Estou aqui, no primeiro andar da casa da tia Flocely, no Cabo de Santo Agostinho. O relógio vai passando do meio-dia, e chove. Não chove torrencialmente, com o barulho nos telhados. Há apenas o tempo fechado, um vento frio, as folhas molhadas. À minha frente, defronte à janela, os galhos de um pé de canela, onde um bem-te-vi pulula, aqui e ali. Dá vontade de dizer:
“Ei, menino, saia já dessa chuvinha, que vais pegar uma gripe!.
Inútil. Perdi o tempo de conversar com os passarinhos. Ele fica perambulando de galho em galho. De vez em quando me olha com uma certa ternura, pensando lá entre seus miolos:
“Poxa, um dia lindo desses, e o cabeludo ali todo vestido, mexendo com alguma coisa naqueles dedos grandes”.
Os dias vão passando, e ultimamente venho pensando nessa força misteriosa que se chama destino. Não esse destino da fatalidade, pueril, das favas contadas, como se tudo tivesse um mesmo fim, sem algo que passe pelo sagrado, o misterioso. Essa sucessão de fatos, de imprevistos, uma nódoa na camisa, que pode mudar um dia, que pode mudar uma vida. Falo desse destino que vem com força, desviando rotas, refazendo mapas pessoais, geografias, emoções. A pessoa que você conhece por acaso, num encontro, e vira um grande encontro. Os amores que chegam, batem na trave, e retornam depois, amadurecidos. O destino e as pequenas coisas, pequenos gestos, frases, palavras, um telefonema, sei lá.
Então lembro que uma nódoa na ponta do vestido da minha avó Zeneuda, em 1970, mudou o rumo da minha vida.
Parece exagero, mas foi o que aconteceu. Minha mãe morava em Brejo Santo, já tinha dois filhos pequenos, quando cheguei, naquele maio de 1969. Minha avó morava no Crato, e para aliviar um pouco a barra, fui ser criado pela avó, até as coisas sossegarem. Já pensaram uma mulher com três filhos pequenos, ali no começo da mocidade? Minha mãe, como diria César Maia, era uma mulher “rochedo”, mas também tinha lá suas dificuldades.
Eu já estava com quase um ano, bem nutrido e aprumado, achando aquilo tudo muito bonito, quando chegou aquele “um belo dia”.
Um belo dia, minha avó me arrumou todo, botou Seiva de Alfazema, algo assim, depois seu melhor vestido e quando fechou a porta de casa, viu que na ponta do vestido, tinha caído um pingo de café. Não sei se era café, fica café, para facilitar a crônica. Ela poderia deixar para lá, quem iria olhar uma besteirinha na barra da saia, era apenas uma missa, a 300 metros de casa.
Mas ela resolveu que iria mudar meu destino.
Voltou, me deixou numa cadeira, molhou a ponta do vestido, tirou a nódoa com sabão e foi passar o ferro para deixar tudo lindo.
Então ela tomou um choque violento, quebrou o braço e acabou minha colônia de férias no Crato. No dia seguinte, estava em Brejo Santo.
Volto ao dia de hoje. Lá embaixo, no térreo, enquanto escrevo esta crônica, está minha tia Flocely, tão comentada nas últimas crônicas. Ela se prepara para mais uma sessão de hemodiálise. Está debilitada, claro, mas 80 anos, hemodiálise três vezes por dia no Recife, vários remédios, dores na coluna, isso tudo deixa qualquer pessoa exausta, querendo sua casa, sua cama, seu cachorrinho Bam Bam. Ela tem lutado com raça.
Há pouco conversei com ela sobre essas coisas da vida, esse destino das pequenas coisas. Ela disse que acredita numa força superior, em algo maior, que rege as coisas. Sua concepção é mais religiosa. Falei sobre o episódio envolvendo o início da minha vida e a nódoa no vestido da avó Zeneuda, ela acompanhou atentamente.
Então vai um detalhe: a avó Zeneuda é irmã de tia Flocely.
Me ocorre que estar ajudando a cuidar de tia, neste momento delicado de sua vida, é uma espécie de retribuição tardia a quem cuidou de mim, quando eu começava a viver.
Retribuição não: agradecimento.
A essa altura do campeonato, também agradeço ao destino alguns caminhos percorridos, e pelo fato de estar aqui.
Não é mais a distância que me importa, é o tempo.
ps. amanhã republico "Lugares essenciais do Recife".
8 comentários:
Samarone,continuo achando linda e adimirando essa relação de interação com sua (um pouco nossa)tia Flocely,mas porque você anda tão sorumbático?será a chuva(tempo)?BEIJOS,Graça.
ei, que lindeza!
sabe de uma coisa sr. do tempo? daqui do fundo da minha dessabedoria, acho que nunca se perde o tempo de conversar com os passarinhos...tem cabelo demais nesse juízo. deixa o cabelo, que eu adoro, mas pode trocar o juízo pela conversa com o bem-te-vi. bem te quis.
un petit bisou pour toi
Um abraço bem apertado meu amigo!
Gostei dessa: sorumbático. Deve ser a chuva, mas acabou de sair um sol supimpa.
samarone
Taí, gostei do "Marone".
Diferentemente de você, aos domingos de manhã prefiro mesmo tomar cerveja numa praia. Onde também se toma caldinhos diversos, sururu e mariscada, além de outros quitutes e petiscos de praia, na maioria de procedência duvidosa. Mas eu recomendo o Caldinho do Arnaldo para quem pega praia para os lados de Setúbal e ostras do Biu, servidas no gelo. São mais confiáveis.
Visite o blog Natutral, onde há alguns relatos de cenas interessantes observadas nas praias de Boa Viagem.
http://au.blog.360.yahoo.com/blog-PzqEEvc7cac1X.K8n1A-?cq=1
JJ
É como a gente tava falando... O tempo e as coisas que ele faz são impressionantes. Tenho uma pontinha de alegria por ver isso tão claramente, apesar da pouca idade.
E, talvez você goste de saber disso, o professor disse que gostou da entrevista. Disse que tinha alma.
Cheiro e vamos seguindo.
=*
Sama,
Que saudade de tu, menino! Nesse feriadão, estive em Sampa e advinha quem eu conheci??? Abel! É inacreditável como o mundo é pequeno e as pessoas, de energias comuns, de alguma maneira se encontram. Tudo é um grande mistério, que eu aceito e respeito, mesmo sem seguir diretamente uma religião. Eu e o Abel falamos carinhosamente de você!! Eu disse sem pestanejar: Amo aquele cabra. E é isso. Estou chegando em Recife novamente! Vamos se encontrar??? Diretamente da Bahia para Recife!!!! Manda teu e-mail e telefone para vdiass@yahoo.com.br perdi os seus contatos... beijinhos
Ah, esqueci de assinar. Sou eu, Vania.
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