quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Anotações sobre o dia mais quente do ano e outras lorotas

Amigos, passei o dia de ontem pensando em uma crônica supimpa, algo inovador e criativo, mas ao final da jornada, depois de seis ônibus para destinos os mais diversos, o personagem da semana acabou sendo apenas um: esse calor miserável que está derretendo o Recife e seus milhares de habitantes. Não me furto em proclamar do alto da minha prosopopéia, que tivemos, nesta terça-feira, o dia mais quente do ano.

O pessoal da metereologia pode negar, apontar seus dados e números, mas dentro do ônibus da Transcol, na 17 de Agosto, voltando para casa, o menos suado tinha uma bica na cabeça. Ali pelas três da tarde se transpirava um calor infame, daquele em que a pessoa solta uns gemidos de vez em quando e implora por um ventilador no três, junto ao focinho. A camisa está devidamente colada às costas. Sonha-se com um banho de açude, com um picolé da Maguary-Kibom, sente-se inveja de quem passa naqueles carros macios e com ar-condicionado ligado no três. Nesse momento, dá saudades daquelas féias na Suiça.

Como o Recife é uma cidade muito temperamental, as coisas aqui aparecem e somem numa velocidade espantosa. Outro dia, tivemos a febre dos microônibus-com-ar-condicionado. Era o seguinte: o sujeito saía do inferno, aquele calor insano na parada de ônibus, e entrava num pequeno ônibus, delicadamente apelidado de “geladinho”.

Minto. O sujeito entrava era numa fria mesmo, porque o ar-condicionado do tal geladinho parecia ter vindo ali da Sibéria, com lufadas típicas do inverno Russo. Informo que os citados veículos não serviam vodka, para a turma se segurar. Desconfio inclusive que alguns velhinhos tenham sucumbido, diante dos problemas pulmonares causados pela mudança de um clima quente e úmido recifense, para o gelo de uma Europa oriental, numa questão de segundos.

Pois bem, depois da morte em massa dos velhinhos, os tais geladinhos de repente sumiram do mapa, pelo menos para as bandas de Casa Forte, onde vim a fixar minha residência, há quatro anos. A Transcol, do meu amigo Lucimério, parece que estava gastando muito com o ar-condicionado, e mandou recolher os coletivos. Resultado: voltamos ao velho ônibus comum. No lugar do microônibus, ficamos agora com um microondas. Rarara, hoje estou meio engraçadinho. Como ninguém reclamou, ficou por isso mesmo. São os modismos daqui. Depois do fenômeno, comecei a reparar a ausência de dezenas de velhinhos que faziam caminhadas na Praça de Casa Forte e adjacências. Deve ter sido a praga dos geladinhos, que matou muito vôvô, coisa para uma investigação jornalística posterior. Lamento informar, mas não vejo graça nenhuma em chamar os velhos de gente da "terceira idade". Velho para mim é velho.

Não sei como anda a questão nas demais cidades brasileiras, mas aqui praticamente não tem mais carro sem vidro fumê. É a moda da vez. O bom é que tem amigo que passa por você, de carro, com aquela cortina preta nos vidros. Ele vê você na calçada, tomando um sol de rachar, suado, e dá um aceno, supondo que você tem um olhar infra-vermelho. Aos amigos que têm carro com vidro escuro, informo que não adianta ficar me acenando de dentro para fora, quando eu estiver na parada de ônibus, que ainda não tenho o dom de ver as coisas através de vidros fume. Melhor que ficar acenando, é parar, baixar o vidro e oferecer uma caroninha básica.

Diante do calor recifense, me surgiu outra pergunta filosófica da maior importância. Quem é a criatura responsável pelas paradas de ônibus dessa cidade? Esse gênio da humanidade deveria ganhar um busto na Sorbonne, pela capacidade de fazer algo misterioso – deixar a sombra sempre na parede mais próxima ou a dois metros da calçada, onde passam os carros e ônibus, e não podemos ficar. O único momento do dia em que o Recifense tem sombra na parada é ao meio dia, sol a pino, debaixo daquelas marquizes de ferro.

O método mais utilizado pelas bandas de cá tem sido mesmo recorrer ao velho e salvador poste, esta composição do cenário que passa desapercebida, mas tem uma enorme função social, além de sustentar fios e ser mictório dos caninos. Quando o sol entra rasgando, fica aquela sobrinha estreita do poste, na calçada, e a turma vai se escondendo por ali. Ontem mesmo, perto do Clube Português, fiquei puto com um camarada que pegou minha vaga detrás de um desses postes. Quando fui caminhando para uma sombrinha mansa, ele zapt!, deu três passos gigantes e ficou lá, na minha vaga, dando umas risadinhas sonsas, igualzinho ao Scoobydoo. E o infeliz ainda estava com a camisa do Náutico! A vida de tricolor não anda fácil mesmo. Até vaga na sombra, atrás de um poste, estamos perdendo.

