quarta-feira, 11 de julho de 2007

Tiremos Paulo Freire do altar

Vão querer me matar, mas é o que penso.

Acho que precisamos tirar Paulo Freire do altar. Nosso grande educador fez a cabeça de gerações de professores, digo, educadores, transmitiu esperança e ternura a milhões de líderes comunitários, teólogos progressistas, intelectuais, pensadores, questionou as formas de transmissão do conhecimento, as relações em sala de aula, colocou o amor, o reconhecimento do outro, mas...

Mas o homem vem sendo cada vez mais colocado num altar, com água benta do lado e caminha para a condição de santo. Reverenciamos Paulo Freire todos os dias. Da reverência, estamos passando para o endeusamento. Há congressos, livros, seminários. As práticas em sala de aula são questionadas a cada segundo. O aluno, perdão, o educando, foi ganhando importância, mas tanta importância, que está acontecendo um fenômeno social incrível – hoje, o professor é quase um coadjuvante em sala de aula. A impressão que tenho, hoje, é que o aluno olha para o professor, e tem vontade de dizer:

“Professor, o senhor está atrapalhando a aula”.

Venho pensando sobre isso há algum tempo, matutando devagarzinho, porque no Brasil, temos algumas pessoas que são colocadas no altar, viram mitos, intocáveis, e ai de nós, reles mortais, do pensamento mediano nacional, se ousarmos fazer alguma crítica. Fenômenos inversos também ocorrem. Nelson Rodrigues, o reacionário dos anos de chumbo, é cada vez mais visto como revolucionário, um homem capaz de falar das coisas mais sombrias da alma, sem concessões. Quem vai se aventurar a falar mal do Nelson Rodrigues, hoje? Isso era moda nos anos 60 e 70.

Duas coisas me chamaram a atenção, nos últimos tempos. Primeiro, virou quase politicamente incorreto, beirando à ofensa, o sujeito ser chamado de “professor” (aquele que ensina uma ciência, arte, técnica; mestre, segundo o Aurélio). Agora, para quem ainda não sabe, o certo mesmo é “educador”. Eu, que trabalho com as palavras, seja lendo, ensinando, escrevendo, acho a palavra “professor” linda. Basta eu falar dela, que lembro meus bons professores do passado, aqueles que me ajudaram a ser quem sou e o que sou. Não lembro de nenhum deles como educadores. Eram sim, meus professores. Quando você bota o politicamente correto na palavra "professor", tão cheia de significados, está tirando toda a sua força.

Depois, tenho visto coisas terríveis acontecendo pelas escolas do Recife e adjacências, já que moro numa adjacência chamada Cabo de Santo Agostinho. O professor só falta pedir perdão para fazer uma chamada. De tirano, de inquestionável, de dono do saber, de capataz, em outros tempos, se tornou quase um intruso em sala de aula. Por outro lado, o aluno foi mudando de lugar. Do que obedecia tudo, do que temia a figura do professor se aproximar, que aceitava o que chegava de conhecimento como algo dado, fechado, inquestionável, que não podia refletir criticamente, o aluno virou quase o senhor da sala de aula. Isso acontece na escola pública e nas escolas mais caras do Recife.

Há 15 dias, encontrei uma amiga, professora de mão cheia, conhecedora dos percursos, teias e paixões da literatura, da escrita, uma figura sensível e atenciosa, com um blog delicioso aqui na Internet. Nosso encontro, em meio à inauguração de uma biblioteca no Coque, um dia festivo, teve uma nota intrigante. Ela tinha pedido demissão de um colégio de classe média, em Casa Forte, onde a mensalidade é uma pancada no bolso dessa gente, que se vira como pode para tentar dar uma boa educação aos filhos. Se preocupa tanto em pagar uma escola cara e boa, que esquece de dizer que ele deve respeitar o professor.

Minha amiga não agüentou sequer um ano na escola. Ficou chocada com a falta de respeito, a obsessão pelo celular, os fones de ouvido literalmente dentro do cérebro, a balbúrdia. Tentou criar estratégias, mudar formatos, abriu caminhos, diálogos, mas nada. Exausta, abatida, sem entender o que faz um bando de jovens do 1o ano do Ensino Fundamental sair de casa para exercitar a criatividade jogando coisinhas em seus celulares, ela jogou a toalha. Pediu demissão. Estava aliviada, mas triste.

