Caldinho de Seu Biu, no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife.
Você chega num domingo, um domingo de sol bem nítido, forte e claro como o do Recife, atravessa a rua principal do Alto, e todas as pessoas parecem ter sido despertadas por um único desejo: sair de casa, bater pernas, olhar o movimento, trocar idéias, tomar umas, paquerar, comprar umas coisinhas para a semana, ou simplesmente dar um pulinho no boteco mais próximo. Então vai a dica: o "Caldinho do Biu" é aquele típico boteco perto da perfeição.
No caminho, você passa por uma mini-Ceasa nas calçadas do Alto, com verduras sendo vendidas a granel, os preços mais modestos do Brasil. Não sei quais são os preços mais modestos do Brasil, sou um homem impressionista.
No trajeto, há discussões futebolísticas as mais notáveis, fundamentais para o exercício do domínio da conversa, o desenvolvimento da memória (aquele primeiro turno que ganhamos, na final de 1974), e da capacidade premonitória (vamos meter 3 x 0 em vocês fácil).
O dominó come no centro, parece que todos os dominós do Brasil foram levados por uma carreta para a praça central.
Em alguma parede, de alguma esquina não muito grande, será possível ver inscrições rupestres do tipo “Temos caldinho”, “Galinha guisada”, “Temos arrumadinho de charque”.
É possível esbarrar na lanchonete “Saborear lanches”.
Se quiser dar um trato nos cabelos, o recomendável é o “Salão Belo Visual”, mas deixe para ir em Eliete, que seu cabelo ficará no ponto. Aproveite para fazer psicanálise gratuita, com a própria Eliete.
Finalmente, chega-se ao “Caldinho do Biu”, famoso pelo caldinho, óbvio, pelo feijão com charque (água na boca, amigos), pelas postas de peixe assado. Você pode pedir pratos de feijão que variam de R$ 3,00 a R$ 5,00. Recomendo um de R$ 3,00 para quem está só, e R$ 5,00 para três pessoas. Com Biu não tem pirangagem, os pratos são bem servidos e quentinhod. Quem deve atendê-lo, além de Biu, é Flávio, o seu filho que tem voz de locutor. No meu caso, ele vai dizer sempre:
“Oi, Marone, tudo bem, Marone?”
Ele nunca gostou das duas primeiras letras do meu nome, eu também não vou ficar arengando com o mundo por causa de uma vogal e uma consoante. Na próxima, vou responder:
"Tudo bem, Ávio, tudo bem, Ávio".
Bote farinha e pimenta no caldinho ou no feijão.
“Vamos tomar uma lapadinha?”, é uma frase comum no final da manhã de domingo, dia que mais costumo ir ao Alto.
Lá pelo meio dia, o céu está claro e intenso, azul como uma pedra preciosa, e as nuvens são do mesmo material do algodão doce da infância. Agradeça por algo, mas se quiser deixar para depois, não esquente, que cronista gosta de enfeitar as coisas, às vezes.
Chega o momento solene de escolher uma mesa longe do mormaço, puxar a cadeira e fazer o pedido. Sugestão: entre, faça o pedido e vá para a mesa, que você vai ganhar tempo. Não, não, vamos mudar tudo. Melhor tomar uma no balcão. O balcão é a melhor parte de qualquer boteco.
Ao sentar em uma das cadeiras, é possível apreciar o trânsito das moças lindas do Alto, que passam deslizando, como se no domingo não tivesse mais a Lei da Gravidade. Olhe, mas não olhe muito, porque pode aparecer o dono a qualquer momento.
Tem locadora de DVD que cobra R$ 1,00 por filme. Minha pesquisa cronística não entra no setor de serviços, porque não sou nenhum besta de ficar fazendo trabalho forçado em pleno domingo, enquanto você, leitor, está deitado na rede, escutando La vie en rose.
Sentado em Seu Biu, é possível escutar diálogos os mais diversos, como:
“A mulher fez cuscuz com sardinha e queijo. Fez e foi para o mundo: perdi o apetite para comer”.
“A comida ficou grudada na panela”;
“Foi o pior goleiro que já vi jogando”;
“Demos um lá e lô que acabou com o jogo”;
“Quando sair minha micharia, te pago, pô!”;
“O cabelo está bom, agora... que bigode horrível esse, visse!”;
“É a boyzinha dele. Está acabando com ele... é pior que cachaça”;
“Pois beber em casa para mim é o maior sacrifício”;
Sentado, bebericando sua cervejinha ou uma pequena dose, é possível ver passarem os torcedores do Santa Cruz, sempre com esperanças nos olhos.
Vai passar, a qualquer momento, um gordinho com a camisa “Os Gordinhos na Folia”, do Carnaval passado. Dê um bom-dia, para descontrair o ambiente.
Menino soltando papagaio, só de calção, sem pensar em nada, apenas concentrado naquilo que está voando e bailando no vento lá de cima, acontece com freqüência. Lembre-se da infância.
Você fica sentado, olhando a paisagem e pensando na vida, vem o sujeito com um carrinho de mão cheio de DVDs piratas. Cobra R$ 5,00 por cada. O sujeito está tomando umas, para comemorar as vendas. Então você pergunta somente como funciona o esquema.
Então ele explica que no Recife, a PM cobra vinte mangos por semana para esses camaradas que vendem em barraquinhas aleatórias. Um camarada à paisana é quem recolhe. Se passar duas semanas sem pagar, eles, os tiras, passam recolhendo. Se o ponto for fixo, o negócio complica: custa R$ 500,00 por mês.
Bom, depois o camarada vai embora com seu carrinho de mão. Se der inspiração, peça uma saideira. Sozinho ou acompanhado, peça a saideira. Flávio, lá pelas tantas, vai dizer:
“Marone, estamos fechando, visse Marone”.
Ele, o Ávio, engole duas letras e repete meu nome. É efeito de compensação alquímica, né? Então engulo umas letrinhas dele, para ficar tudo equilibrado.
Se aparecer uma camarada tamanho médio, negro, cabeça raspada, que atende pelo nome de Ailton “Peste”, recomenda-se convidá-lo para uma boa conversa.
O Caldinho do Biu abre durante a semana, para os que andam querendo serenar o pensamento e organizar as tempestades.
Um comentário:
O Caldinho do Biu não é fraco não.
João Valadares
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