Espaço para crônicas das mínimas coisas. Estuário é o lugar de encontro do mar com o rio, uma das regiões mais férteis do planeta. Salgado e doce se misturam, como o suor e a saliva. É a desembocadura de um rio, que pode ser muito bem o Capibaribe, que atravessa o Recife, cidade onde vive o autor dos textos, Samarone Lima.
sábado, 5 de maio de 2007
Chuvas, poetas, cartas, livros e outras coisinhas miúdas
Tenho muitas teorias, estou escrevendo um livro sobre o tema, e tenho uma teoria secreta: a de que as chuvas gostam de poetas, de bons livros, e fez um acordo secreto com as goteiras de todas as cidades do Brasil, para alcançar seu objetivo.
Não sei como é na Dinamarca ou no Zaire, mas onde moro, em qualquer lugar desta imensa pátria, as águas nunca caem em cima da geladeira, de uma cômoda velha ou numa panela na cozinha. A goteira cai sempre em cima dos livros, dos melhores livros, de preferência em cima daquele velho poeta, amadíssimo, que fica chorando junto.
As chuvas dos últimos dias aqui do Recife e ajacências, incluindo o Cabo, onde moro, confirmaram minha teoria (a de número 347): as águas acertaram em cheio os meus poetas mais queridos. Roberto Juarroz tomou um banho bacana, está ensopado do cocoruto ao dedão do pé, acompanhado pelo Vicente Huidobro, que já vai pegando sua pneumoniazinha. O Juan Gelman escapou ileso, porque o levei para a escola, e uma aluna o levou para casa, possivelmente a bordo de uma canoa. Fernando Pessoa está em lugar seguro, protegido, ao lado da minha cama, como sempre.
Procuro lascas de sol, réstias, para que eles não peguem uma gripe. No meu mundo, fala-se gripe, o sujeito fica gripado. Virose é modismo, tudo agora é virose. Uma topada é virose, uma ressaca é virose, uma diarréia brara é virose. A Rosa ficou de me emprestar seu secador de cabelo para salvar meus poetas, mas ela vem esquecendo sempre. O pior é que hoje está chovendo pacas (estava doido para usar esse "pacas" hoje, e só agora encaixei a palavra), e as goteiras devem ter aumentado, alcançando meus romancistas latino-americanos, que ficam ao lado dos poetas. Por precaução, trouxe o Robert Arlt para um lugar seguro e botei o Roberto Bolaño dentro de um saco plástico, o risco é a asfixia.
Deveriam inventar o "seguro-livro-de-estimação-molhado".
Continuo intrigado com meus leitores, que gostam de me pegar de jeito. Outro dia, falei que tinham me roubado o Fernando Pessoa, então a Renilde mandou uma caixa completa, até com a edição portuguesa, eu fiquei pasmo, abestalhado, algo de uma beleza comovente.
Na véspera do meu aniversário (3 de maio), cheguei à escola e tinha um Sedex. Eu adoro Sedex, porque sempre chega coisa boa por ele. Era o Alberto Lima, um leitor que mora em Paris. Era uma edição de "Os detetives selvagens", do Roberto Bolaño, que eu tinha comprado em Buenos Aires, e perdido em Fortaleza, quando estava quase terminando de ler. Junto do livro, uma carta linda, que retiro um trecho, mesmo sem a autorização dele:
"Se que, agora, já há edição desta obra em português, mas, antes que você seja molestado pelos seguranças da Livraria Cultura pela tentativa de um eventual empréstimo a longo prazo, mandei buscar este exemplar em Madri para compensá-lo por aquele, um dia, perdeu-se não se sabe como, não se sabe onde. Quem sabe, levado da sua casa por um amigo que se julgou mais esperto ou quis se vingar de um surrupio indevido".
Ele deve ler mesmo minhas crônicas, pois citou bem o "eventual empréstimo a longo prazo".
A carta termina assim: "Paris, le 20 avril 2007".
Macacos me mordem, que presente maravilhoso, Alberto. Estou aqui, relendo aos poucos, saboreando o velho e bom Bolaño, que inventou de morrer aos 50 anos. Qualquer dia, dou um jeito de retribuir tamanha bondade. Por favor, faça-me um favor: imprima uma cronicazinha razoável e leia num café daqueles de Paris. Se chegar um francês amigo seu e perguntar do que se trata, diga que espere um pouco, que você está muito envolvido com a leitura.
Quem não leu ainda "Os detetives selvagens" não sabe o que está perdendo.
Eu que agora sou especialista em rins, por conta da hemodiálise da minha tia, aviso aos leitores: cuidem dos rins de vocês. Caramba, o que tem de gente fazendo hemodiálise no Recife, não está no gibi. E não tem essa de ser velhinho não, tem gente de tudo que é idade e classe social. Fico até preocupado com o Gustavo, meu amigo poeta que mora em Brasília, porque ele gosta de ler, escrever, dar aulas, mas esquece de beber água direto, e só se lembra de molhar os beiços quando sente uma pontada. É o rim, reclamando da seca. Já disse a ele uma fórmula que inventei: cada mijada, um copo d´água. O bicho é ruim, e esquece.
