segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

O tempo é só um dia

Hoje faltou-me a inspiração mínima para algo decente, uma cronicazinha que passasse de ano, pelo menos carimbando um cinco. Fui aqui na esquina, tomei já uns dois cafés, vi a meninada voltando da escola municipal, todos estão felizes, passaram de ano, é incrível, mas hoje em dia ninguém fica mais reprovado, no meu tempo não tinha essa boquinha não, era osso passar por média, eu só passava me arrastando mesmo, era triste.

Fui ali, olhei os passarinhos, agüei o jardim do quintal, daqui a pouco cuido do jardim da frente, que está meio seco, nada. Inspiração zero. Essa vida de cronista de hora que dá um revertério da bobônica, parece que a criatividade escapole mesmo, ou fica arredia, intocada, sem querer parir nada. Quase fiz uma oraçãozinha, senhor, dai-me um temazinho sequer, um fiapo de assunto, nada.

Os velhos e novos cadernos de anotações salvam a lavoura. Então vou folheando, reencontrando minha gente. É com eles que vou caminhar, por hoje, este dia de sol lindo lá fora, no Recife de dezembro, que respira e transpira compras e confraternizações.

Lembro que um amigo me disse, outro dia:

“Quero desamadurecer, não sei o motivo. Já amadureci o suficiente, não quero mais essa história de tudo é aprendizado. Isso é uma invenção, Samarone. Tem coisas que a gente não aprende nada, apenas sofre, e querem que a gente entre nessa de estou aprendendo”.

Não concordei nem discordei, apenas escutei e anotei, que é minha função social, anotar e reportar. E recentemente, conheci uma criatura adorável. Lá pelas tantas, no meio de uma conversa sem rumo, bem ao meu estilo, ele disse que estava à procura de uma herança. Perguntei se ele tinha alguém rico na família, e que estivesse bem perto de bater as botas. Não, muito pelo contrário, a família era um amontoado de lisos e remediados.

“É só uma esperança. Eu sou louco para receber a notícia de que ganhei uma herança”, disse, animadíssimo, e tomou mais uma talagada. Sinceramente, ele merecia uma herança. Poucos no Brasil merecem uma herança como o Juca Baixinho.

E no meio daquele romance maravilhoso do Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser”, me veio o registro do começo do amor. “O amor começa no momento em que uma mulher se inscreve em nossa memória poética”. Nada mais precisava ser dito ou perguntado, até que Bachelard (ou Gaston, como o chamo) chegou sorrateiramente, com seu andar de esquilo, com sua longa barba branca, e acrescentou:

“O amor é o contato de duas poesias”.

Mas intimamente me faltava uma definição para o significado do amor. O meu amigo Zigmunt Bauman me forneceu recentemente, entre um cigarro e outro. “Amar significa abrir-se. Ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo numa amálgama irreversível”. Eu já estava mais que satisfeito, achei demais “o medo se funde ao regozijo”, quando ele completou:

“Sem humildade e coragem não há amor”.

Ele achou pouco e arrematou: “Não importa o que você aprendeu sobre o amor e amar, sua sabedoria só pode vir, tal como o memorial de Kafka, um dia depois de sua chegada”. Concordei com tudo e não o deixei pagar a conta do jantar.

E terei que escrever, um dia, a história de Vando, que aprendeu a andar de bicicleta aos 43 anos. O desejo particular, meu, era ver um homem já feito, com cabelos brancos, sendo orientado pelas duas filhas a se equilibrar, como a gente faz na vida. Então me veio a pergunta: terá ele usado rodinhas? Será que alguém sente falta dessas rodinhas da bicicleta da infância, na hora do desamparo? Será que ele levou as quedas que não encontrou na infância? Perguntas para a minha coleção "Perguntas inúteis, volume II".

Um conhecido distante sustenta uma tese: a de que Bin Laden inventou uma fábrica de tufões e furacões, só para foder os Estados Unidos. Com o Tota, não há o que discutir, é a coisa mais certa do mundo. Bin Laden deve estar por trás daquela confusão toda.

Fui reler Shakespeare, porque tenho essas crises de inteligência, leio algo rochedo mesmo, só não encarei o Dostoievski de frente, mas ainda chego lá. Então me apareceu este conselho, em luz néon:

“Dizer o que sentimos, não o que deveríamos dizer”.

Concordo com o Álvaro de Campos cada vez mais e em todos os pontos (estamos com este hábito de tomarmos um café, sempre à tardinha, e ele diz coisas que quero dizer, mas não tenho talento suficiente sequer para pensar). Ontem, ele me veio com esta:

“Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções”.

Outro dia ele me falou de uma moça que amava muito. Tinha escrito num guardanapozinho esta declaração para ela:

“E não há recanto que não veja por ti, nos recantos de seus recantos”.

Foi dele a última frase da noite, que gravei na minha algibeira das emoções:

“Amemo-nos aqui. Tempo é só um dia”.


Para Naaty, minha vizinha de 10 anos, que passou para a 4a série e acabou de me trazer um cartão de Natal e um presentinho, embrulhado num papel vermelho: uma moldura do Santa Cruz.

8 comentários:

Anônimo disse...

ô Sama! para quem estava sem inspiração... vc vem com essa perola não é? bjs

Anônimo disse...

Fazia tempo que não vinha beber no Estuário - coisas da vida moderna e do mês de dezembro... Só tenho que dizer que saciou a minha sede...
Grande abraço Samarone!
Priscila

Anônimo disse...

Eita, Saminha,
bem que eu desconfiava que tu e o Zygmunt Bauman eram amigos, adoro ele.
Mais uma prece feita...

Anônimo disse...

Samarone, como sempre...linda a crônica! Feliz Natal para vc e tenha certeza que um dos meus pedidos de Natal é que vc o continue preenchendo meus dias com suas crônicas...

Anônimo disse...

oi sama,
nos dias de pouca inspiração, vc me traz isso. é covardia...
ps: ah, nesse natal vou pedir ao bom velhinho q lhe permita dias de muita inspiração sempre, para que minhas vindas aqui no estuário sejam deliciosas como sempre são.
adoro vc, viu?

Anônimo disse...

Sama,

Crônica show de bola! Um pouco atrasado meu comentário, mas, comemorastes o "título" do Santa antes do tempo também né? Ri demais.

Saudações rubro-negras e um feliz natal! (Pena que o papai noel é alvirubro!)

Anônimo disse...

Grande Samarone,

Sempre leio tuas palavras e gosto muito, mas esta tua ultima do "melhor do recife" esta realmente uma merda.

Abracos,

Beto

Anônimo disse...

nem sei se vc. lerá este comentário aqui. Estamos em 2006 já, mas é puro sentimento, que não tem tempo, só poesia. Lindo demais.
sua leitora nova.