No último ônibus, já às 18h, eu estava meio desolado mesmo, arrependidíssimo de ter cochilado e batido meu velho Fusca. O Alto Santa Isabel, saindo do Recife Antigo, demora três dias e três noites para chegar à Praça de Casa Forte. Como estava com o volume I de “As Mil e Uma Noites”, comecei a ler, cochilei, li mais umas noites, dormi, sonhei, acordei, li a Sherazade com aquela conversinha fiada, e quando estávamos já chegando à noite de Natal, avistei a Praça de Casa Forte. Desci. Mais uma caminhada, até o Poço da Panela. Pocot, pocot, pocot, lá fui eu.

Cheguei em casa, tirei as sandálias, larguei a bolsa no chão mesmo e decidi: hora de um bom mergulho na piscina.

Piscina? Que piscina?

O chuveirão frio estava uma delícia.

**

Onde encontrar o livro Estuário?
1. Mercearia e bodega de Seu Vital, defronte à Igrejinha do Poço da Panela. Falar com Seu Vital. Fone: 3442.5473.
2. Locadora Altas Horas, do glorioso Vicente, que fica na Avenida 17 de Agosto, 1161, loja 03, Casa Forte. Fones: 3267.9800/3074.6567. Falar com Vicente, lógico.
3. Escola Kabum! de Arte e Tecnologia (mediante autorização especial da chefa Michela). Fica na Rua do Bom Jesus, é 147, no Recife Antigo. Quem quiser uma dedicatoriazinha básica, estou por lá toda terça e quinta, na parte da manhã. Informo que só posso fazer a dedicatória na hora do recreio, que é de 9h45 às 10h15, ou após as aulas, a partir das 12h10.

Nos três locais, a belezoca custa R$ 25,00.

17 comentários:

Samarone Lima disse...

Harif, preciso do teu endereço, para ver como mando o livro para Sampa.
Por Sedex é meio salgadinho, visse? Posso mandar por encomenda?
Samarone
Simone, o Livro do Desassosego é um assombro. Que professor é esse? Que faculdade?
abraços,
samarone

Anônimo disse...

Sama... manda por Sedex a cobrar!

Anônimo disse...

Samarone, comecei a ler o estuário ontem, é muito bom poder conhecer algumas de suas melhores crônicas. O problema é que comprei o livro ontem e já tem umas seis pessoas na fila de espera pra ler meu exemplar. Acho que vou ter que fazer uma caravana de sulanqueiros pra comprar livros a varejo em seu vital pra ver se o povo não segura o meu, acho que ele é que vai gostar né? hehehe!

Raquel disse...

Samarone, adorei!
Dei boas risasdas!

Anônimo disse...

Sama, vê se o calor põe a tua veia comercial para funcionar. Livros para venda fora do Recife podem ser enviados por sedex a cobrar como mencionou a colega anteriormente. O destinatário paga quando o produto chega e vc não tem maiores atropelos.
Suas crônicas estão ótimas, independente do calor que faz em Recife.

Anônimo disse...

Sama, concordo contigo... o calor tá de lasca! Mas tuas divagações estão ótimas!!! Muito boa a crônica.
Estou quase acabando de ler "Estúario", pois, Fabíola está me precionando para que acabe logo, pois, ela quer ler sossegadamente o livro.
Parabéns pelo belo livro.

Anônimo disse...

Caro Samarone,

adoro ler as suas crônicas, elas deixam o meu dia muito mais leve. E, como a maioria das pessoas fãs do seu trabalho, tenho muita vontade de bater um longo papo com você, e talvez ser um personagem de um dos seus textos. (rs) Ontem, passei pelo ponto de ônibus do Português e te vi, fiquei na dúvida, afinal só o conheço por foto, me deu uma vontade de falar, de ouvir tua voz. E surpresa, lendo a crônica de hoje, tive a confirmação de que eras tu. A tarde, ao sair do trabalho, pego o Alto Santa Isabel e encontro de novo contigo. Dois encontros perdidos, ficou apenas a vontade, a sensação de que perdi a chance mais uma vez de te conhecer. Mas, li em algum lugar, que um encontro que acontece duas vezes, pode acontecer a terceira vez. Então, acredito, ainda vou te conhecer. Sucesso!

Fica com Deus!

Abraços.

Anônimo disse...