Serve para todo mundo: quando sair água, lembre de repor.
Ah, me ocorreu criar o "Samu do Afeto". A pessoa está lenhada, ruinzinha mesmo, liga para um amigo, que vai de ambulância escutar as dores e não ficar com aquela de dar conselhos, dizendo "você tem que fazer isso", "você tem que tomar uma decisão", "deixe de ser besta", essa lenga lenga de sempre. Escuta, entende tudo, aceita que as coisas estão desse jeito mesmo, dá o ombro, o colo, depois vai embora.
Vou encerrando por aqui. Mais um ano sem declarar Imposto de Renda. Estou preocupadíssimo com esta tal de Super Receita. Tudo que vem com "Super" é super-preocupante: Superbonder, Superman etc.
Mas tem também o Superado, né?
Caramba, hoje estou escrevendo sem bússola, falando de tudo que é assunto, com a velha tradição de não chegar a lugar nenhum. Com 38, o sujeito perde o jeito sério de viver e vai por ali, pelejando.
Só não pode mesmo é ficar cabuloso. Eu não suporto gente cabulosa.
Ps. Acabo de ganhar um parceiro. João Lin, um mago do traço. Vai voltar sempre, promete.
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12 comentários:
Sobre o acordo, não tão tácito assim, entre as chuvas, as goteiras e os livros prediletos; é preciso dizer, à moda de José Dias: você está certíssimo!
Quando morava em Recife e trabalhava no Cabo, na antiga Brahma, atual Ambev, fui supreendido, ao voltar da fábrica debaixo de uma chuva torrencial, lá pelas 23:00 horas, que os livros de Hobsbawn estavam encharcados, e, o que é pior, eles estavam há poucos dias na minha estante que teve a desdita de estar localizada, não embaixo de uma goteira, mas de um verdeiro "ladrão", por onde a água escorria aos cântaros.
Seu amigo Gustavo, o poeta, andou intrigado com meu comentário lá no blog dele, achou que fôssemos amigos, que eu trabalhasse no Congresso Nacional, que enfim, eu fosse um funcionário público. Ele está enganado, ao menos por enquanto.
Um abraço.
serve beber cerveja?
Feliz aniversário Sama, Encontrei Serjão no CinePe e mandou um forte abraço. Também lembrou daquele projeto dos botecos! hehehe será que sai? só faltam as fots não é? abrs, rlobo
Amei a crônica todinha tres oitão!
Mesmo sem bússola... rss
Parabéns pelo niver e parabéns pela idéia do Samu do Afeto! Vou divulgar isso. De repente a gente consegue reverter o estado terminal de espírito de muita gente amiga, né?
Grande beijo pra vc e felicidades sempre!
e eu, que costumo tomar água como remédio, quando li a tua crônica fui direto sorver um novo copo. espero que me sirva como prevenção... rss
ah! já ia esquecendo:
"Com 38, o sujeito perde o jeito sério de viver e vai por ali, pelejando."
amei isso!
.
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bjo.
Sama, fidiraparia....tu é cabuloso p/ carai...fica falando e puxando a camisa do cara...
Óia..tá melhorando..a crônica de hoje tá boa..Esse negócio de bb água me deixou preocupado...acho que meu organismo está desertificado..
João Valadares
Sama Peruketz (poderia ser seu codinome em uma tradução ao russo),
Não sei se foi tu, ou se foi outro energúmeno: esse cara é cheio de frescura. bebe com um copo de água do lado.
o cara mija mais. mas vale a pena. né não?
J.
Eita, que eu gostei desse jeito livre de escrever. Um amigo de nome Alexandre me apresentou seu blog. E agora, danou-se, estou viciada, espiando os escritos de sua ciberpena. E sobre:
"Com 38, o sujeito perde o jeito sério de viver e vai por ali, pelejando." Lembrei de Neruda que disse: "È tão difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas quanto os poetas se tornarem razoáveis". Então, deve ser da natureza dos poetas sair pelejando, sem bússula, sem paradeiro...
De vez em quando eu saio assim, ou então tomo porre (de cana e poesia) dos meus poetas preferidos que por enquanto estão a salvo de gripes e pneumonias nas paragens agrestinas...mas as chuvas estão chegando com seu gosto por poetas, vou ver o que faço para salvá-los
oxe, joão é massa.
já visse a ragú nova? ficou linda.
hehe
Sama, o texto tá lindo. A parceria com o desnhista, então...
Um abraço do mano PH
Por falar nisso tudo...sama, as camisas dos barba eram todas tamanho G de Gigante mesmo????rssssssss, já lavei a minha algumas vezes e agora que ela chegou no joelho. Êita, hora da água.
Sama, meu querido, vou seguir seus conselhos e levar uma daquelas crônicas bem arretadas pra um cafezinho que tenha cerveja. E sem goteiras. Ao final da leitura, vou responder ao amigo francês, que, sem sucesso, tentou me interromper no meio dela: "Esse teu rio Sena tá fraco, visse, véi? Estuário bom é o do Capibaribe". Abração! Alberto
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