De vez em quando, preciso de um louco para me acompanhar pela vida. Meu louco predileto é o Gustavo, mas ele mora longe, fica difícil convocá-lo. Ultimamente, tem surgido um maluco sensacional, que é o Iramarai. Do nada, proponho algo sem sentido, e ele topa na hora, antes mesmo de pensar. Louco bom de verdade responde as coisas sem pensar.
Estávamos em Exu, nosso trabalho tinha terminado, perguntei assim, num átimo, se ele toparia fazer comigo a travessia Exu-Crato, a pé.
"Vai ser uma delícia", respondeu ele.
Todos da nossa equipe de trabalho nos chamaram de doidos, enquanto arrumávamos as bagagens. Era necessário mandar todo o excesso para o Recife, e seguir apenas com o mínimo vital.
Na quinta-feira, às 8h, botamos as patas na estrada. Poucas coisas e a vontade de sair do ar, esquecer trabalho, problemas, ficar quieto, andar, mas andar muito. Previsão: 48km em três dias.
Maraí (melhor chamá-lo assim, porque o nome é muito grande) começou sua febre nacional, que é apontar as plantas, animais e outras coisas da natureza, e dizer o nome.
"Aqui é um mulungu. Vê ali um pé de cedro".
Damos dois passos:
"Eita! Eita! Um ninho de Casaca de Couro, que é do tamanho de um Curió", segue.
Descubro que o Casaca de Couro bota até coisa de plástico em seu ninho.
Fico na minha, caminhando, chateado por não ter estudado bem Biologia, ou não prestar atenção aos documentários sobre animais e plantas. Lá pelas tantas, ele me mostra uma planta e pergunta:
"Tu sabe que planta é essa?"
"Uma arenosa", digo, inventando na hora uma nova espécie, para não viajar tão marginalizado das coisas da natureza.
"Tô achando que é uma angica. Mas é não...angica tem espinho".
Acabo de criar uma planta nova, a "arenosa", vou registrar no Ibama.
Andamos um tanto, resolvemos parar para molhar a goela. Somos recebidos pela Dona Ana e Seu Luis, um sertanejo aprumado com chapéu protegendo o cocoruto. A filha se chama Rochele, mas depois vão chegar a Janine e o João Victor. O cão, simpaticíssimo, se chama "Dog".
Bebemos água, conversamos água. Maraí tira dúvidas sobre uma planta, que levava no bolso. O Luís informou, mas esqueci de anotar, fica o registro. Lá pelas tantas, Maraí dá uma tosse de cachorro doente, Dona Ana fica preocupada. Eu também. Vai na casa da irmã, buscar mel e pimenta do reino. Também bebo, que é bom. Em troca, damos os biscoitos afanados de uma confraternização do pessoal da Saúde, umas rosquinhas deliciosas. Antes de sairmos, somos informados que o pai dela, adoentado, não tem recebido assistência da Agente de Saúde. Ele, o pai dela, que esqueci de anotar o nome, dá uma tosse, e achei-o muito melhor que meu colega de viagem.
Agradecimentos gerais e olhamos para frente. Tem a subida da Serra do Araripe pela frente. Dá uma moleza, mas o bom de quem gosta da estrada é caminhar. Lá vamos nós. Vou registrando os mortos pelo caminho. Os nomes são anotados na cruz, à beira da estrada. O primeiro morto é Vicente Inácio de Oliveira (21/01/41 a 09/06/97). Cem metros depois, está a homenagem póstuma ao Antônio A. da Silva (18/11/57 a 30/04/06) e José A. da Silva (08/08/94 a 30/04/06). Depois de um breve colóquio e cálculos, concordamos que são pai e filho.
Vamos subindo e a peleja é grande. Maraí me informa que a folha da castanhola serve para os rins. Só concordarei depois de consultar doutor Rafael Pacífico, o nefrologista predileto de tia Flocely.
"Olha um visgueiro", diz Maraí.
Chega o início da tarde e estamos num povoado ermo, parece que todo mundo foi ou está indo embora. Já caminhamos 16 km. Paramos, pedimos água, um menino vem puxar assunto com a gente. Tem 12 anos, o Denilson.
"Tu pensa em sair daqui?", pergunta Maraí.
"Penso não. Eu quero e vou sair. Aqui é lugar de gente velha", responde, e eu já nem gosto muito dessa zanga toda.
Depois de uma breve enquete, descobrimos que o negócio do pai faliu, por motivos ainda obscuros, e que o menino pegou desgosto do lugar. O Menino Indócil fica ali, puxando assunto, mas vamos embora, que gente indócil maltrata o sentimento. Cochilamos num bar falido, com uma sinuca velha parecendo um navio abandonado, e pegamos a estrada. Maraí parece uma mula, eu não menos.
A parada seguinte é lá nos meados da tarde, quando chegaram juntos fome e sede. O cansaço fica para mais tarde. Ficamos à sombra de uma árvore, de identidade incerta. Dois homens esperam um carro. Maraí começa a perguntar sobre uma "jurubeba selvagem" que encontrou no caminho, e tem início um colóquio internacional sobre as bondades da jurubeba.
"Cura até câncer", diz um dos especialistas.
"Nasci e me criei aqui, há 39 anos", diz um dos irmãos, quebrando o ritmo científico da conversa.
"E a casca?", segue Maraí.
"A gente faz remédio com ela".
"O cambão faz alguma coisa?".
"Faz. Só não sei o que é".
Não sei qual dos três está mais amostrado. Cutuco Maraí. Ele se levanta e solta um "Uôôpa" e a coluna estrala de cima abaixo. Ele ainda tem coragem de perguntar de onde é a água que o povo dali bebe.
"Tem cisterna, tem barreiro", e por aí terminamos a conversa.
