Calma, meus queridos, que a frase não é minha, muito embora tenha já pronunciado algo assim, nas minhas pequenas crônicas bloguianas. O autor é um camarada alemão, chamado Joseph Roth, que não se considerava um redator, mas um poeta. O livro, novinho em folha, se chama "Berlim", e comprei por indicação de uma amiga de viagem, a senhora Priscila, que conheci em um albergue em Salvador, quando eu andava pesquisando para escrever um livro chamado Clamor.
Pois bem. Onde estávamos? Ah, sobre as miudezas importantes da vida. E me flagrei outro dia pensando em algo muito simples: como seria o dia de algumas pessoas.
Explico. Sou professor, dou aulas duas vezes por semana, na parte da manhã. A tarefa é simples: despertar nos jovens o prazer da leitura e da escrita, coisa dificílima, num país que obriga a moçada a ler Dom Casmurro antes de completar 17 anos, quando a paixão pela leitura deve começar por coisas mais simples e divertidas. Não que eu ache o senhor Machado de Assis impertinente, mas eles, os jovens, precisariam de mais traquejo com leitura, antes de pegar uma pauleira pela frente. O salário, o meu, não é nada espetacular, vou vivendo.
Aqui-acolá, faço um bico para ganhar uma moralzinha e comprar aqueles livros de capa dura. Quando recebo o dinheiro desses extras, é comum eu me aventurar a andar de táxi, dando menos dinheiro ao meu amigo Lucimério, dono da Transcol. Também dou algumas palestras em semanas de jornalismo, entrevistas para programas produzidos por alunos, na Universidade Católica, e sou incluído aleatoriamente nas programações de seminários e debates, coisas dos meus amigos que trabalham com ONGs. Bem, isso tudo é grátis, é um pouco do que chamam de participação social. A última participação foi uma mini-oficina para jovens do Coque, a convite da dona Gorete, da ONG Auçuba. Foi uma tarde inteirinha.
Olhando bem, minha rotina de trabalho não é tão pesada. Tenho tempo para ler, escrever, atualizar o blog e perambular. A vadiagem é uma das maiores virtudes do ser humano, e lamento muito quando tenho que trabalhar pesado.
É aqui que chego ao ponto. Outro dia, dentro da Transcol, lendo o meu velho em bom Fernando Pessoa, comecei a reparar nas pessoas, e no dia que elas teriam pela frente. Como estávamos às sete e pouco da manhã, me peguei imaginando como seria o dia delas. A única coisa que me ocorreu foi a seguinte: eu sou feliz e não sei.
O ônibus parou defronte a uma banca do jogo do bicho, a famosa Sonho Real. Estava uma mulher, uma morena bonita, debaixo de um guarda-chuva, com seu filho no colo. O menino chorava abertamente, escancaradamente. Ela dava a chupeta, o menino recusava, e pensei na gravidade do problema. Quando uma criança recusa uma chupeta, amigos, algo vai muito mal.
Pelos meus cálculos, era ficaria ali até as 18h. Com muita sorte, um parente buscaria a criança, ali pelo meio dia. Fiquei assombrado com isso, essa miudeza de ficar o dia inteiro sentada, passando jogo do bicho, e mais o filho chorando. Viver, como diz o velho Guimarães Rosa, é muito perigoso. Eu diria que viver, para muita gente, é muito sofrido.
Como estamos em campanha eleitoral, temos no Recife a figura clássica do "segurador de bandeira". O troço é o seguinte: o sujeito passa o dia inteiro segurando uma bandeira de um cara que ele nem conhece, em algum logradouro público, em troca de uma grana, que varia de candidato para candidato. Outro dia não resisti e perguntei:
"Tas faturando quanto por dia?"
"Dez reais".
Meu Deus, minha Nossa Senhora, meu São Francisco. Dez reais por um dia inteiro de pé, no calor. Pior que isso: o trabalho dele não gera nada. Não é como um agricultor, que se rala no sol, mas vê a produção, em algum momento. Nada vezes nada. Ele apenas segura uma bandeira. Pior que isso é se ele não tiver nenhuma bandeira para segurar, uma bandeira que seja sua.
Na Conde da Boa Vista, outras miudezas da vida. O vendedor-de-óculos-escuros. Quantos óculos ele vai ter que vender, para levantar dez reais? O entregador-de-panfletos no-sinal. O vendedor de sapatos, o dia inteiro em pé, caçando clientes. O camarada que vende pipocas, entre os ônibus, a R$ 0,50. Com quantas mil pipocas ele fará o salário mínimo?
O vendedor do Pernambuco da Sorte. Para quem vive longe do Recife, o Pernambuco da Sorte é uma loteria misturada com bingo, que a turma acompanha pela TV, aos sábados, creio. É um sucesso. Outro dia, Rabaçan, aqui do Poço, ganhou R$ 60 mil e todo mundo ficou sabendo. Ele está gastando direitinho, dizem. Eu, com essa grana, dava três voltas ao mundo, com minha mochilinha nas costas.