Sama,
Não sei de onde vem tanta percepção.
Ave Maria, é cinema em letras.
Continuo insistindo, escreva um roteiro e se inscreva num concurso para a gente ver tudo isso na telona. Você é prá lá de bom, "muito ótimo", como diria um dos que estavam no "Somente mais um feriado".
Amo tu, tatu.
Beijão
Naire

Anônimo disse...

Samarone,

Adorei a crônica. Realmente, o calor que faz em Recife é de "rachar", como se diz lá na minha terra.
Recebi os livros que vc deixou com Néia Valeu!!!!
Sim, já li o “Estuário" é lindo. Dei boas gargalhadas e ao terminar de ler fiquei com a sensação de ser intima dos teus personagens.Talvez, seja pela forma singela dos seus relatos.Você escreve com a alma.Você muito lindo!!!!!(rsrsrsr). Toda felicidade a você.

Conceição Cardozo

Anônimo disse...

A cena: parada da Rui Barbosa, esperando O Torre (desconfio que so tem um, o mesmo, que vai e volta) pra ir pra Faculdade, nos idos anos 80. Espera de mil e uma noites, atraso pra 1a aula, calor infernal. Eis que passa um carro com os vidros abertos (em 80 nao tinha ar condicionado e ninguem era assaltado no transito, as pessoas andavam com o vidro aberto. é isso mesmo, o Recife ja foi assim!), o carro para, uma mão fazendo muitos acenos, Rafael grita, Catarina! Ela desperta do torpor, reconhece o motorista, olha pra cara dos pobres mortais que vao continuar esperando O Torre ja com aquele olhar de desdém e se vai se aproximando do carro, a mão ja na maçaneta, quando Rafael diz, bem alto: tais indo pra Faculdade, né? Eu nao vou hoje nao. Tchau!
Choro, ranger de dentes e volta para a parada. O pior é que nem foi maldade, o bichinho era assim mesmo.
...

Naire, ainda nos anos 80, eu e minha prima cunhamos um neologismo para algo que era melhor do que bom, melhor do que otimo: bótimo!

Beijos, Sama, neste calor de lascar, so de Maguary Kibom!

Ana Paula

Anônimo disse...

O Recife não tem arvores. As arvores são cortadas em razão do medo das pessoas dos danos causados por elas, aos carros, prédios, pessoas. As árvores são muito perigosas...O espaço público é degradado em favor da propriedade privada e dos valores da sociedade do Recife. E acha calor...

Anônimo disse...

Ana Paula, gostei do "bótimo" e da historinha que vc contou.
Vamos fazer uma campanha para Sama se ligar e fazer um roteiro "de cinema" ( bem anos 70 esta expressão)para cinema.
Se cuida, Cláudio Assis!!!!!!!!
Naire

Anônimo disse...

Adorei essa: o sujeito para, chama a amiga e avisa que não vai para a Faculdade hoje.
Esse é dos meus.
Samarone.
Abraços a todos.

Anônimo disse...

Samarona rapaz! =)
Pra variar um texto maravilhoso!
Óa, eu li o texto e fiquei com uma "dúvida existencial" como diria vc.
Pois bem, desci e fui olhar no pitôco que ligar o ar quantas velocidades havia e te digo, a inveja ou a raiva podem ser potencializadas ... na verdade, ao menos no meu modelo sobre 4 rodas, há não só 3, mas 4 velocidades para ao ventinho do ar! =) kkkkkkk

Piadinha a parte, vc tem mesmo um poder de falar até de coisas tristes com poesia, porque parte do que há no texto na realidade é mesmo uma luta que vc traduz em palavras que fazem a gente sorrir, isso é de verdade o beneficiamento da realidade.

Beijo pra tu!

Anônimo disse...

Samarone, dizem que te viram na parada do ônibus, parado (é claro!), em Casa Forte, debaixo desse sol de lascar, com um pesoal fazendo fila pra pegar a tua sombra. Dizem que tinha umas ^três pessoas só na sombra do cabelo...rsrsrsr

Anônimo disse...

Tô lendo hoje pela primeira vez. Achei muito massa a do tricolor perdendo a vaga da sombra do poste! kkkk E a risadinha do cara tb! E vou continuar lendo e sorrindo e sendo feliz!!!

Anônimo disse...

Samarone, impressionante. Era eu lendo e me vendo nas mesmas situações. Meu Deus! Quantas idas e vindas de escola, faculdade, trabalho, afe! Dá-lhe Av. do Forte.

Ana Paula, já passei por uma dessas. Dei altas gargalhadas quando li seu comentário! E o pior, foi a minha sogra! hahhahahahhahhaha. Ela ainda disse claramente, "não minha filha, vou pra Boa Viagem". Quase que eu mudava de rumo só por birra.

Adorei.

Marcela Cox