Hora do almoço, Centro de Tratamento Renal, em Prazeres. É meu turno para acompanhar tia, em sua nova "Diálise Peritoneal". Na tampa da quentinha, está escrito "guisado", e já sei que tia não vai nem cheirar. Acompanha um copo d'água, um copo de guaraná e uma colher de plástico.
"Olha que almoço delicioso, tia", digo, teatral.
Ela nem olha.
Sem fome, tampo a quentinha e a encosto por ali. Daqui a pouco, chega Rosa, a fiel escudeira de tia, para me render. Irei ao Recife, resolver coisas. Rosa chega com o almoço de tia, feito em casa, do jeitinho que ela gosta. Até o purê, feito em casa, parece que a batata é outra.
Rosa já almoçou, tia não vai comer do guisado, eu não estou com fome. Não vou deixar a comida ficar ali, porque vai estragar.
Resolvo levar a quentinha, para dar a alguém. Boto num saco, o mesmo que Rosa usou para trazer a comida de tia, e saio para pegar o ônibus.
No caminho, um operário dando duro, mas estava com cara de cansado, não de fome. Esse não.
Entro no ônibus "Conjunto Marcos Freire", que está cheio, mas com duas vagas para sentar. Acomodo a quentinha em cima da minha bolsa, no colo. Reparo nas pessoas, encontro um possivel ganhador do rango, mas seria esquisito oferecer almoço para um sujeito dentro de um ônibus. O medo de levar um fora me assombrou.
O ônibus serpenteia, vai chegando ao centro do Recife, depois passa pelo cinema São Luis, até desço, ali na avenida Guararapes.
Passo por dois vendedores de pipoca. São 13h33, hora da fome braba, em qualquer lugar do mundo. Dois vendedores estão muito animados, vocês não.
Então vejo um senhor meio curvado, pele curtida pelo sol, a pele de chinelos bem gastos. Está com um imenso saco de pipocas pendurado aos ombros. Usa um boné gasto, não vi o que tinha escrito no boné.
E se ele se sentir agredido, por alguém oferecer comida? Fui caminhando, dosando meus pudores e meu desejo besta de repartir algo, alojado dentro de uma quentinha.
Venci meus temores. Passei por trás dele e perguntei:
"O senhor já almoçou?"
"Até agora não", respondeu, se virando em minha direção.
"Tome uma quentinha. É comida nova, pode acreditar".
Ele botou o saco de pipocas no chão e pegou o pacote com a quentinha. Olhou para mim e disse muito obrigado, duas vezes. Antes de sair, olhei bem para ele.
Que olhos tristes, meu deus.
3 comentários:
Samarone, que crônica mais linda!
aliás, outro dia conheci um aluno seu, Lindinaldo. Conversamos sobre Clamor, falei que era sua admiradora, e ele me fez um convite pra assistir uma aula sua.
Me aguarde! =D
de tudo na vida, há duas coisas que dificilmente alguém de olhos tristes se nega a receber, uma é amor, a outra um almoço repartido com amor.
Muito boa, a crônica. Valeu!
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