Espaço para crônicas das mínimas coisas. Estuário é o lugar de encontro do mar com o rio, uma das regiões mais férteis do planeta. Salgado e doce se misturam, como o suor e a saliva. É a desembocadura de um rio, que pode ser muito bem o Capibaribe, que atravessa o Recife, cidade onde vive o autor dos textos, Samarone Lima.
terça-feira, 15 de maio de 2007
O tempo
Com ilustração de João Lin
Aconteceu esta semana. Resolvi umas coisas, fiz o arroz com feijão do cotidiano, e no final da tarde, já anoitecendo, me vi perambulando, com um enorme guarda-chuva na mão. Iria para o Cais de Santa Rita, mas estava na Agamenom Magalhães, quem não é do Recife, não vai entender nada. É uma boa caminhada.
Fui andando devagar, que meu projeto principal, agora, é tartaruguear. Pocot, pocot, pocot.
Então me surgiu uma vontade íntima, a de dar uma passadinha na Católica, a Universidade onde já estudei, penei para pagar as mensalidaded, menti para dédéu, para conseguir uma bolsa de 50%, o lugar onde me formei, iniciei minha vida de jornalista, e depois voltei, seis anos depois, para ser professor.
Fui lá, como aqueles animais que buscam um lugar do passado para encostar um pouco o corpo. No quinto andar, encontro o velho Fradique, com o jornal "O Berro" debaixo do braço. Lembrei de quando fui editor do jornal, ganhei vários exemplares, conversamos umas lorotinhas, depois passei no departamento. Arakitan, o tricolor, me recebeu com um sorriso.
"Professor, o senhor por aqui..."
Papeamos uma aguazinha básica, depois apareceu o Múcio, ficamos por ali. Falamos de futebol, renovei minha fé numa gloriosa campanha do Santa Cruz rumo à Primeira Divisão, Múcio, adversário ferrenho, evitou chispas.
E depois segui. Fui à rua de Lazer, á famosa "rua de lazer", comprei um CD falsiê por R$ 7,00. Depois fui para o Bloco A, onde iniciei meus estudos de jornalismo. Ali, peguei muitas filas, ali, penei para pagar as parcelas da Católica, ali conheci vários amigos. Por onde andará o velho e bom Waldemir Leite?
Então, apareceu um café. Um café é sempre um lugar bom para acalmar o espírito, tomar algumas notas. Sem cafés, o mundo seria mais desumano. Em vez de ter tido dois bares, eu, grande bobocão, deveria ter tido mesmo era dois cafés supimpas. Agora é tarde, muita cerveja passou debaixo da ponte.
Estava anotando umas besteirinhas, quando me ocorreu algo: eu tinha pisado naquele lugar há vinte anos!
Olhei para mim, mesmo sem espelho. Estou com 38, cheguei ali com 18. Não vou chegar para os leitores com aquele papinho básico de "o tempo passou rápido demais". Foi apenas uma constatação. Duas décadas me separavam daquele Samarone classificado na última da última repescagem do Vestibular.
Então fiquei parado, serenando o pensamento. Pude me ver, apressado, providenciando os documentos para a matrícula. Estava começando a lida com as palavras. Passei tão rápido por mim, que nem me vi direito.
Depois me vi no Serviço Social, contando uma mentira cabeluda, de que tinha sido criado pela minha avó, que não conhecia minha mãe (ela que não leia esta crônica), que não tinha como pagar a universidade etc. Deu certo a lorota, e consegui 50% de desconto.
Neste momento, tinha um vento forte e bom. Fiquei pensando em duas décadas. Andei por tanto canto, morei em tantas casas, fiz tantas coisas, conheci tanta gente, acertei, errei, encantei, desencantei, enfim.
Ultimamente, os alunos da Católica vieram me entrevistar, por conta dos três livros publicados, as crônicas no Blog, essas coisas de quem lida com as palavras.
"Qual a diferença do Samarone de vinte anos atrás para o de hoje?", me perguntou uma delas.
Eu não soube responder. Certas perguntas são muito difíceis. Falei várias coisas, e não consegui dar conta da pergunta.
