terça-feira, 26 de junho de 2007

Carta ao Procópio



Procópio e a turma do Coque, discutindo a criação da biblioteca

Procópio, meu velho

Ainda está fresquinha na minha memória a lembrança da visita à Biblioteca Popular do Coque, junto com os alunos da Kabum!, naquela terça-feira chuvosa, dia 12 de junho. A idéia de vocês, que fazem parte do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), é criar um clima de cultura, acesso a livros, ao conhecimento, para tentar mudar a realidade de um bairro que vem sofrendo com a violência. Mesmo com dificuldade, vocês conseguiram alugar uma casinha, pintar, refizeram o telhado e conseguiram doação de livros.

Lembro que você era um dos mais empolgados. Falou da importância da mobilização dos jovens, da esperança de conseguir ampliar o trabalho, fazendo com que as crianças da comunidade começassem a frequentar o espaço. Seus olhos brilhavam, meu velho, e sentados no chão daquela pequena casinha azul, em meio ao que os recifenses consideram "o bairro mais violento da cidade", compartilhamos esperanças. Ao seu lado, Sérgio, Irandir, e outros jovens que não aceitam a violência policial, que falaram para os jovens da Kabum! que pretendem trabalhar quatro eixos: ética, consciência, moral e educação.

Saímos da Biblioteca debaixo de chuva, e os jovens alunos da Kabum! ficaram impressionados com a dedicação, a vontade, o desejo de reverter esse quadro de violência que toma conta do Coque.

Hoje, Procópio, fiquei sabendo que teu São João foi triste. Que na sexta-feira, enquanto você e vários amigos se divertiam, defronte de casa, duas viaturas da Rádio Patrulha chegaram, e colocaram todos contra a parede. Isso, Procópio, jamais seria feito numa casa em Boa Viagem ou em Casa Forte, onde morei.

Soube que você pediu para baixar o som, porque não estava escutando o que os policiais queriam, mas uma policial disse que não iriam baixar. Que um tenente começou a te dar umas pancadas com um cassetete, e você disse que aquilo era abuso de poder.

Então soube do pior, Procópio. Que a Polícia entrou em tua casa, e começou a quebrar várias coisas. Você disse então que eles não podiam entrar sem um mandado judicial, e a fúria do tenente cresceu. Fiquei sabendo que você e Sérgio, justamente os idealizadores da Biblioteca, foram os que mais apanharam. Ao ser algemado, tua mãe perguntou para onde vocês iriam ser levados, e a resposta do policial foi a de sempre:

"Procure".

Fiquei sabendo, Procópio, que você, Sérgio e mais três jovens foram levados em um camburão para destino incerto. Algemados, vocês ficaram mais de duas horas a mercê dos policiais, vendo sonhos e projetos de vida provisoriamente arruinados.

Quando chegaram á delegacia de Santo Amaro, vocês já estavam cheios de hematomas. O principal, foi o chute que te acertaram no queixo, e o brinco que arrancaram à sangue frio.

Por sorte, Procópio, tens amigos, que ligaram para pessoas que poderiam ajudar. A Michela e a Gorete, da ONG Auçuba, que conhecem vocês, interromperam os festejos e foram à delegacia.

O comissário, Procópio, saiu rapidinho e veio conversar com elas. Disse que já estava tudo sendo resolvido, que não precisava de advogado, porque era apenas "desacato à autoridade". Diante da insistência, a resposta do comissário foi simbólica. Disse apenas o seguinte:

"Então, vai ser pior".

Em minutos, Procópio, apareceram três papelotes de maconha em tuas coisas.O tenente insistiu que a maconha era tua. A ocorrência iria virar tráfico, e tu poderia descer direto para o Cotel. Imaginei por alguns segundos a tua juventude bruscamente interrompida, os teus sonhos desabarem. Pensei, no fundo, em quantas ocorrências deste tipo são registradas todos os dias, nas delegacias do Recife.

O advogado conseguiu evitar esse desastre em tua vida, esse desastre que arrasa a vida de tantos jovens da periferia. Então, vocês foram acusados de terem agredido os policiais, e de portarem drogas. Os policiais foram acusados de agressão. Um dos jovens presos sequer tinha documentos. É muito jovem, trabalha vendendo pipocas, é analfabeto. Tem somente a registro de nascimento.

