Está no livro "Estuário", mas como muita gente não encontrou o livro, republico aqui.
Conheci Epifânio Rodrigues semana passada, no mercado da Boa Vista. Eu estava debaixo daquele enorme pé de jambo, tomando uma cervejinha e pensando minhas infinitas besteiras, quando escutei o comentário vindo da mesa ao lado.
“O amigo está muito sério. Algum tumulto no coração?”
Desconversei, falei algo sem objetividade, tentando disfarçar o óbvio, e senti que o camarada ao lado parecia boa gente. Ficamos conversando uma lorota qualquer por alguns minutos, e pouco tempo depois ele veio para minha mesa. Se apresentou com a formalidade de um visconde:
“Epifânio Rodrigues, seu servo”.
Com a voz sussurrante, explicou que seu nome tinha mudado sua vida.
“É que meu pai era poeta e achava “epifania” a palavra mais linda da língua portuguesa”.
Imediatamente esqueci meus problemas, os tumultos se acalmaram e o sábado se tornou alvissareiro. Contei que meu nome vinha de um jogador de futebol, que, em 1969, jogava pelo Fluminense.
“Deste sorte”, disse meu amigo. “Naquele time de 1969 tinha o Cafuringa também. Já pensou? Ao invés de Samarone, tu poderia ser agora Cafuringa”, disse ele, soltando uma enorme gargalhada, acompanhada de um acesso de tosse que parecia o segundo final, antes de uma morte gloriosa, no mercado da Boa Vista.
“Cafuringa, qua qua qua”, ficava repetindo epifânio.
Já recuperado, ele bebeu mais um gole da cerveja (geladíssima, como em seu Vital), e me confessou, falando tão baixo ao pé do ouvido, que quase não o escutei.
“Na verdade, meu pai achava que seria uma menina. Ficaria perfeito para uma menina – Epifânia Rodrigues. Mas veio eu, e fiquei Epifânio”.
Achei bonito o “veio eu” e a aceitação do destino do meu amigo, um magro clássico, na casa dos 55 anos, pele curtida por algum sol da vida, barba por fazer. Demos o desconto na idade, porque sou péssimo para acertar a idade dos outros e reconhecer bebês. Nunca sei quando uma criança puxou ao pai ou é a cara da mãe. Geralmente minhas opiniões são tão fora de propósito, que ultimamente resolvi ficar no lugar comum:
“Mas é um bêbê lindo”, é tudo o que digo. Chega de vexames.
Logo, pela minha teologia dos rostos alheios, Epifânio poderia ter de 55 a 65 anos.
“E o que faz Epifânio Rodrigues?”, perguntei, enquanto ele riscava o isqueiro e acendia mais um cigarro como seus gestos de embaixador.
“Fiz a idiotice de trabalhar muito e agora recebo uma aposentadoria que me deixa viver um pouco acima da miséria. A sorte é que me separei há muitos anos e os dois filhos estão criados. Posso me dedicar ao ofício de colecionar epifanias, que meu pai me deixou de herança”.
Depois de um enorme silêncio, ele me olhou com aquela cara de boêmio integral e completou:
“Pode botar ai na tua coluna, que de vez em quando leio: Epifânio Rodrigues, o colecionador de epifanias”.
Eu não estava acreditando, até que ele pegou um grosso caderno, que estava dentro de uma bolsa surrada, vinda certamente dos anos 70. Era sua coleção. Colocou em cima da mesa e começou a folhear.
“Muita gente não sabe sequer o que é epifania, quanto mais perceber quando ela está acontecendo”, disse, com seus dentes amarelados.
“Epifania é uma aparição ou manifestação divina”, completou.
Ele começou a folhear o grosso caderno.
“Rua da Aurora, entardecer do domingo. Estou na janela do meu apartamento, olhando o rio Capibaribe. Um homem sobe em sua canoa e começa a atravessar o rio, muito lentamente. Na metade do caminho, ele abandona os remos e começa a chorar. Ele chora muito, e o barco segue deslizando pelo rio, que está muito cheio por conta das últimas chuvas”.
Ele me olha e completa:
“Sabe qual era o nome do barco?”
“Nem imagino”.
“Amorzinho”
Epifânio solta um longo sorriso e completa:
“É ou não é uma epifania?”
