Dentinho.
"Vladimir Vieira da Silva!"
Abraços e tapões nas costas, igualzinho aos políticos.
"Fala Bicão!"
Do meu lado:
"Aí eu me arretei... Era o Urso da Boa Vista".
"Faltando cinco minutos para terminar minha apresentação, Léo tirou a orquestra e me prejudicou muito. Veja bem: cinco minutos antes de terminar a apresentação!"
"Safadeza monstra. Agora... tens notícia de Camisa Velha?"
"Camisa Velha passou vários anos sem sair, e quando saiu, me ganhou o título por um ponto. Sabe o que é perder o título por um ponto?"
"Um ponto é pra arrasar a pessoa".
Chega uma senhora, com o carnê do IPTU.
"Me informaram agora que meu débito do IPTU é dois mil e pouco. Já pensasse?"
"É um pobrema, esse negócio do IPTU. Eu tenho um barraquinho de cinquenta metros, e estou devendo mais que isso".
"A turma lá de cima não perdoa pobre", comenta um senhor barrigudo, muito sério.
Do outro lado da fila, a conversa segue.
"Tá desmoralizada. A Federação Carnavalesca está desmoralizada. A pessoa não pode ter três agremiações de jeito nenhum".
"Eu vou te dizer uma coisa. A minha comunidade é muito boa para o Carnaval. Quando a gente sai, sai mesmo, não tem quem segure".
"Sabia que o cara está com três ursos, aquele homem lá do Buriti?".
"Eu te digo: esses caras estão acabando com o Carnaval do Recife".
"Ali, rapaz, só punhalada nas costas".
Vai chegando a minha vez de ir ao caixa. Ainda escuto o acerto:
"Quando a gente receber o dinheiro, vamos na casa de Jorge Bicão, tomar uma".
"E apois".
Durante uma hora de fila, não escutei um comentário sobre corrupção, guerras, o aumento da violência no Recife, o custo de vida, desemprego, nada. Era outro mundo, com suas carências, seus sonhos, suas tristezas e alegrias. Outros recifenses, que moram nos altos e baixos, longe dos lugares mais arrumadinhos.
Fiquei arrependido de não ter perguntado qual a agremiação que perdeu o Carnaval por um ponto, um reles pontinho, mas deixei para lá. Certas coisas, sem resposta, ficam até melhores.
E confesso: se tivesse me chamado para ir na casa de Jorge Bicão, tomar uma, eu teria ido na hora.
Fica para a próxima, então.
2 comentários:
Sama, tô aqui já saindo pra uma festinha de criança e qdo vi o micro ligado pensei: eu vou dar uma espiadinha no blog do Sama!
Então encontro vc com sua forma especial de falar sobre coisas simples da vida... uma delícia!
Esse mundo a que pertencemos que envolve guerras, corrupções, violência urbana e outras coisas nos tira um pouco a percepção de que algo além disso existe.
Podem ser coisas mais simples, como vc descreveu, ou coisas mais belas, como a poesia e as emoções...
Obrigada por nos fazer relembrar que precisamos melhorar nossa percepção sobre outros mundos!!
Beijos e bom domingo.
Parabéns pelo blog!
Não tive tempo de lê-lo com calma, mas farei isso em breve.
Abraço
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