"No próximo encontro, você me responde", disse a moça, educadamente.
O tempo parece um amigo que envelhece com a gente, mas às vezes se esconde nas dobras da memória.
Para meu amigo Waldemir Leite, que nunca mais encontrei.
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25 comentários:
Deve estar perambulando por Olinda com aquele visual de Jesus Cristo, transmitindo paz em volta. Nas horas vagas, trabalha na TV Jornal, que ninguém é de ferro? E Valéria "Virgulino"? e Quininha...? E Adriano Delson? Este eu acho que merece uma crônica especial, Sama
a la shopenhauer... um viajante, sua sombra e a bengala-guarda-chuva. a diferença é que tua tristeza não é alemã.
g.
adorei
"o tempo parece um amigo que envelhece com a gente, mas às vezes se esconde nas dobras da memória".
ufa! ei, ei, ei.
un petit bisou pour toi
olá Sama,
estudei na Católica há quase 20 anos (no caso, engenharia) e no momento em que me fiz a mesma pergunta: "qual a diferença...", meu deus, como doeu! No momento acho que prefiro ficar sem a resposta... Eduardo.
Essa crônica merecia ao menos um trecho do poema Há vinte anos... de Fernando Pessoa1
um abraço.
Oração ao Tempo
(Caetano Veloso)
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo imigo
Tempo tempo tempo tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo.
Fui na Toca da Joana. O tempo vence toda ilusão. Beijo, Poeta.
Adri
escreve uma pra mim?
ô, rapaz. acho que ando gazeando poucas aulas. n vi meu entrevistado perambulando por aí. e olhe que eu vivo naquele café da rua do lazer. e múcio é o ícone, vivo tirando onda com ele por causa de futebol. exceto essa semana, que foi ele quem tirou comigo. u.u'
acho que agora vc consegue responder... =) e eu tô ansiosa pra escutar.
um cheiro,
LARISSA
Sama,
Bela crônica. Faz parte do nosso "envelhecer" refazer visitas a "nossos" lugares do passado, para tentar compreender o que passou em nossas vidas. Também já revisitei colégios e faculdades para um reencontro com o "eu" mais jovem e com antigas e boas lembranças. Acho que muita gente também passa por isso.
Sobre esse tema já criei alguns poemas e crônicas e deixo aqui um dos poemas que ilustra essa passagem.
A IDADE DO TEMPO
Há tempos
o tempo me fascina.
Qual a idade do tempo?
Ora, o tempo não tem idade
mas a tudo faz envelhecer
Então faço um download do tempo
E enquanto é baixado o arquivo
é possível ver o tempo passar
E ao final do arquivo baixado
Faço um replay desde o início
Então descubro a viagem no tempo
E no tempo continuo a viajar
Veja este e outros poemas sobre o TEMPO no link:
http://au.blog.360.yahoo.com/blog-PzqEEvc7cac1X.K8n1A-?cq=1&tag=poemas&l=21&u=25&mx=28&lmt=5
Abraços,
JJ
Sama,
"passei tão rápido por mim que nem me vi direito".
Essa dá para pensar...e muiiiito.
Beijos
Ave, eu tenho até medo de voltar na Católica. Entrei pouco depois que vc se formou e saí, um semestre antes de vc entrar como professor. Tive estagiárias que eram suas alunas. Mas voltar lá, me dá medo. Vai que eu encontro comigo?
Sama, a cada dia você emociona um pouquinho mais esse meu coração tão sacudido pela vida. Também estudei na Católica quando ainda não se dizia Unicap, nem tinha rua de lazer, nem aquele conjunto enorme de prédios depois da rua de lazer. Padre Torres era o diretor e só existia aquele bloco que tem o nome dele e aquela casinha lateral, que foi mantida inteirinha, onde funcionava o curso de Jornalismo (minha irmã, Beth Salgueiro formou-se ali). Como você, também entrei lá com 18 anos e agora minha filha repete a história. A crônica é linda como só você sabe escrever e a frase - "Passei tão rápido por mim, que nem me vi direito" diz tudo que a gente sempre quis dizer e nunca encontrou as palavras certas.
