Fui inventar de escrever minhas peripécias em uma boate gay em Salvador, uma noite divertidissima e animada, mas levei uma sova dos leitores. Depois fui a um terreiro de candomblé, mas não tinha nada funcionando, o máximo que vi foi uma oferenda junto a uma árvore centenária. Anotei os dados sobre o terreiro e esqueci o papelzinho em algum lugar, fica para a próxima.
Para não gerar mais polêmicas, coloco no ar anotações sobre minhas errâncias nas rodoviárias do Brasil.
E me desculpem a demora. É que o blogspot está fazendo modificações que estão me deixando louco.
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Memórias da errância (anotações de um homem em rodoviárias)
O auto-falante da rodoviária de Salvador toca Whitney Hilston (não sei se escreve assim), um negócio arrastado que não entendo bem, mas sei que ela diz que está amando alguém para sempre. Agora, o Lionel Richie canta "Say you/Say me". As tvs, em todas as lanchonetes, estão no mesmo canal. O programa de agora não me interessa. Aliás, geralmente não me interessa nunca.
É preciso tomar um café, aguardar a hora do ônibus. Nas cadeiras de plástico duro, há gentes a dormir. Uma senhora sonha, enrolada em seu lençol. Não há aquele aviso com a voz impessoal e monótona dos aeroportos. Não há ar-condicionado, escada rolante. Definitivamente, rodoviária é lugar de remediados.
Rodoviária, lugar de bocejos, cansaços, grandes pacotes. Lugar de banheiro ruim. Rodoviária, lugar de revistas de fofoca e jornais, raramente de livros.
Rodoviária, e só nelas, se pode tomar uma sopa a R$ 1,99, com direito ao pão e molho de pimenta. Lugar de pobres, remediados, desolados, dos que vão e vêm, levando suas bolsas remendadas. Lugar de homens com velhas camisas do clube preferido, pouco importando se caiu para a terceira divisão campeonato nacional, como é o caso do Bahia.
Não sei, nunca saberei e já não me interessa saber, quantas rodoviárias já passei. São centenas, de todo o Brasil, fora uns 16 países que já conheci. No TIP, a distante e improvável rodoviária do Recife, duas escadas rolantes estão paradas há muitos meses. Tudo ali parece que está parado. Temos uma das rodoviárias mais abandonadas do país. É feia, suja, mal iluminada. A rodoviária de Fortaleza, meu deus, é tão clara, elegante, perto do centro, com um monte de lojas. Dá uma alegria chegar em certas rodoviárias, apesar da sanha dos taxistas de sempre.
A de Maceió tem mesinhas espalhadas e até café expresso. E tem vento, muito vento. Lá, se você pedir um cinzeiro, o garçom vai informar que a faxineira quebrou todas as xícara e vai providenciar um copo de plástico com água até a metade. É o cinzeiro. Tem sopa também, mas não consultei os preços.
Na rodoviária de Salvador, podemos comprar algo no "Pé a Pé Calçados". Mas uma latinha de Nova Schin sai por R$ 2,20. Não sei por que cargas d'água, o rapaz da limpeza usa um possante apito, na rodoviária baiana. Lá pelas tantas, ele solta um logo apito, que deve ser para a turma apressar o serviço. A pressão psicológica funciona. Pelo menos comigo.
Cada rodoviária tem seu temperamento. Em algumas, o embarque é vigiado e o motorista exige ver seu documento. No Rio, já fui impedido de viajar porque estava sem a identidade, tive que ir em uma delegacia, dizer que tinha sido roubado. Em João Pessoa, o sujeito nem olha para sua cara, mas não lembra de dizer "boa viagem", só quer todo mundo embarcado.
Muitas e muitas vezes estive nas rodoviárias paulistanas do Tietê e Bresser. Lugar de nordestino chegando e saindo a todo momento. Lugar de encontros, lágrimas, saudades.
Rodoviária, lugar dos diálogos familiares.
"Se eu fosse vocês, vendia aquela casa e vinha morar na Federação Garcia".
"Como é que ela gasta nove mil reais para o Fernando comprar uma moto?"
"É dinheiro, né?"
"Ah, menino, esse nosso ônibus nem se preocupe, vai vazio, vazio, vazio".
"Entendeu? Você vende aquela casa e compra outra. Mora naquela longidade..."
Foi "longidade" mesmo e achei lindo.
"É, padrinho..."
"Vocês são novinhos agora. Daqui a mais alguns anos, o drama vai chegar. Vai ser dureza ficar ali".