Procópio, meu amigo, sei que tua noite começou entre teus amigos, uma festa defronte á tua casa, e terminou no IML, com um exame de Corpo de Delito. Falei há pouco com Michela. Ela disse que tu tinha ficado "bastante machucado". Quando a gente diz isso de alguém que apanhou da polícia, é porque a coisa foi feia.

Procópio, fiquei sabendo que a Biblioteca Popular do Coque vai ser inaugurada no próximo sábado, às 9h.

Estarei lá, meu velho. Chamarei meus alunos e todas as pessoas que não aceitam esta cidade injusta, esta polícia cruel, esta realidade que dizem imutável. O teu exemplo, a luta pelos livros, contra a violência, é um pequeno pedaço de luz nesta escuridão que o Recife vive.

Sei que estás arrebentado, meu velho. Mas ajudaremos a remendar. Ajudaremos a arrebentar essas barreiras invisíveis que você tanto falou - e que agora são visíveis em teu corpo.

Com afeto,

Samarone Lima


Para todos os jovens do Coque, que fazem parte do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI)


ps. Quem quiser ajudar de alguma forma, pode mandar email para o Procópio:
coquevive@gmail.com

17 comentários:

Anônimo disse...

Que triste. Mas a justiça divina será mais forte em sua hora.

Silvia Góes disse...

há cinzas pelo chão entre os escombros, mas acredito nos que levam no peito seus ventiladores, libertando do cinza o azul que se esconde.
é na casinha azul que vejo o mundo.
vida longa procópio, vida longa meu caro. conte comigo.
silvinha

Anônimo disse...

Cara, muita indignação! Veja que miséria estamos vivendo no Recife, esta cidade linda cuja beleza você compartilhou com todos os leitores aqui, falando do Poço, e, ao mesmo tempo esse inferno de violência que está em todo canto, em qualquer parte, e que é muito pior, mais revoltante e inadmissível quando vem da polícia.

Anônimo disse...

Sama, manda aí o contato do Procópio. Tenho uns livros e revistas para doar à biblioteca, uma mui pequena contribuição para ajudar a anular um pouco os efeitos dessa infâmia...

Anônimo disse...

É de lascar! É lastimável que aconteça isso. Valeu pela crônica, pela informação e pela indignação, Samarone. A democracia é frágil, a República, também, e o fascismo é poderoso. Mas, contra ele, temos pequenas grandes coisas, a começar por Procópio, teu blog...

Um dia, isso acaba!
PS: publiquei no meu blog tua crônica "o colecionador de epifanias". Demais!

Anônimo disse...

Ainda bem que existem pessoas como vc Samarone. Se eu nunca tivesse te visto pessoalmente, não acreditaria na sua existência de fato. Ser humano fantástico! Abraço bem apertado.

Anônimo disse...

É foda.
Gente que vem pra mudar, gente boa, gente que de fato age como gente, sempre deixa o recado, mas têm que ir embora cedo, muito cedo.
A cidade é linda. O povo é lindo. A cultura é linda.
É foda.
Sempre vai ter gente pra querer tudo feio.

Anônimo disse...

De quem é o Brasil?

Desses ladrões de grana e de sonhos?
Desses de gravata e farda?
Desses cínicos e mentirosos?
Desses sem compostura e decoro?
Queremos poder para agir... a sociedade civil necessita de espaço para dizer o que pensa sobre esse caso, sobre os precatórios, sobre todas os roubos aos cofres nacionais apontados e comprovados pela Polícia Federal, sobre tudo que fere a ética do carater nacional brasileiro.
Quem vai mudar isso? Já suportamos que o Estado durante anos nao se prestasse a ofertar o básico para construção da cidadania e do cidadão: não temos educação nem saúde. CHEGA... ou vamos rumo a civilização ou sucumbiremos a mediocridade e aos larápios.

Anônimo disse...

Puta que pariu...
Filhos da Puta...

Anônimo disse...

Sama, por favor me liga. Não sei como te ligar. Vamos juntos pra essa inauguração.
Beijo

Anônimo disse...