Parabéns, mais uma vez, poeta!
Um cheiro de mãe.
QUERO fazer um registro sobre a arte do joão lin, que rapaz talentoso, que imaginação delicada e sutil e maravilhosa!!! uma arte fina em todos os sentidos...
onde vc encontrou esse joão lin, sama? apresente-nos e se já apresentou é culpa minha que perdi.
abraço, g.
Sama, como já disseram, valdemir tá lá na TV Jornal, e é um das figuras mais doces que habitam aquele lugar... Com cabelinho de anjo, olhos lindos e voz calma!
Nossa que delícia essa crônica para quem saiu há 10 meses da Unicap e mudou completamente a paisagem: Brasília.
Obrigada por ser a ponte entre minha cidade amada e a contraditória Brasília, de onde estou tentando extrair a poesia que vivi durante 23 anos em Recife.
Beijos
Samarone,
Belíssima crônica, parabéns!
Mas, essa frase "Passei tão rápido por mim, que nem me vi direito", pensando no tempo ou na linha do tempo é só reflexão.
Conceição Cardozo
Estimado e não conhecido Samarone.
Tenho alguns amigos que te conhecem, mas eu não tive a oportunidade, apesar de achar que uma vez cruzei com você num festival de cinema francofõnico na rua do Apolo. Já leio este Blog há uns dois anos. Sou um leitor caladinho, mas posso atestar que li TODOS os posts. Camilla Chidid, sua aluna da católica, ficou de me empretar o CLAMOR, mas você sabe como são as pessoas com os livros. Gostaria de informá-lo que, por um punhadode influência de Vossa Senhoria, eu pretendo ser escritor um dia. Não se sei se isso vale muito para você, mas eu ficaria deveras feliz se qualquer camarada dissesse que faria alguma coisa por que eu influnciei - sobretudo escrever. Por outro lado, informo que não sou muito fã de idolatrias, mas eu me devia escrever alguma coisa há algum tempo. Pretendo lançar meu primeiro livro aos 40 anos. Quando for editá-lo, procurarei você para pegar algumas dicas. Agradecido. Ass.: Erik Liver.
Apenas faltar informar, (e que agora li), que quem me indicou este blg foi justamente aquela Ana Flávia de alguns comentários acima! Menina danada essa!
Também tenho a impressão que Chidid está ali em cima!
que bonito Samarone.
eu faço jornalismo lá na católica... parece que escrevesse o que vou sentir daqui a vinte anos...
=)
Talita
samarone,
como é bom te ler. sim, estás presente em cada palavra, cada vírgula, cada verbo de teus textos.
sou a leitora de número 67(pelos meus cálculos!).
como vários já disseram, tb fui aluna da católica. tb moro longe(estou em são paulo)e ao ler o que tu escreves, eu sinto um pouco do recife.
fui aluna da psicologia, mas cruzava contigo pelos corredores da universidade. nos 'batemos' em um jogo do santa contra a portuguesa aqui em sampa, tb.hahaahah! fui frequentadora do la prensa, do garrafus... sei lá, esses encontros da vida.
é isso, meu querido. permita-me chamá-lo de querido. é assim que te sinto. uma pessoa querida virtualmente.
toda minha admiração,
Lê
Pois é Samarone. Há muito tempo que venho passando pra dá uma olhadinha no teu blog, mas desta vez foi especial.
Você fez uma retospectiva do que viveu ao entrar no curso de jornalismo na católica. E hoje, vivo quase as mesmas experiências
É bom quando o passado e o futuro se encontram...
Foi um prazer conhecer autor de um dos meus livros favoritos( Zé), pelos corredores da universidade.
Só depois que me dei conta...
Poxa, é Samarone!!!!
Bjão
Sama, chorei!
Apenas uma crônica tua para me fazer sentir saudades da Católica...e olhe que deixei a universidade há apenas um ano...hahaha.
Falar nisso. Vai sair reedição de Zé?
Se eu não vou à unicap, encontro minhas coleguinhas de turma aqui nos teus comentários...ahaha
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