segunda-feira, 25 de junho de 2007

O abençoado Poço

Durante cinco anos, a esquina da venda de Seu Vital, no Poço da Panela, foi a minha esquina. De casa, eu podia vê-la já nas primeiras horas. Era ali sempre meu primeiro bom-dia, o primeiro gole de café, o primeiro coçar de cabeça, no louro Dudu. Ali, fundei bloco de carnaval, escrevi crônicas, enchi cadernos de bobagens. Ali, durante cinco anos, esperei a famosa Kombi de Naná, para ir, de bandeira em punho, ver os jogos do Santa Cruz. Ali, muitas vezes, joguei meu inútil dominó, com as pedras "bêbadas", como diz Seu Vital. Ali, conheci as pessoas que não eram da minha família, e entraram no meu mundo. Ali, alegrias e tristezas.

Depois da mudança para o Cabo de Santo Agostinho, em dezembro do ano passado, meu mundo ficou sem esta esquina. Moro numa rua sem saída, onde há silêncio, quietude, passarinhos. O bar mais próximo, o Caldinho do Mario, é até razoável, mas falta algo fundamental a qualquer bar, que é o clima, o afeto, o alarido dos encontros, pessoas que tenham a nossa conversa. A gente sabe quando aquele bar é nosso ou quando é apenas um comércio que visa o lucro.

Esta semana, voltei ao Poço sem pressa. Voltei ao entardecer, com os olhos lavados pela saudade. Fui chegando de mansinho, sentindo o cheiro das árvores, a dureza das pedras, as imensidões do afeto. Fui respirando aquele clima, estufando o peito, sentindo o coração se apressar. Fui ao meu encontro também, creio.

No caminho, encontrei Dona Beata, que voltava do médico. Andava devagar, e me sorriu.

"A Beata quase vai embora, meu filho", disse ela, me explicando os problemas de saúde. O filho dela, sempre arisco, ficou por ali. Foi alisar um cachorro de uma casa.

Chego à esquina de Vital, já vai anoitecendo. Uma mesa com duas moças, o local está vazio, perfeito para rever o velho. Ele está do lado de dentro, com seu jeitão de brabo, entro e digo algo. Seu Vital me estende a mão:

"Diga, meu bom".

Ficamos conversando. Falou dos netos, que vi pequenos, com quem brinquei tantas vezes. Samuca está fazendo cartinhas sozinho. Lêlê já escreve seu nome. Carol está forte.

Fiquei sabendo que Dona Da Luz foi levada para o hospital. Cansaço no coração. Recebeu alta. Ah, mas um coração daquele tamanho, deve ter hora que cansa mesmo. Don Severina, esposa de Vital, chegou e ficou papeando. Está bem da vista, finalmente, e me cobrou dois pratos de alumínio, que me emprestou há meses. Vou trazer, dona Severina, vou trazer.

Aparece Laurent, filho de Luzilá, que tem a grande virtude de ser pai de Lucas, um dos garotos mais afetuosos que já conheci. Laurent passa em uma bicicleta minúscula, pergunto se ele quer vender. Então vou para o meio da rua e ficamos conversando sobre a vida, minha mudança etc. Daqui a pouco chega Teresa, esposa de Naná. Cadê Naná?, pergunto.

"Está caminhando na Jaqueira".

Desde que me conheço por gente, Naná(118 quilos)diz que vai caminhar. Teresa diz que é verdade, e nesse momento, a liga de dominó vai começar. Sento, peço uma cerveja, e contemplo a paisagem. Meu Deus, como eu amo esse lugar, essas pessoas, tudo o que vivi aqui!

Anoiteceu. Ao longe, está Beto, sentado, quieto como sempre. Deve estar lembrando de Leão, o cachorro mais fiel que que já conheci. Raimundinho vai apressado, já está cheio das manguaças. Acena para mim de longe e diz que "os ventos estão mais para Nordeste" e promete voltar, mas sei que não volta.

As crianças do Poço vão crescendo. Acompanhei os menores, em um projeto com Naná, o da Kombi. A gente amanhecia o dia levando a garotada para a escola, era divertido. Totonho vem todo arrumado, passa por mim, dá a mão. Está grande, forte, vai para o São João na escola. Depois vem Fernando, seu irmão, que está virando mecânico.

Chega Zinho, mais conhecido como "Garotinho". Pergunto se ele continua bebendo duas latas de Pitú por dia.

"Só uma", responde.

Estranhei a súbita mudança de hábito.

"Só uma?"

"De dia, só uma. De noite é que bebo outra", completa.

Rabaçan me chama no meio da rua. Diz que está com uma Brasília tinindo, o motor uma beleza, e quer me vender por R$ 2 mil. Prometi olhá-la no final de semana.

Justamente nesse momento passa Batman, nosso lateral direito dos Caducos. Buzina, dá a mão, reclama que estou fazendo falta na zaga e vai embora. É o momento crucial, com a chegada de Naná e Diazepan. Naná jé perdeu seis quilos, diz ele. Se alguém encontrou, favor devolver. Diazepan está bem, obrigado.

Dai me chama do outro lado da rua. Quer ter um particular comigo. Penso em algo sério, mas ele me explica o seguinte: Luis Jacó, nosso artilheiro dos Caducos, está morando para as bandas do Cabo, e quer meu telefone.

"Ele quer que tu jogue no time dele, numa pelada em Gaibu".

De repente, senti uma fleuma, meu passe foi valorizado. Para quem joga futebol, isso tem uma importância enorme.