Queria muito ensinar coisas mágicas do mundo da Literatura, mas não deu. A sorte é que ela tem turmas particulares de Literatura, então acontece uma coisa engraçada: a classe média paga mais uns trocados, para os filhos que querem mesmo ir para um lugar com o objetivo específico de estudar, já que a sala de aula comum está parecendo um samba do crioulo doido.

Sempre li Paulo Freire com os olhos mais humanos. Antes de morrer, ela já era um mito. Disse e escreveu coisas linda, importantes, fundamentais, que tenho comigo como referência para meu trabalho como professor de literatura e escrita, mas tenho críticas, discordo de algumas coisas, acho que tudo que ele disse e escreveu tem sido levado ao pé da letra. Eu, se fosse ele, estaria incomodado.

O professor tem pensado tanto no aluno, que tem esquecido da sua importância. Os valores estão todos virados pelo avesso. O celular novo é mais importante que um poema do Fernando Pessoa. O pêndulo mudou de lado. O aluno vem perdendo sistematicamente os referenciais de respeito, de atenção, cuidado. A sala de aula vem deixando de ser, há algum tempo, um espaço sagrado para a transmissão do conhecimento, para a reflexão, desenvolvimento das potencialidades e visão de mundo. Vixe Maria, agora estou ferrado mesmo: usei a frase “transmitir conhecimento”. Ninguém transmite conhecimento, nós vamos para a sala de aula para aprender com os educandos, aquela coisa.

Modestamente, acho que um sujeito que passou a vida lendo, anotando, pesquisando, planejando suas aulas, pensando na melhor maneira de passar para seus alunos, está transmitindo conhecimento sim. Outro dia, perguntei aos meus alunos quem sabia o que era uma metáfora. Dos 19 em sala, apenas um sabia, e de forma improvisada, porque não conseguia explicar direito aos colegas. Então, começamos uma nova jornada, em busca de metáforas. Levei livros, poetas, escritores, lemos juntos metáforas, até que ela virou nossa amiga.

Sou professor. Adoro este ofício, fico emocionado quando um jovem aluno vem me mostrar um poeminha simples, início da grande aventura pessoal. Ontem, uma aluna me contou que passou a tarde inteira lendo um romance, e esqueceu do tempo. Outro dia, ela disse que não gostava de ler. Conversamos, rimos, trocamos idéias, mas não tenho o menor pudor de parar uma aula e dar um carão, quando a coisa desanda. Fica aquele silêncio, mas sinto que é um silêncio de respeito, um freio nesta grande esculhambação que este país tem se transformando, porque tudo é culpa do outro. Tem alguém, ali, um professor, que por um momento diz um "não" bem dito.

Depois do silêncio, eu digo:

“Vamos continuar?”

E sigo a aula.

Não sei se Paulo Freire acharia isso opressor ou não, mas isso não me incomoda. Não coloquei o velho mestre num altar, e também não quero ser santo. Quero ser apenas um bom professor.

19 comentários:

Mariana Paixão disse...

Eu realmente não entendo o que certas pessoas têm contra o uso de "professor". Eu também acho essa uma palavra linda, e pra mim até não vejo diferença entre "educador" e "professor". Professor educa, professor ensina, professor transmite SIM conhecimento, porque não?
Realmente é uma flata de respeito enorme com esses tais professores. Eu que sou aluna de uma escola bem cara (Salesiano =p) sei bem disso.

Luna Freire disse...

Tudo isso que vc escreve é um desvirtuamento do que dizia Paulo Freire. E trocar o nome de professor para educador não vai mudar absolutamente nada. Parece coisa de tucanês, metido a politicamente correto. Hoje em dia isso é moda! E Paulo Freire deve se revirar no caixão...

naire valadares disse...

Perfeito, professor.
Beijo
Naire

Anônimo disse...

No mesmo ou em altar semelhante colocam ARIANO SUASSUNA. Para mim , Ariano Suassuna não diz nada.

Anônimo disse...

