Desde que me entendo por gente, sou brasileiro, nascido nas entranhas do Ceará, uma cidade chamada Crato, vizinha a Exu, em Pernambuco, e por isso tenho esta alma assim, tão pernambucana. Isso foi em 1969, na Maternidade Santa Theresinha, creio, no terceiro dia de maio, e de lá pra cá, muita água passou por debaixo da ponte.
Nesses 36 anos, muita coisa aconteceu, mas continuo desenvolvendo um problema existencial de largas proporções: não consigo entender este País em que vivo, chamado Brasil.
Vi outro dia uma pesquisa da Reuters sobre a felicidade: 56% dos espanhóis se sentem “muito felizes” com suas vidas (creio que a torcida do Barcelona ajudou muito a subir o índice, com aqueles golaços do Ronaldinho Gaúcho). Os franceses são apenas 42% muito felizes, uma coisa de dar dó, os italianos são 49% e os alemães, 52%. Com esta pesquisa da AGF/Allianz, mudei inclusive minha visão de mundo sobre a Europa, porque achava aquelas criaturas meio entediadas com todo aquele bem estar, eu percebia, nas entrelinhas, um certo enfado europeu, deve ser inveja minha por não encontrar um hospital decente na rede pública.
Pois bem. E o Brasil?
Amanheci com esta dúvida filosófica latejante sobre a minha pátria. Como explicar o inexplicável? De vez em quando, na verdade, eu me pego com uma dúvida ainda mais profunda: como este País ainda segue funcionando?
Fiz um pequeno estudo de caso. Conversando com um amigo, ele me contou que levou a filha no hospital (ela tinha cortado o indicador da mão esquerda), foi feita a sutura, o médico assinou os papéis, ele foi ao plano de saúde, para ser ressarcido. A mulher do atendimento disse que o médico não tinha explicado, na papelada, o procedimento. Ele mostrou o dedo da filha suturado e explicou:
“Foi uma sutura na falange do dedo indicador da mão esquerda”.
Nada. Ela viu o dedo com esparadrapo, a assinatura do médico, mas se manteve incólume, essa palavra é boa. Davi, ôps, meu amigo, insistiu, explicou que teria somente o trabalho de atravessar a cidade para o sujeito escrever duas linhas, que ela mesma poderia complementar o documento, que foi apenas um esquecimento, um ato falho, como dizem os psicanalistas freudianos e lacanianos. Nada feito.
Então meu amigo desceu do prédio, procurou um boteco, pediu um chopp e escreveu:
“Procedimento realizado: sutura na falange do dedo indicador da mão esquerda”.
Tomou outro chopp, um quartinho, uma cerveja, que Davi não é de ferro, voltou lá, entregou o documento e a moça abriu um largo sorriso:
“Agora sim, está tudo corretinho...”
Certa vez, eu estava numa pindaíba danada, uma febre do rato mesmo, quando fui em busca do seguro-desemprego. Uma fila dos diabos, uma burocracia, aquela maravilha dos oito anos do Fernando Henrique, uma eternidade da qual milhões de brasileiros ainda não se recuperaram. Peguei minha ficha, acho que era um número acima de 200, 199 fodidos mais eu, olhei o número do atendimento, estava em 80, saí, tomei café, li um jornal, escrevi minhas besteiras e voltei, duas horas depois. Ainda tinha uns 20 na minha frente, quase todo mundo esperando em pé, com calor, sede e fome, eu tenho uma certa facilidade para reconhecer gente que está com fome, os olhos parecem ter neon avisando “fome, fome, fome”.
Na minha vez, a moça olhou a Carteira de Trabalho de trás pra frente, sacolejou, espremeu, baculejou, soprou, quase arrancou meu retrato com 17 anos, até que me olhou com aquele sorriso de gozo da burocracia e afirmou peremptória (hoje estou demais com o meu português clássico):
“Senhor, temos um problema na sua Carteira...”
Eu quase chorei de desconsolo. Era uma ONG que eu tinha trabalhado uns três anos antes, que tinha quebrado sem dar a famosa “baixa da carteira”. Expliquei tudo, disse que estava numa febre do rato desgraçada, ela não entendeu meu pernambuquês, eu disse que estava liso mesmo, quebrado, na lona, duro, na pindaíba, zerado, liso, ela escutou com aquela cara de cera de FHC e disse o famoso “não posso fazer nada”, uma das frases mais idiotas da língua portuguesa, porque você sempre pode fazer alguma coisa por alguém, até no jeito de falar você pode ser útil com qualquer pessoa, é o tal do afeto mínimo. Ela, a múmia de FHC, me disse que bastava eu ir à Junta Comercial, procurar o setor de falências, encaminhar meu processo, que em duas semanas saía a baixa na minha carteira, para eu entrar com o pedido, que sairia em duas semanas. Do meu lado, um sujeito sem dentes era informado:
“Senhor, em 1979 o senhor não deu baixa nesta empresa que o senhor trabalhou em Goiás”.
Eu quase choro por mim, por ele e por aquela desgraça toda, outro dia FHC veio receber o título de Cidadão Pernambucano, aquela Praga do Egito, boçalidade do sapato ao cocoruto, explicou tudo que estava errado, avaliou todos os erros, voltou a ser sociólogo, falou de ética na política, mas não disse que foi reeleito comprando voto de deputado, todo mundo sabe que cada picareta daquele custou R$ 200 mil, e tome mais quatro anos, deu no que deu.