Galopamos já no sol forte queimando a moleira. Cruzamos com a cruz do José Jr. Suassuna (6/12/61 a 06/10/2006), e com uma cruz de madeira sem nome. Fica aqui a homenagem ao morto desconhecido, na Serra do Araripe.
Paramos pela exaustidão na mercearia de dona Fátima e Seu Luís, que Deus os tenha. Pedimos água, que vem nos canecos de alumínio. Na pista passam carretas, ambulâncias de prefeituras, carros a duzentos por hora. Começam a perguntar de onde somos. Estamos caminhando, olhando as plantas, responde Maraí, e aproveito para botar meu silêncio em dia.
Então chega um carro lotado, que vai para o Recife. São cinco pessoas.
"É só uma, visse?", diz a mulher para o motorista, que usa uma camisa do "Parque Dona Lindu",que vão construir algum dia em Boa Viagem.
Maraí pergunta sobre o uso do "pau de ferro", e começa um seminário regional sobre plantas e curas. Pau de ferro, para quem não sabe, é bom botar no leite, o pozinho, que é bom para anemia. Cambão serve para animal. Jatobá também. Há uma discussão interna, sem questão de ordem, sobre a "jurubeba-de-fora". A resposta é que "manguará da banana e juá" são as melhores coisas para lambedor.
"Vou mandar para São Paulo, para meu menino", diz dona Fátima.
Ela tem dois filhos em São Paulo. Em julho, foi de avião visitar os dois, e se deu mal com o frio. Eu sei bem o que é Sampa naquele frio de rachar os ossos.
Raspa de juá, só se ferver e tirar nove espumas, para tirar o amargo. Surge um remédio universal, para todos os males, com capim-santo, crista-de-galo, jatobá, cebola branca, pau-ferro, angico. Eu e Maraí, que estamos com os pulmões meio cansados, bebemos boas goladas, e já sentimos um renascimento espiritual.
"Angico não coloquei não. Mas leva limão e folha de Eucalipto", diz a cientista Fátima, disparado a mais sabida da turma.
O motorista só toma uma mesmo, coitado, e fim do seminário. Todos partem felizes. Dona Fátima oferece um café, que bebemos felizes. Depois oferece chá, que vem com duas tapiocas e um pedaço de queijo, numa bandeija bonita, essas singelezas do povo. Bebemos o chá como dois lordes cansados. Ela pergunta de que é o chá.
"Erva doce", diz Maraí, convencidíssimo.
"É não", responde ela.
"Capim santo", chuto.
Ela diz que acertei, e me sinto um pouco sabido, pela primeira vez na viagem. Como já diz o sábio Iramaraí, "a gente tem que fazer umas estripulias para compensar a deficiência".
Daqui a pouco coçamos a cabeça. Vai entardecer e não temos onde dormir. O vento em cima da Serra do Araripe é frio e cortante. Não temos agasalhos e somente dois lençóis finos. Chega a Janimeire, grávida, o filho vai nascer em janeiro. Conversa vai, conversa vem, descobrimos que ela é professora da escola, muito politizada, esteve na "Marcha das Margaridas". Nos dá uma pequena aula de política, mobilização etc. É das nossas.
A conversa fica no ar, está esfriando, fazemos aquel cara de órfãos do destino, parecemos desalentados, então ela diz a frase mágica:
"Vocês podem dormir lá em casa".
Quando saímos, para a casa de Janimeire, perguntamos quanto custou o café, chá e tapiocas.
"Não foi nada, moço".
Essa bondade do povo sertanejo me deixa tonto.
Daqui a pouco conto sobre a noite gelada e estrelada, e o sono acolhedor na capela azulada, ao lado de sua casa, entre as imagens de santos.
Meu tempo na lan house esgotou, há jovens alucinados para entrar no orkut, e ainda teremos muito chão pela frente. Até daqui a pouco, quem sabe no Crato.
7 comentários:
eita que coisa mais linda...
vai, sama, ser gauche na vida.
Samarone, achei um artigo interessante sobre bibliotecas no blog de um amigo, acho que você vai gostar:
http://prelodigital.blogspot.com/2007/09/variedade-bibliotecas-so-pura-mgica.html
Há dois posts atrás, você falou na Secretaria de Saúde. É aquela perto da conde da boa vista e também de um teatro que eu esqueci o nome, a FUSAN? Se for, aquelas árvores de lá são realmente um espetáculo de ver. Pelo menos duas vezes por semana eu passo por ali para ir às minhas aulas para o infeliz do vestibular, e quase sempre tropeço nas pedras porque estou olhando pro céu/árvores!
Eu estou em Maceió, na casa de uns tios meus, e hoje nós encontramos um garoto que pareceu muito com o engraxate que você comentou no post anterior. E meus tios fizeram a célebre pergunta do 'o que você quer ser quando crescer' para ele também. Se bem que o garotinho que eu conheci não era tão determinado quanto o que você conheceu, já que ele disse que seria 'o que deus quisesse que ele fosse', o que eu acho um erro bem grande, mas enfim...
O melhor de tudo nesse último post foi você falando que estava numa lan house. Hahahaha! Não te olham estranho, não? Deve ser engraçado, pelo menos com a imagem que eu tenho de você! xD
=))
ô, saminha, tu é lindo, visse? :)
Sama,
No ritmo que vocês estão, vão trabalhar no Globo Ecologia ou no Globo Repórter!
Isso é que é aventura!
Parabéns pela crônica! Como sempre, muito boa.
Um abraço,
Dimas Lins
www.estradar.com
Belo diário de estrada, muito gostoso de ler.
Estou aguardando os próximos passos.
Um grande abraço,
vc é um petistinha de merda
Postar um comentário