Com o traço mágico do João Lin
Como um leitor obsessivo-compulsivo, passei por várias fases, e acho que estarei em constante mutação, até o último dia. Tive minha época de Gabriel Garcia Márquez, e vivia naquele mundo maluco de Macondo, andei de barco atrás do amor naqueles tempos do Cólera, fiquei à deriva com aquele sobrevivente do naufrágio, e tantos outros personagens que inundaram meu imaginário. Como obsessivo que se preze, li todos os livros dele, um após o outro, num pique de deixar muitos leitores vorazes com inveja.
Hoje olho assim, meio de soslaio, parece aquela paixão infinita que passou. Nem o “Memória de minhas putas tristes” tive ânimo para comprar.
Outro surto psicótico aconteceu com o Fernando Pessoa. Teve época em que eu só andava com o velho poeta debaixo do braço ou dentro da bolsa. Era tanta tabacaria, não sou nada, nunca serei nada, à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo, que a alma ficava à deriva. A última pancada foi o “Livro do Desassossego”, que um ladrão me roubou, com arma em punho e cara de mau. Ainda pensei em pedir para deixar o poeta comigo, mas não deu tempo, e ele poderia se zangar. Vai que levo um tiro por causa da poesia? Seria poético, mas trágico.
A fase do Fernando Pessoa nunca passa.
Tive minha época de Juan Carlos Onetti, iniciada em São Paulo, complementada com as muitas viagens ao Uruguai. Comprei quase toda a obra dele e me deliciei, lendo muitíssimas páginas nos cafés de Montevidéu. Uff, agora me deu uma saudade grande, mansa, cheia de memórias boas. Agora, a editora Planeta está lançando toda a obra do Onetti, mas eu olho assim, muito por cima, e digo solitariamente:
“Chegou com uns sete anos de atraso, meu bem”.
Minha obsessão com o Roberto Bolaño durou exatamente um livro: “Os detetives selvagens”. Peregrinei por várias livrarias, em Buenos Aires, à procura do livro, após ler uma entrevista devastadora dele, uma das coisas mais criativas que já li. Foi a primeira vez que tive um surto psicótico para comprar um livro, somente por causa de uma entrevista de um autor. “Esse cara tem algo a me dizer”, foi o que pensei.
Acertei em cheio. O livro é fascinante, mas cometi o erro de ler o melhor livro dele na primeira tacada. Resultado: fui em busca do restante da obra, e os outros livros não chegam nem aos pés. De vez em quando, releio trechos de “Os detetives”, para botar adubo na minha imaginação.
A fase Lawrence Durrel começou quando li “Justine”, lá pelos 14 anos, e terminou quando li o último livro do “Quarteto de Alexandria”.
No atual momento, minha obsessividade permanente e irrevogável é o João. Sim, o velho, bom, infinito, absurdo Guimarães Rosa. Sinto arrependimentos internos os mais intensos, ao lembrar que só fui ler “Grande Sertão: Veredas” aos 37 anos. Não sei onde andava minha cabeça, minhas prioridades. Quantas milhares de páginas inferiores não terei debruçado os olhos, antes de chegar ao Riobaldo e Diadorin?
Enquanto escrevo esta cronicazinha, olho meio sorrateiramente para “Noites do Sertão”, que está ao lado. Mais tarde, meu filho, mais tarde nos encontraremos. No final da tarde, após realizar todas as minhas tarefas, ficaremos a sós, eu e você, e ái de quem nos interromper.
“Tudo o que muda a vida vem quieto e no escuro, sem preparos de avisar”, diz o meu amigo, à página 48.
“Era bom gostar dela assim, com aquela velhice da alma, com o coração preguiçoso”.
Ai, meu Deus, tem algo acontecendo com Soropita, Doralda, e agora o clima parece que vai esquentar, com a chegada do Dalberto!
Tive minha fase de levar livros sem a permissão do proprietário, fruto da minha indigência financeira. Tive lances felizes, como “A casa dos espíritos”, da Isabel Allende, outra autora que já não me diz nada. O golpe mais fantástico mesmo foi “Viagem ao fim da noite”, do Céline, contrabandeado no meio de um jornal velho e uma agenda.
Ataquei a Livro 7 algumas vezes, mas já pedi desculpas ao Tarcisio Pereira, creio que ele aceitou, até porque foi pela Livro Rápido, que ele gerencia, que fiz a primeira edição de Estuário. A Síntese fechou, bem como outras duas que visitei, com más intenções.
Em São Paulo, tive um grande tropeço, mas foi um lance de muito azar. Durante o coquetel de lançamento de um livro, dei um jeito de colocar “A dama e o cachorrinho”, do velho e bom Tchekov, dentro da surrada bolsa. À saída, acompanhado do Dom Castro e Silva, capaz de surrupiar o Fernando Pessoa em papel bíblia, de uma livraria carioca (golaço), fui interpelado pelo vendedor. Ele não tinha visto a cena do confisco cultural de “A dama e o cachorrinho”, mas viu que eu estava ao lado dele o tempo todo.
Sabem qual foi o azar?
Só tinha aquele exemplar na livraria. Tinha chegado naquele dia. O vendedor fez a relação, e ficou esperando que eu saísse, para dar o bote.
Houve um desentendimento básico, expliquei algo sem muito sentido, mas o sujeito era nervosinho e queria confusão. Depois chegaram outros vendedores com aquela conversa de “tá me tirando, mano?”, da turma de São Paulo. Pensei num linxamento literário, mas do nada surgiu alguém da loja que dissolveu a gangue.
Lembro que uma vez tinha colocado um livro no meio das minhas coisas, e um vendedor da Livro 7 viu. Ele disfarçou, fez de conta que não era com ele, esperou eu me afastar e sutilmente retirou o livro do meio das minhas coisas, devolvendo-o à prateleira.
Chamam isso de sutileza, mas é um passinho a mais: é delicadeza.
O mundo, sem os delicados, é um grande tumulto.