O recife é lindo..morro de saudade dai e fico com muita raiva de escutar historias como essas, onde vai parar o nosso Brasil!!!

Mas ainda bem que existem pessoas como você, como o procopio

Amandinha Melo disse...

Ah Samarone não me canso de ler seu blog.
Às vezes tiro um tempo: "ESTUÁRIO" para ler todas as crônicas que ficaram pendentes.
Emociono-me sempre com cada uma! Parece que quando leio suas historias, que tem o meu Recife como cenário, consigo aquietar minha saudade. É como se eu sentisse o cheiro das ruas, o calor dessa gente, que tanto me faz falta. Obrigada.

E deixo minha indignação perante o último post.

Dulce de Vasconcelos disse...

Sama, recebi este texto por e-mail, citando a fonte, a qual, ao ler, eu já intuía qual era. O estilo inconfundivel, uma revolta mansa porém contagiante. Em mim, lágrimas de uma grande tristeza e raiva. Mais uma vez fico sem palavras para externar minha indignação. Mais uma vez sinto-me impotente e obrigada a engulir sapos e lagartos, ou melhor, engolir podridões feitas por sapos e lagartos do mal.

O corpo de Procópio não será mais visto. Mas a história existente com de tudo o que ele fez, a bela trajetória de vida, o exemplo que deu do que é bom e bem devem ser preservados, ressaltados, divulgados, assim como você está fazendo.

Parabéns, amigo. Também quero ajudar a biblioteca de Procópio, a quem só conheci agora.

Quero dar um abraço apertado em você, com muita energia para que o bem cresça muito, depressa, cada vez mais, se multiplique em proporções nunca vistas, até passar à frente dos animais terríveis que ameaçam nossa sociedade.

Dulce de Vasconcelos disse...

Sama, postei no Flickr, em http://www.flickr.com/photos/dulce_vasconcelos/661991380/, foto e texto. É mais uma forma de divulgar.

Abraço.

Luiz C. Salama disse...

Samarone, vc diz no teu perfil que és escritor de "coisas menores" isso é escrever o que deve ser escrito e jaais pode ser chamado de "menor". É maiúscula a injustiça e a consequente indignação. Voce tambem diz que é professor de "leitura"... num país de semi-analfabetos, de analfabetos funcionais e de analfabetos por completo, isso é algo extremamente valoroso. Num país onde os alfabetizados nas melhores escolas não têm o hábito da leitura porque são viciados em videogames e videoclips...
Onde não se sabe que está certo e quem está errado... onde o presidente da comissão de ética do senado responde por crimes no STF... onde polícia planta, não sementes, mas a planta inteira na mochila dos inocentes, transformando-os em culpados.
Cheguei aqui pelo link da Dulce, vou repassar o texto, em especial aos meus amigos daí de Recife, pra ver se conseguimos um dia deixar de lado o título de país do futuro e nos tronarmos uma realidade presente. E isso só se faz com CULTURA.

Abraço

Luna Freire disse...

Samarone, publiquei esta história no meu blog. Injustiças como essas que, infelizmente, são mais comuns do que se imagina, precisam ser denunciadas nos meios que tivermos. Se quiser, dá uma olhada:
http://palavraspontes.blogspot.com

Anônimo disse...

Oi Samarone!
Conheço vc, mas acho q não lembras de mim.
Trabalho no Umbu-Ganza e peguei uma carona com vc e Bianca num dia desses de sol (faz tempo).
Recebi via e-mail a sua carta a Procópio e fiquei emocionada e indignada.
Lembrei de tantos jovens pobres, negros e marginalizados como Procópio que tem seus sonhos interrompidos pela imbecilidade e debilidade de um sistema que não muda sua maneira de ver e entender o mundo e as pessoas.
Enquadrar todos num modelo único é prático. Negro, pobre, da favela, na favela é bandido. Bandidos são eles que roubam o desejo das pessoas, ceifam seus sonhos e acabam com suas esperanças de um mundo melhor.
Ainda bem, que existem pessoas que não calam, nem se abatem e vão a luta. Somos nós. Eu, você, Procópio e tantos outros que fazem do dia-a-dia, da nossa pratica diária um meio de desconstruir o que está posto.
Um abraço fraterno de sua nova fã Alexsandra Maria.