"Não vou lá porque é longe. Para a Milene, tudo é fácil. Ela fala umas coisas e faz outras. E ela é mais nova que eu!"
Rodoviária, lugar de diálogos intermináveis, de conselhos dos mais velhos, que escuto bem, tentando aproveitar para meu desregramento clássico.
"Mas fique calmo. Não fique nervoso não, que tudo é providência de Deus".
Ora, mas isso eu também já sei.
Rodoviária. Lugar das errâncias brasileiras. Lugar que não se deve chegar em cima da hora, correndo para entrar no ônibus com destino certo.
Lugar para se chegar mais cedo, pedir um café ou uma cerveja gelada e olhar o povo brasileiro em movimento. É onde se pode escutar um derradeiro diálogo, antes de voltar ao Recife, que é exatamente a faceta de nossa gente:
"Tu trabalha em que mesmo?"
"Auxiliar de serviços gerais".
Silêncio.
"É limpeza, né?"
"É limpeza".
13 comentários:
Lindo, lindo, lindo o texto de hoje. Uma ternurinha só.
Beijo grande pra você, barbudo querido.
Também, tudo que Samarone escreve é "LINDO, LINDO, LINDO" ? Esse tipo de comentário (apaixonado) compromete seu trabalho, que, em sua grande maioria, é BELO MESMO. Fico preocupado com essa exagerada "incondicionalidade" dos seus admiradores, nos quais me incluo. Até nos textos, como o anterior; nada elogioso. Cuidado, Samarone. Você é um Grande Cronista, e Poeta. Não se deixe enganar. As observações feitas, por exemplo, por "Homomero Lacerda", e, (pasmém!),"João Valadares", à cronica anterior, não estão à altura de sua inconteste sensibilidade.
Grande abraço.
Sama,
Falando de gays ou rodoviárias, sua marca está sempre lá. Não fuja de temas e nem tenha medo das críticas...afinal, elas só aumentam o nosso interesse pelas suas crônicas, que sempre são sobre coisas do nosso cotidiano (gays, rodoviárias, etc).
Com a mania do politicamente correto, já cansei de ver tal cena em aeroportos, na hora do embarque:
- Carinha da cia aérea: "Convidamos para o embarque no vôo tal, tendo prioridade crianças, gestantes e melhor idade"
- Velhinho ao meu lado: "Não dão mais prioridade aos velhos não ? Que coisa errada"
É.....tudo que pende para um extremo está é pendendo para sair do mapa ! Ainda bem.
Grande abraço.
Um esfregão por favor! E sigamos com a limpeza! Sama forte abraço!
Concordo com o “anônimo” acima que fala que as coisas que pendem para um extremo estão pendendo para sair do mapa... Afinal a patrulha do politicamente correto não percebe que esta tentando derrubar os preconceitos existentes, criando novos preconceitos, e, lutando por liberdade de espaço, quando quer retirar a liberdade dos outros. Exemplo disto são as pessoas que acham lindo e se sentem orgulhosas de sair com camisetas escritas com "100% negro", mas seriam capazes de xingar de nazista e de racista alguém que usasse uma camiseta com os dizeres "100% branco"... Os diretos não deveríam ser iguais? Porque lutar para que os homossexuais tenham direitos iguais aos heteros, se retiramos dos heteros os seus direitos de demonstrar-se assim? Ou será que consideramos absurdo que alguém seja sensível e tenha uma alma de poeta como Samarone e seja hetero? Será que só os gays podem ser sensíveis? Isto não é um preconceito, e dos grandes? Obrigada Sama por ser macho e sensível, continue assim.
Beijos.
é muita loucura, é muita locura...
gay é gay, homem é homem e cachaça não é água não.
quem quiser dar o cu que dê, quem quiser ficar que fique, quem quiser fazer sabão que faça.
a gente é tudo igual e acabou-se. viva a liberdade de todos, inclusive dos espermas.
... ... ...
nossa mãe, o tema mudou mas o assunto continua o mesmo. a turma tá querendo mesmo exacerbar as diferenças... que coisa, né? o que está havendo?... Será que a mesma polêmica nos comentários sobre a "aventura" do sama continuará na próxima crônica?... que coisa interessante de ver e de ler...
Acho que estou precisando é de umas férias...
Samarone
Férias em Salvador, Samarone? Saudade do extintor ou da rodoviária?? Ahahah.
Mais férias?
Samarone,
Isto só é uma prova do quanto as pessoas lhe amam!
beijos.
... isto é só a prova de que a gente recebe aquilo que dá ...
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