Sama, meu filho, grande professor!
É por pensar assim, do mesmo modo que você, que eu já passei dos 50 e continuo apaixonada por uma sala de aula, onde eu aprendo muito com os alunos mas, e principalmente, transmito conhecimento. Afinal, os anos a mais vividos nos dão respaldo para transmitir muitas coisas, inclusive conhecimento.
Um cheiro de mãe.
Em tempo, também politicamente incorreto é falar aluno porque, pela etimologia da palavra, aluno é sem luz e todos nascem com luz, sabia?

Anônimo disse...

Cabeleira,
Acho que o próprio Paulo Freire não ia gostar nada dessa história de sacralização das suas idéias. Até onde conheço, o mestre prezava muito a velha e boa dialética, vamos conversando que a gente se entende...então, nada de altares, você está certo.
É uma chatice mesmo esse negócio do politicamente correto. Orgulho-me de me apresentar como Professor (educadores somos todos, pais, mães, irmãos, amigos, profesores, na escola e na vida).

Anônimo disse...

Agora, quanto à "transmissão" de conhecimentos, prefiro dizer que nosso trabalho é na verdade a "construção" de conhecimentos, deixando claro que é o professor quem lança as pedras fundamentais (com a ajuda de outros, é claro, a quem recorremos, nos livros, nas mesas de bar, nas salas de aula...). Assim, vamos aprendendo os melhores caminhos para a construção (das pontes, escadas e estradas...)

Anônimo disse...

Grande Sama,

Esse papo de endeusar, vem acompanhado - já já chega - de uma revelação posterior de algo muito contrário ao antes preconizado pelo endeusado (que, como todo mundo, falhava e falhou), OU SEJA, primeiro dizem que o cara é um santo, depois mostram seus pecados.

E aí, algo ou alguém que seria extremamente importante passa à vala comum dos "traidores" ou "enganadores".

Já vejo artigos bastante críticos ao método Paulo Freire, contra sua atividade política, etc. Não se espante se descobrirem que ele não era careca e a barba era falsa.

Uma pena.

Paulo

Auxiliadora Padilha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Auxiliadora Padilha disse...

oi Samarone,
também sou professora. Acho que em muita coisa você tem razão sim. Só não concordo com a transmissão de conhecimentos. e, além disso, acho que além de respeito na sala de aula, os professores/educadores também precisam de uma referência de alguém que represente ética, respeito ao outro, compromisso, rigorosidade, autoridade e não licensiosidade e tantas outras coisas que aprendemos com as lições do mestre. Acredito que não é o caso de 'endeusar' o Paulo Freire, mas prefiro ser uma fiel praticante de seus ensinamentos do que não ter em que(m) acreditar. Ainda acredito que a educação pode dar um jeito no mundo. E vc?

Samarone Lima disse...

Acredito sim, que a educação pode mundo. Escrevi o texto em função do que tenho visto por ai, e principalmente pela minha paixão de ofício. Hoje não me vejo tanto como jornalista, mas como professor, e adoro isso.
Abraços a todos e obrigado pelos comentários.
Samarone

Anônimo disse...

E esse sistema de "progressão parcial"???? o aluno no fim do ano passa de todo jeito!!!! uma vergonha.

Anônimo disse...

Sama,
não foi tão díficil quanto pensavas, as pessoas que visitam teu blog conseguem dialogar com as idéias que abordas.
Bem, também tenho críticas ao metódo Paulo Freire, mas também reconheço a sua importância em determinados pontos, acredito que os seguidores das idéias freirianas e que tensionaram determinadas coisas e alguns tornaram-se fanáticos, e, fanatismo não é nada bom, pois dessa forma não aceitam nem críticas, pois parece que as idéias contrarias podem criar "abismos" intransponíveis.
Um grande abraço de outro professor e educador (não vejo diferença nisso)

Anônimo disse...

Não sou professor, nem do ramo. Por isso, não me atrevo a discutir o método de Paulo Freire. Mas algo na discussão eu posso contribuir, pois como todos, também fui aluno.

Passei minha vida escolar, desde o jardim de infância até a universidade, estudando em escola pública. Na evolução da minha vida estudantil, notei uma sensível perda da qualidade do ensino. Parte, atribuo ao Estado e sua incapacidade de qualificar a educação brasileira, pois hoje é mais importante passar de ano do que aprender. Na outra ponta, credito a responsabilidade aos pais, pois se há falta de respeito do estudante com o professor, certamente há falha na educação dos pais. Saímos do "nada pode" para o "pode tudo". Às vezes, o professor, além de educador, perdão se a melhor palavra não é esta, tem que fazer o papel de babá. Um absurdo! O exemplo da professora que deixou de ensinar em um colégio em Casa Forte é frequente. Estamos criando monstros.

