sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Tatuagens de ternura

Amanhã o Recife vai amanhecer sem Zeca, porque logo cedinho ele vai estar viajando para o Rio de Janeiro, onde vai morar. Ontem teve a despedida-surpresa, organizada por sua mãe, Lucila, mas foi tudo fajutice, porque ele percebeu que algo estava sendo preparado durante o dia, e fingiu que não tinha nada a ver com aquilo. À tardinha ele veio aqui, tomamos duas cervejas geladíssimas em Seu Vital e fiz aquela cara de leso, como quem não sabe nada, e acho que tinha um letreiro na minha testa, informando que teria um assustado em sua casa.

À noite, em meio aos comes e bebes, tive algumas conversas filosóficas da mais alta importância com ele. Primeiro, fiquei sabendo que não tenho uma tartaruga em casa, mas um cágado, o que muda radicalmente meu cotidiano e minha forma de ver o mundo. É que eu andava muito nervoso, sem dormir direito, achando que minha tartaruga estava com dengue, pois não saía do canto, não se alimentava, não ia ao banheiro, não dava um passo. Zeca me tranqüilizou, disse que já teve um cágado, um gato e um pato de uma vez só, explicou que eles, os cágados, são assim mesmo, ficam bem quietos, sem importunar ninguém, sem puxar assunto, são criaturas silenciosas e mansas, então fiquei profundamente aliviado e acho justo que a TV Globo esteja contratando Zeca para trabalhar no Rio de Janeiro.

Depois, me bateu uma inveja irreversível. Zeca vai morar no Rio e vai ganhar um salário para escrever sobre ....futebol! Como é um de meus sonhos de infância, combinamos que ele vai ficar de olho, e se aparecer uma vaga, vai me indicar, dizendo que eu levo jeito com a escrita, e prometeu que dividiremos o apartamento em Laranjeiras, o que é muito chique. Falam da violência do Rio, mas acho o Recife muito mais barra-pesada. Quando tiver jogo do Santa Cruza contra os times do Rio, estaremos lá, no Maracanã, empurrando nosso escrete e calando a torcida do Flamengo.

Então fiquei pensando sobre o fluxo da vida, que é sempre um mistério. Conheci primeiro o pai de Zeca, o engenheiro Edinaldo Miranda. Em 1992, eu era um jovem candidato a jornalista, e estava escrevendo umas reportagens sobre o misterioso caso daquela bomba que explodiu no Aeroporto dos Guararapes, em 1966, durante a ditadura. Morreram duas pessoas, e várias ficaram feridas. Edinaldo foi preso dois anos depois e apontado como responsável pela bomba, junto com o também engenheiro Ricardo Zarattini. O tempo todo eles repetiram que eram inocentes, nunca foi provado nada contra eles, mas ficou assim mesmo. Eles passaram por coisas terríveis, sofreram muito, até que veio a Anistia, em 1979, e puderam recomeçar a viver. Mais que isso, começaram a lutar pela verdade sobre aquele episódio, mas nunca conseguiram. Estou perto de terminar este livro, e espero que fique bonito como Edinaldo e Zarattini.

Fui na casa de Edinaldo várias vezes, a partir de 1992, lembro que eu tinha 23 anos e ainda estava naquele período da pindaíba pesada, que foi de 1987 a 1992. Nas muitas idas ao apartamento na Estada das Ubaias, eu não fiquei amigo de ninguém da família, a não ser Edinaldo, que morreu em 1999.

Alguns anos depois, fiz uma série de entrevistas com Lucila, a esposa de Edinaldo, e acabei amigo dela também, fato que prossegue até hoje, pela graça divina. Em 2000, voltei ao Recife e conheci Emilia, filha de Edinaldo e Lucila, e ficamos amigos também. Teve um Carnaval desses que tomamos um porre de chamar Jesus de Genésio, declaramos nosso amor incondicional, e até hoje somos iguaizinhos àquela música muito brega, que tem o refrão em espanhol, “amigos para siempre”, que as pessoas dançam abraçadas quando estão mamadinhas.

