segunda-feira, 6 de março de 2006

Sobre o problema da gaia

A cada dia que passa, me decepciono mais com o Aurélio. Me perdoem a intimidade, sei que é Aurélio Buarque de Holanda, mas todo mundo só o chama pelo primeiro nome. “Menino, me traz aí o Aurélio”; “Puxa, estou sem meu Aurélio aqui”. O nome do sujeito já virou nome de objeto. Um Aurélio é um dicionário bem completo, todo mundo sabe disso.

Pois bem, venho colecionando falhas grosseiras no citado livro, já citadas em crônicas anteriores (não tem buchuda, por exemplo, nem pantim). A crônica de hoje, que seria sobre a famosa “gaia” (ato de levar um par de chifres), não contou com a ajuda do “pai dos burros”.

Página 827: gaias. S.f. pl. Redemoinho de pêlos no peito ou nos quartos da base da cauda do cavalo.

Decepcionante.

Procuro então a palavra “galha”, apesar de saber que ninguém diz “fulando levou uma galha pesada”. Todo mundo diz que fulando levou uma baita de uma gaia.

Página 830: galha. [Do esp. Agalla, com aférese] S.f. designação que os pescadores dão à primeira barbatana dorsal dos peixes, e quem em alguns, como no tubarão, anda, mais ou menos, fora da água.

Sem comentários

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Tirando o desconto que não sei o que é aférese, e não vou passar a manhã procurando palavras num dicionário, só posso dizer que o Aurélio está precisando ser renovado, incluindo o que a população brasileira mais conversa: o desalentador problema da gaia, que é quando alguém passa chifres em alguém. No “Dicionário do palavrão e termos afins”, do Mário Souto Maior, não só tem “gaia”, como “galhas”.

"Chifres, cornos (Nordeste): casou-se outro dia e já botou galhas no pobre do marido, nossa!"...

Estou falando no assunto hoje porque ontem, no aniversário de Boy, aqui no Poço, o assunto não saiu das mesas e cadeiras. Todo mundo tocou no assunto de alguma forma, uns com uma recorrente insistência, outros com um ar de preocupação. Lá pelas tantas, uma dessas músicas bregas que tomaram conta do Recife, nos últimos três anos, começou o poético refrão:

“É gaia, é gaia, é gaia”.

Minha experiência filosófica é a seguinte – quanto mais o ambiente é simples, quanto mais vamos chegando ao povão, mais o assunto entra na roda e permanece. Diria que é uma obsessão de parte da população brasileira, falar sobre a questão da gaia. É possível se passar uma tarde inteira falando do mesmo assunto, entre uma dose de Rum Montilla e outra? É sim, e aconteceu ontem no aniversário do meu amigo. Aqui-acolá, se falou de outro assunto, o campeonato estadual, botar mais carne para assar, mas era como se fosse o comercial de algum programa, o intervalo. A gaia estava sempre ali, imponente.

Um intelectual da mais alta estirpe, Marcelo Barreto, me encarou com aquele olhar profundo e dramático, outro dia, e disse o seguinte:

“Samarone, gaia é um problema de segurança pública”.

Concordei imediatamente e fiquei impressionado com a constatação, de alto valor filosófico e existencial. As políticas públicas deveriam incorporar o tema nos programas de prevenção à violência. Nem todo corno é manso.

Outra amiga disse que o problema não é propriamente a traição, isso pode acontecer com qualquer pessoa, mas é o peso da palavra: “levou uma gaia” é muito mais cruel do que a singela frase “ele foi traído”. É diferente mesmo, admitamos, dói muito mais ser acusado de corno. “Aquele ali é um corno” é uma frase feia pra caramba, uma das mais feias da lïngua portuguesa.

Tem um conhecido nosso aqui do bairro que é ranzinza, carrancudo e trata mal as mulheres. Nunca entendi o motivo, mas também nunca tive intimidade suficiente para descobrir. Ontem mataram a charada. Falando sobre o dito cujo, aquela brabeza toda, a falta de atenção com as mulheres, e alguém me explicou:

“Tu não sabe? Aquilo foi uma gaia, que deixou ele empenado. Nunca mais se recuperou”.

Tomei mais uma dose e voltei para casa, mas confesso que me deu pena do sujeito.

2 comentários:

Anônimo disse...

A teoria da evolução explica as motivações instintivas que levam uma pessoa a botar uma gaia em outra. Pura balela! hehehehehe

Anônimo disse...

ali onde deito,
teu peito, também já foi meu.
eu, que sempre estava aqui,
dormi e vazio estava,
lá na ante-sala,
vocês sorriam,vocês se amavam.