Um abraço,

Dimas Lins
www.torcedorcoral.com

Zé Costa disse...

Basta dar aula para saber que Paulo Freire é um picareta de marca maior. Aqui em Brasília - sou recifense, radicado no cerrado - quase fui crucificado porque disse que Paulo Freire não me dizia nada. Tam até uma escola pública na L2 Norte com o nome do maior prestidigitador da educação no Brasil.

Parabéns pelo post 300!

Anônimo disse...

Costajr, o iconoclasta...menos, meu amigo, menos...dizer que Paulo Freire foi um picareta é de lascar. Fico imagino qual é o seu conceito de picaretagem, então. Na L2 Norte tem uma escola pública com o nome dele? Beleza, deve haver algumas centenas pelo Brasil afora, muito merecidamente, aliás. A não ser que você prefira que os nomes das escolas do nosso país prestem homenagem a gente como Costa e Silva, ou João Batista Fugueiredo (toc toc toc!) Tem alguma escola com nome de Joaquim Roriz. Vixe Maria, espero que não!
Meu amigo, se Paulo Freire não lhe diz nada, acjo que você é surdo do juízo, talvez cego das idéias. E suas aulas devem ser bem legais, imagino

Zé Costa disse...

Algumas pessoas dizem que nome é destino, talvez não.

Meu conceito de Picareta é uma pessoa que finge um saber que não tem, ou por outra: seu saber é uma desonestidade intelectual.

Eu, iconoclasta? De jeito nenhum. Paulo Freire nunca foi um ícone para mim.

Já escrevi alhures que Paulo Freire é um plagiador, mas isso fica para depois ... O fato de se ter muitas escolas com o seu nome mostra que sua pilantragem fez sucesso.

Diferente de muitos adoradores de Paulo Freire, eu li os seus livros, e olhe Rui, de lascar é o que ele escreve. Que você ache o barbudo, que preferia formar militantes a formar estudantes, um gênio da educação, é um direito seu.

Você citou nomes famosos: Joaquim Roriz, os generais Costa e Silva e João Batista Figueiredo. Cada um à sua maneira, deixou um legado ruim, mas nenhum tão ruim quanto o legado de Paulo Freire. Leia o texto do Samarone, suas inquietações, o drama de uma colega, tudo isso foi o resultado de doses cavalares da pedagogia de Paulo Freire, na veia.

Seu último parágrafo é um chiste. Você me chama de amigo e diz, o quê mesmo? que estou "surdo do juízo e cego das idéias". Eis um jogo de palavras digno do presidente Lula. Desculpe, não sou seu amigo.

É Samarone, Paulo Freire é mesmo um santo. Os devotos do picareta logo ficaram nervosos porque o chamei de picareta e prestidigitador.

Samarone Lima disse...

Ops, calma, camarada. Questionei o endeusamento de um pensador, mas também chamar o camarada de picareta é ir para o lado oposto, que é negar a força de suas idéias e a coerência durante a vida.
Vamos nos falando.
Samarone

Zé Costa disse...

Caro Samarone

Vou responder sua intepelação para não ficar parecendo que eu sou um doidivanas,um iracundo, sem meias palavras.

Você tocou num ponto central. Sua crítica era ao fato de se aceitar ipsi literis as teorias do taumaturgo de nossa pedagogia. Você questiona, de forma acertada para mim, que muitas posições de Freire devem ser reavaliadas. Para mim, suas teorias, na verdade de outrem, não eram fruto de ciência, mas de ideologia.

Reconheço que fui além, e fui, porque acredito que o pensamento de Paulo Freire foi, quer dizer, ainda é, um atraso para a educação no Brasil. Sou minoria, mas como diria Fernando Pessoa em Lisbon Revisted:

"Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!"

Você avançou um ponto ao ter a coragem de criticar Paulo Freire, mais um pouco, você chegará, bem antes do que você imagina, a conclusões semelhantes à minha.

Peço desculpas a você e a seus leitores se fui demasiado ácido nas palavras, mas diplomático nunca foi uma qualidade minha.

um abraço.