Por último, veio Zeca. Fomos nos aproximando aos poucos, e lembro que eu estava ensinando na Unicap, quando ele entrou na sala, timidamente, com seu passo e jeito mansos. Era meu aluno de Jornalismo, quase uma década depois de eu ter ido à sua casa, entrevistar seu pai. Terminou o curso, trabalhou em alguns lugares, agora vai para o Rio, ser gauche na vida.

Não sei qual o motivo de escrever sobre a partida de Zeca. Não é para dizer o quanto gosto dele, porque ele já sabe bem. Acho que é para falar da vida, dos encontros, de como é bom conhecer e conviver com gente de verdade, no mormaço e na chuva, na alegria e na tristeza, pessoas que criam raízes na gente.

Mário Benedetti fala em um de seus poemas de “tatuagens de ternura”.

Acho que é isso mesmo. Há pessoas que deixam tatuagens de ternura na gente, e quando partem, ficam também, como tatuagem, deixando a lembrança infinita de uma boa e profunda conversa sobre a diferença existencial entre uma tartaruga e um cágado.


Para Edinaldo, Lucila, Emilia e Zeca, pois.

11 comentários:

Anônimo disse...

Sama,

ler os seus textos me faz um bem danado. Tomara que o Zeca seja feliz no RJ. Abração do mano PH

Anônimo disse...

"Há pessoas que deixam tatuagens de ternura na gente".Vão embora, mas, fica a marca, aquela marca inesquecível... de momentos maravilhosos, pode ser de um grande amigo ou de um grande amor.
Espero que Zeca seja muito FELIZ.
Estou adorando ler seus textos.
Beijo da amiga que ainda não conhece.

Ana disse...

Ternura é uma das minhas palavras preferidas.
"Tatuagens de ternura" é perfeito! Diz tudo!

Anônimo disse...

Não conehço o Zeca, mas se ele é asim como você diz, o Rio vai sair ganhando, embora você perca a companhia constante dele. Diga a ele que no Rio deve torcer pelo Flu.

Anônimo disse...

ah! triste partida, nela a torcida sai calada. o silêncio também não diz nada. os caminhos vão te encontrar, ali quando vc chegar.
será?? talvez?? sei lá.

Anônimo disse...

Pois é Samarone... Na primeira conversa que tivemos na vida, lá em Salvador, você falava sobre as entrevistas que tinha feito com Edinaldo e sobre a ditadura no Cone Sul... Depois que voltei daquela cidade, já fui fuçar no site da Tortura Nunca Mais onde encontrei algumas entrevistas na integra... Alguns meses depois já buscava outros livros sobre o período para ler... Sem dúvida, você contribuiu e muito para que me interessasse ainda mais por esse tema. Ler este post me lembrou como o tempo passa e como cada um segue o seu destino...
Sucesso meu amigo!
Priscila

Anônimo disse...

sou uma velha fã e uma fã velha, fazia muito mas muito tempo que eu nem lia nem ouvia alguém falar " assustado" é do do tempo que eu era inocente pura e bela.

Anônimo disse...

Qual é esse poema do Mario Benedetti...? tatuagens de ternura,lindo isso
beijão, Lu

Ana disse...

Vc bem que poderia republicar aqui "Pequenas histórias de amor"... Estou até agora esperando o Volume II!
Vai, Sama... Se não deu certo na vida real, quem sabe vc cria outro final?

Anônimo disse...

Oi, Samarone!
Eu arriscaria dizer que você está mal assessorado em termos de quelônios. Pelo que você escreveu sobre seu novo bichinho de estimação, o que está no seu quintal nem é tartaruga nem cágado, mas sim um JABUTI.
Qualquer dia vou aí na tua casa confirmar meu diagnóstico.
Grande abraço
Honório.

Anônimo disse...

Oi, Samarone!
Eu arriscaria dizer que você está mal assessorado em termos de quelônios. Pelo que você escreveu sobre seu novo bichinho de estimação, o que está no seu quintal nem é tartaruga nem cágado, mas sim um JABUTI.
Qualquer dia vou aí na tua casa confirmar meu diagnóstico.
Grande abraço
Honório.a confirmar meu diagnóstico.
Grande abraço
Honório.