Fico quieto, parado. Não sei que facilidade é esta que tenho para conhecer tanta gente diferente. Ele pede mais uma cerveja e avisa que vai ao banheiro. O caderno fica em cima da mesa. Eu fico atormentado, querendo folhear o caderno, mas sei que é muito feio fazer isso. Não, na verdade eu queria mesmo era pegar aquele caderno e sair correndo dali. Passaria três dias lendo a coleção de epifanias do meu amigo Epifânio, matando a curiosidade de uma vida dedicada a guardar momentos divinos. Resignado, aguardo o retorno do mijão.
“Veja só esta, veja que maravilha”, diz.
“Noite da quarta-feira de cinzas. Estou dentro de um ônibus cheio de foliões, todos cansados e bicados, quando entra um senhor de uns 70 anos, com um saxofone. É um músico, exausto, que encerrou sua participação no carnaval. Ele fica sentado lá na frente, muito quieto, quase cochilando, até que um mulato muito forte dá um grito – ô vôvô, toca ai uma música para a gente se alegrar”.
Epifânio me olha com o rosto iluminado, depois segue lendo.
“O senhor abre a caixa do sax, encaixa a boquilha e começa a tocar o hino de “Elefante”. O ônibus é tomado por uma corrente elétrica. Todos cantam e dançam alucinados. Depois de tocar a canção, o senhor guarda pacientemente o sax, encosta a cabeça na janela e dorme”.
Meu amigo puxou mais um cigarro, deu suas longas baforadas, me olhou assim, bem atentamente, e perguntou:
“Qual foi a última coisa divina que te emocionou de verdade?”
Fiquei em silêncio e pensei nos últimos dias, tão intensos. A epifania foi na verdade uma longa conversa com alguém que reconheceu minha alma, e se deixou reconhecer. Estávamos os dois, frente a frente, nos revelando completamente. Havia beleza e verdade, o acolhimento de duas solidões pacificadas no meio da vida. Não cheguei a comentar nada com meu amigo
Epifânio ficou me olhando com um sorriso maroto.
“Eu sabia que era alguma coisa neste coração”.
Pegou o caderno, guardou na bolsa, me deu a mão e disse que precisava partir.
“Tenho ainda hoje dois colóquios com amigos, para resolver os graves problemas da humanidade. Um no mercado da Encruzilhada, outro na Madalena. Você sabe, eu sou um homem de mercados e a humanidade está muito confusa”.
Deixou cinco reais par ajudar a pagar a conta.
“Voilá”, disse, com um aceno rápido.
E partiu, me deixando também epifânico, naquela tarde do sábado.
Tomei mais duas cervejas e voltei para casa, com as mãos nos bolsos e chutando pedrinhas.
Para Epifânio, claro.
7 comentários:
eu amo o que você escreve. acho que se voce não existisse teria de ser fabricado fosse samarone, cafuringa ou qualquer outro nome.
esse seu coração é realmente arretado não falo do físico mas do outro, de que será feito?
Agora voce tem uma concorente, que voce mesmo criou "turbantedanaire", que eu também amo. engraçado sei que são voces e não consigo me identificar.xerões pro'ceis.
Sama, essa é uma das melhores!! antes, tu escrevia até direitinho.
João Valadares
Sama, quanto mais leio, mais fico facinada... identifico-me, e também ensaio no coração epifanias que andam presas sem coragem de ganhar mundo. te mandei um e-mail, tu recebeu? preciso do telefone de Seu Ricardo. quero ver se é possível ele me pegar no aeroporto. tô chegando... beijos, Vania
Esta é a minha crônica favorita. Guardei ela na época que ainda escrevia no jc on line...Aliás, guardei várias. Fiquei com medo de que não escrevesse mais em algum site. após ter parado de escrever as crônicas lá...Então numa bela noite no Garrafus, aconteceu uma "epifania", ao receber num pedaço de papel o nome do novo site onde escreve os textos.
Não desapareça! Hehe Beijos
há muito tempo, quando essa cronica foi publicada no jc oline nos encontramos num corrego da areia, certamente vc nao lembra de mim, te conhecia além das cronicas por um jornalista muito amigo Marcel Tito.
relendo o texto sinto uma mistura de saudade e alegria, da cidade que esta tao longe de mim e da possibilidade que é religar-se com o que trancende atraves das palavras. Sem dúvida alguma passei a perceber as epifanias de minha vida a partir daí. Grande abraço
Sama,
Esta foi a crônica que Perrusi republicou no Blog dos Perrusi e que me fez conhecer seu blog.
Aliás, o Estuário é mais uma epifâna.
Um abraço,
Dimas Lins
www.torcedorcoral.com
Divina, tuas palavras. Presente do dia! bjs. dani
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