sábado, 11 de março de 2006

A partilha (uma pequena história de amor e separação)

Depois de alguns anos, chegou o momento que eles tentaram, às duras penas, evitar – a separação. E foi em meio a uma discussão banal, ele tinha esquecido algo importante, o horário de um exame, ela ficou esperando, o celular não atendia, isso não teria importância nenhuma, se certos rancores não viessem se acumulando ao longo dos anos, quando tudo parecia fácil e bom, como fora antes, no começo, até algum momento que já não lembravam. Então, tudo explodiu em frases fora do tom, as pequenas infelicidades acumuladas se tornaram mágoas. As palavras feriram. Ao final da discussão, estavam aos pedaços, e nada havia mais a fazer.

“Vou dar um tempo. Estamos estressados”, disse ele.

“Doze anos já é muito tempo”, respondeu ela, hostil. “E agora tudo que é sentimento ruim vira estresse”.

Ele saiu num rompante. Era uma sexta-feira, sabia onde encontrar os amigos. Estavam todos no boteco de sempre, com as conversas que ele já conhecia.

“Cadê a Paulinha?”, perguntou o primeiro. Ele pediu um chopp, disse que ela estava com enxaqueca. Mandou ver. Bebeu com sede, danou-se a fumar, coisa que raramente fazia, no máximo dava uns traguinhos, para sentir o gosto do tempo em que fumava uma carteira por dia.

Chegou em casa de manhã, naquele estado. Adormeceu no sofá e teve sonhos ruins, mas não conseguiu lembrar os detalhes. Quando acordou, encontrou o bilhete.

“Doze anos foi um bom tempo. É a hora da partida e da partilha”.

Ele passou o dia agonizando no sofá, entre os males da ressaca e do coração. Sim, ainda havia algo que gostava na Paulinha, mas o pior é que nem sabia o que era. Talvez o jeito de tratar as crianças, a forma como dizia “mas Rafael”, um movimento singular, quando dizia “cuide-se”, algo que o comovia.

Quando ela voltou, à tardinha, estava armada de palavras. Tinha deixado os filhos com a mãe, para facilitar as coisas. Teriam o restante da noite do sábado e o domingo inteiro. Rafael olhou-a séria, intensa, decidida, quase rancorosa, e perguntou:

“Onde está aquela jovem estudante de Sociologia, que usava um vestido de chita e óculos enormes, que conheci no Teatro do Parque, na fila para o show do Gilberto Gil?”

Ela ficou em silêncio. Lembrou que o Gil agora era Ministro da Cultura e achou isso engraçado.

“E onde está aquele rapaz que estudava História e queria revolucionar a América Latina inteira, com um par de sandálias de couro, a camisa do Che Guevara e barba sempre por fazer?”.

Por um breve instante, se desarmaram. Mas os olhares estavam quebrados, tinham virado alguma esquina, que os levava para novos caminhos. Ele se aproximou, ela esboçou um leve sorriso, se abraçaram longamente, repassando pelos corpos, a memória do muito que tinham vivido. A emoção mudara de tom, de cor, e teriam que seguir de outra forma.

“Quero levar somente minhas plantas”, disse ele, aceitando o fim.

“Deixe aquela buganvília que eu gosto tanto”, pediu ela, agora com doçura.

“Sorte não termos um disco do Pixinguinha”, disse ele.

“E nunca gostei muito do Neruda”, respondeu ela.

E sorriram levemente.

Nos dias seguintes, Rafael foi resgatando suas plantas, até que deixou somente a buganvília que ela pediu.

Foi um período em que começou a chover muito no Recife, lavando o quintal e o jardim, lavando as calçadas e as ruas do bairro.

Uma tarde, a Paulinha ficou sentada, olhando a buganvília, a única que restou. A chuva lavava tudo, parecia açoitar a terra, às vezes com fúria. Então sorriu levemente.

Ele, do outro lado da cidade, aguardava o sinal abrir, em meio a um congestionamento. Ligou a rádio, tocava uma velha canção do Gil, a que mais gostavam. Ele também sorriu levemente.

Agradeceram pela bênção daquele encontro, naquele show do Gil no Teatro do Parque. Ela, com o vestido de chita e os óculos imensos. Ele, o mais revolucionário de todos, com o dinheiro que dava somente para o ingresso no show e uma cerveja.

Agradeceram também porque souberam fazer a partilha sem rancores.

Para Rafael e Paulinha, que me contaram essa história simples.

11 comentários:

Anônimo disse...

Quem dera toda separação fosse sem mágoas!!Belo exemplo o desse casal!

Anônimo disse...

é essa sua suavidade em contar os fatos que me deixa sem fôlego.

Anônimo disse...

ai que delícia de artigo.

Anônimo disse...

Quem dera não precisasse haver separações...
Quem dera o amor não tivesse fim...

Anônimo disse...

Fiz uma prece agorinha, Sama: que todos os finais que eu ainda tenha que passar sejam simples e ternos como este.

Beijo e Deus lhe abençoe por esse jeito lindo e massa de contar as coisas.

Anônimo disse...

Não sei se é a sensibilidade do domingo, ou se pelo fato de ser meu aniversário, mas o texto me emocionou ao extremo!

Espero um dia poder escrever assim...

Anônimo disse...

Tao lindo seu jeito(estilo) de contar essa separacao!Lindo que até dói!
Parabénnnsss!Voce escreve maravilhosamente!
abraco,
Claudia

Anônimo disse...

História simples e bonita... é isso, dispensa maiores comentários.
Bjs

do ás ao rei disse...

Oi Sama! Como sei que você gosta de escrever de tudo, inclusive sobre o inesperado, resolvi te fazer esse convite:

Do Ás ao Rei
http://claviculario.blogspot.com

(O convite está no post correntes e correntezas)

É mania de quem virou blogueiro há pouco tempo!

Abraços!

Anônimo disse...

afasta-se,
deita e sai sem dizer nada,
acorda-me apenas para dizer
que ainda me ama.
lá longe,
um eterno adeus de saudades.

do ás ao rei disse...

Oi Sama! Publica as manias no Estuário mesmo, abraço!