Fui à Junta Comercial de São Paulo, imaginem. Era uma multidão de norte a sul. Fiquei na calçada esperando aquela ajudinha divina, aquele momento do desconsolo completo, que dizem também ser o momento do inconsciente maquinando. Olhei do outro lado da rua, tinha uma empresa de fazer carimbos. Pedi para fazer um carimbo com o nome da ONG, fui tomar meu chopp, que ninguém é de ferro, carimbei a carteira e levei para meu irmão Gustavo assinar. Ele assinou, deu baixa na minha carteira, voltei à fila do Seguro Desemprego, outra chatinha-FHC bonitinha me atendeu e encaminhou o seguro-desemprego. Salvo engano, fora cinco parcelas de 250 mangos, uma invenção do José Serra, que Deus o tenha, mas o mantenha longe da presidência.
De formas que comecei e terminei esta crônica sem entender o Brasil. Aqui na minha rua, vai passando agora uma Kombi vendendo aquelas bandejas de ovos com um megafone em cima:
“Direto da Granja Santa Luzia, de Paudalho, aproveita freguesa, aproveita freguesa, são trinta ovos por quatro reais”.
Não sei se isso tem na França, com seus 42% de muito felizes, mas eu adoro.
Ontem à noite, me ligou o amigo Ailton, vulgo “Peste”, do Alto José do Pinho. Eu disse o “olá” de sempre, e ele emendou:
“Olá, é Samarone Lima? Aqui é Peste Lima, seu conterrâneo da Terra do Nunca”.
Tive um acesso de riso e conversamos muito. No final, ele completou, dizendo:
“O Pastor Peste, da Igreja Universal Cadê o Meu, vai se despedindo”.
Peste, um negro sorridente, de coração imenso, que mora no Alto José do Pinho, ganha menos de um salário mínimo e faz um trabalho social na periferia de Olinda, com adolescentes em situação de risco. Agora, enquanto escrevo estas besteiras, ele está em Aguazinha, fazendo um trabalho com uma turma de filhos de catadores de lixo. Os filhos deveriam estar se ferrando no lixão também, ou fazendo coisas piores, mas estão em sala de aula, com Peste.
Então, viva Peste, viva os ovos da Granja Santa Luzia e viva a vida, que é melhor do que ficar tentando enteder o Brasil.
Para Naire Valadares.
12 comentários:
amei.
Não me canso de dizer que sou sua fã. Essa crônica dispensa comentários. Vc mais uma vez arrasou. Isso é o Brasil! Beijosssssssssss
Sim! Fiquei revoltada com esse tal título de cidadão pernambucano ao FHC. Maldita idéia. Essa foi demais. Francamente. Coisas do Brasil...
Sim! Fiquei revoltada com esse tal título de cidadão pernambucano ao FHC. Maldita idéia. Essa foi demais. Francamente. Coisas do Brasil...
Mas importante que a verdade é a busca pela verdade.
Eita Samarone, eu tb conheco o Peste, o Ailton Peste, para ser mais precisa. Pense num cara bom. faz um tempinho que não tenho notícias dele... poxa.. além das outras maravilhas em teu texto, a citação sobre Peste encheu meu coração de alegria. Acho que o Brasil não pode mesmo ser entendido. beijos!
Nem concordo, nem disconcordo das idéias políticas. Só estou comentando para assinalar que eu sou o mais novo leitor apaixonado e viciado desde Blog.
Samarone,
Assim não pode ser.
Assim não vai dar.
Não posso nem entender o Brasil nem o poeta... dizer que gosta desse barulho infernal dos vendedores com seus super auto-falantes (Olha o sorvete...traga a sua vazilha...; Olha a fruta e a verdura, tem batata, cebola...; Olha o ovo...)que nos acordam da dormidinha pós-rango, nos desconcentra da leitura, enfim enchem o saco até de quem já morreu.
Faz favor amigo... lembre-se que mesmo nessa loucura de poluição sonora que vivemos ainda existe aqueles vendedores que sabem respeitar a tranquilidade e o sossego alheio e tocam seus triangulos, seus doces apitos e usam seus canticos para anunciar seus produtos. Alto-falante em carro gritando na rua não pode trazer felicidade.
Abraços,
Rodolfo Aureliano
Sama, acho que um dos retratos mais verossímeis dessa ficção chamada "Brasil" é o filme (quase) homônimo de Terry Gilliam...
a surrealidade é a nossa pátria...
sama,
tas ficando lesado é? Antes tinha texto novo todo dia... eu exijo o que me cabe neste latifúndio...
Samarone, meu querido,
Que lindo!
Só agora li.
Mais uma vez, amei.
Beijo sem burocracia
Naire
Samarone, mais uma vez chego até você trazida por Naire. Muito bom seu texto. Gosto muito do seu jeito de escrever, despojado, assim como quem está conversando (prá não usar o termo coloquial). Durante a leitura lembrei-me, mais de uma vez, do famoso "jeitinho brasileiro". Talvez seja por isso que a gente não faz muita força para entender o Brasil. Talvez seja esta uma maneira de manter nosso índice de satisfação em um patamar aceitável. Uma forma de viver mais perto da tal felicidade. Talvez.
Quanto àquele pessoal das kombis, concordo com Rodolfo Aureliano. Aquele microfone incomoda. Prefiro o som do homem do cuscus, quase extinto. O sininho do carrinho de picolé. Esses barulhinhos que se confundem com coisas do passado, e que nos trazem recordações. Um passado sem poluição, sonora ou de qualquer outro tipo.
Um abraço,
Dulce de Vasconcelos
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