Conversei com um desses milhares de vendedores outro dia. Ele é tricolor. Estava sentado, ao lado de uma banquinha, aqui na 17 de Agosto. Era um sábado, um sol rachando tudo, derretendo até mármore. Ele, na parada de ônibus, com a camisa do Pernambuco, comentou alguma coisa sobre a recente derrota do Santa Cruz, algo cada vez mais freqüente. Fiquei sabendo que ele iria ficar até às 18h ali, sentado. Num dia bom, informou meu informante, ele venderia R$ 25,00 ou 30,00. Não ousei perguntar, mas a comissão deve ser, no máximo, de 20%. Tem uma turma no Brasil que ganha R$ 10,00 por dia e consegue viver.
O dono do fiteiro no bairro de São José; o vendedor de vale-transporte no Cais de Santa Rita; o lavador de carros, na praça de Parnamirim; essa multidão, essa legião, essa enormidade de gente. Cada dia, uma batalha pela vida, uma luta contra as horas, as intermináveis horas, quando estamos fazendo algo que não gostamos.
Eu iria falar sobre o livro, mas me distraí e acabei falando de outra coisa. Desculpem, mas ando muito distraído.
Vou ali, dar um abraço no professor Davi, que hoje completa 56 anos. No elenco, Naná, Walter e Zé Luís também disse que vai. Joguei no bicho o ano que Davi nasceu. Se der, amigos, vou ficar na medida. Torçam por mim.
14 comentários:
eu torço!!!
seiva maria
Caríssimo Samarone
Quer dizer que “Berlim” já caiu em tuas mãos? Que tal?
De qualquer forma, apesar de achar algumas das crônicas do Joseph Roth brilhantes, principalmente a forma com que ele descreve ambientes, pessoas e situações, ainda fico com o teu olhar do Recife e do mundo. Não vou esquecer uma crônica ainda do JC quando você falava daquela música do Almir Sater “Tocando em frente”, nem daquela que você descreve “As ruas do Recife” – aquela era digna de um super livro como o “Recife” de Samarone... Também tem aquela que você escreveu enquanto estava viajando para Brasília, sobre as Rodoviárias. Foi brilhante! Bem, podia estar falando de muitas outras que tornaram minhas segundas-feiras mais felizes.
Ainda quero ver você na coleção Jornalismo Literário!
Grande abraço, Priscila
"Tudo é viável para quem faz com prazer..." Nada melhor do que fazer o se gosta e quando se quer...
"Tudo é viável para quem faz com prazer..." Nada melhor do que fazer o que se gosta e quando se quer...
maravilhosa cronica... "sou feliz e não sabia"
que frase maravilhosa!!!
Bom e velho Sama, muita gente torce por ti, pra continuar desfrutando a beleza dessas miudezas nas tuas crônicas. Mas não dá pra negar uma inveja -saudável, porém - porque, professor como eu, ainda podes desfrutar o ócio do ofício. Aproveite !
Quero te comunicar que estive hoje em Brandão (aquele sebo famoso na Boa Vista, com excelente - e caro - acervo), e vi um exemplar do Clamor, pronto para ser arrumado em alguma prateleira, tendo acabado de chegar da filial em São Paulo, segundo me informou o vendedor. Não sei, mas acho que quando um livro chega no sebo (ainda mais um como Brandão, cheio de responsa!) é porque terá vida longa, merecida !
oi, Samarone!
Estou torcendo, viu?
Um abraco,
Claudia
se vc.ñ existisse teria de ser inventado.
Vivo pensando nisso, Sama: no quanto a gente é feliz sem precisar de muito e nem se dá conta disso.
De quando em vez, bate a velha autopiedade, mas, comparando à vida desse pessoal com o que a gente se depara todo santo dia...
Xêro!
Sou escritora por profissão - preciso dizer mais? Então faço mil bicos: revisão, leitura crítica, tradução, ghost-writing... igualmente mal pagos. Mas, como você, vejo essas pessoas e sei o quanto ainda sou privilegiada.
Olá!
É a primeira vez que leio seu blog, adorei! Ouvir falar de Recife sempre é bom, mesmo que seja das mazelas do seu povo...essa cidade me toca de um modo assim...inexplicável, apesar de ser paulista morando em Brasília tenho o coração aí, e estou indo sempre que posso.
Julio, fiquei imensamente feliz em saber que Clamor finalmente chegou aos sebos. Outro dia, minha mãe o encontrou num supermercado em Fortaleza, a R$ 9,90 e comprou logo quatro, a danada. A editora botou no mercado a R$ 34,90 - o que me pareceu uma barbaridade. Curiosidade existencial: estava sendo vendido a quantos merreis?
samarone
Estava numa pilha, junto com outros que, creio, ainda teriam os preços definidos, antes de irem para a estante, segundo a conversa do vendedor com outro cliente. Não perguntei o preço, enfim, mas o danado é que a Livraria Brandão é conhecida pela qualidade do acervo, mas também pela carestia. Agora, fazendo uma pesquisa no www.estantevirtual.com.br (site que reúne uns numseiquantos sebos pelo país), encontro o Clamor em São Paulo (Sebo Marcos Paiva, em Itaquera) a 20,00 e em João Pessoa (Sebo Cultural), a 29,40.
Muito legal o blog , muito legais os textos . Parabéns ...
Roberto Vieira
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