Jorge Alberto chega com mais uma escultura. Coloca em cima da mesa. Pergunto quanto custa. Ele, como sempre, desconversa. Pergunto mais alguma coisa, ele responde:

"Hoje não é dia 20? Não estou respondendo questionário hoje".

Naná me conta que levou uma multa porque estava com o braço do lado de fora da Kombi. Eu não sabia nem que tinha esse tipo de multa. Aos meus leitores, vai o aviso: não dirijam com o braço de fora do carro.

Estou de bobeira, conversando uma aguazinha, quando passa o carro com Pérside. Ela para, baixa o vidro e Lulu, a amada Luisa, abre aquele sorriso que acaba comigo. Desde pequena, Lulu tem esse vínculo. É amor, eu sei. Ao final de nosso pequeno encontro, ela me deu um chiclete de presente.

Seu Vital me entrega uma caixa com uns presentes que a Kika deixou, junto com a Andréia. Coisas lindas, que agradeço. A edição de luxo de "Cem anos de solidão" é algo que não tem preço.

Depois chegaram Sóstenes, Walter Barba, Lucidélia, Luís Maúcha, e por aí vamos. Cada um com sua conversa. Joguei no Bicho, mas ainda não conferi. Paguei a minha conta em Vital, renovei o pendura com mais duas cervejas e duas doses do seu "Remédio". Por último, antes de sair, olhei para o papagaio Dudu, me aproximei.

"Dudu", disse eu, e o animal baixou a cabeça, como sempre fazia, esperando um cafuné.

Cafuneei Dudu, depois abracei o meu povo e descobri que não sofro dessa saudade que dói. Sinto um amor por aquele lugar e pelas pessoas, um amor completo, irreversível, sem regras ou cobranças. É um amor que nasceu devagar, e criou raízes. Ninguém reclama a demora em aparecer. Quer apenas saber de mim, se estou bem, por onde andei.Cada abraço, aperto de mão, sorriso, eu trato como uma bênção.

Depois eu volto para o Cabo, e está tudo bem. Volto um homem abençoado.

Para eles todos, claro.

Ps. amanhã republico a crônica "Anotações dos velhos cadernos".

15 comentários:

Perna disse...

Coisa linda demais Sama...uma leveza, delicadeza..
Nem te conheço mas gosto de tu cara..


Rodrigo Melo
Manaus-AM

Anônimo disse...

Absolutamente lindo!!!
Meu amigo, que coisa forte, que coisa bela, que poço mágico!!!

Que relato incrível!!!

Anônimo disse...

Quanta honra ser mencionada num texto tão lindo!Obrigada.
Sinto-me feliz por você existir.
beijo Kika

Anônimo disse...

Affff, fazia uns dias que eu num chorava por aqui... hoje a vista embaçou...
Adri

Flor disse...

so tenho um comentario possivel: nossa!

Anônimo disse...

Samarone como sua mais nova leitora e moradora de Gaibu desejo esperançosamente pode ver essa pelada que valorizou seu passe :)

Abraços

Anônimo disse...

Sama,
teu passe e valoriadissímo, depois que vencemos os jovens da escola por 3 x 1, a tua fama se espalhou pelo mundo dos bairros da RMR...
Belo texto, também me senti abençoado!
Um grande abraço,

naire valadares disse...

Sama,
que coisa linda, lírico como o Poço. Aliás, a venda, Dudu e a bicleta estão hoje na Folha, ensaio da Maria da Silva.
Beijo
a do turbante.

Anônimo disse...

Poesia pura extraída das ruas do poço. Parabéns Sama, lindo texto. Parafraseando Luiz Gonzaga: "saudade, seu remédio é escrever"!!!

Unknown disse...

Frangolino...esse tá no top 5..
João Valadares

Anônimo disse...

Sama,

a sua descrição do poço me levou de volta aquele lugar único a que todos nós pertencemos.

Obrigado por essa passeio.

Vamos marcar pra bater uma bolinha em Suape, ok?


Abração!

Anônimo disse...

Sama,

Muito lindo!!!Que pureza é disso que o mundo precisa...adorei a leveza.

Conceição Cardozo

Dulce de Vasconcelos disse...

Uma coisa muito minha: Este texto fechou a gestalt da sua saída do Poço, quando senti falta de alguma crônica, e você fez, mas de uma forma seca que não me convenceu. Nem comentei, lembra? Agora, juntando os dois posts, teu sentimento se mostra claramente. Aprendi um pouco mais de você. Posso até dizer que vi um belo exemplo de ser feliz a cada dia, e de trazer o bom do passado para adoçar o presente.

Beijo

P.S. Algumas vezes me contenho pra não ficar na rasgação da seda hehehe. Qualquer dia vou falar muito mal de alguma coisa que você escrever.

Anônimo disse...

Parceiro

coisa bela tua cronica.
todos nós temos nossos Poços por este mundo e é neles que se vive.
cheguei aqui por Dulce de Vasconcellos que linkou teu blog no texto sobre a covardia praticada em Coque no São João. parabéns. mais uma vez conheço um bom artista pernambucano, manancial de idéia e
expressão.
abraço.
Juca Filho
juca.filho@uol.com.br

Anônimo disse...

Sama,

Perrusi realmente sabia do que estava falando sobre o teu blog. Excelente crônica, leve e, ao mesmo tempo, de apertar o coração.

Belo texto.

Um abraço,

Dimas Lins,
www.torcedorcoral.com